Made of Stone

XLIII. O anjo que me visita à noite - Parte IV


— Alex, não fica brabo!

Lembro de torcer o nariz, esfregando o pincel na folha com força excessiva.

Nossa sala de estar era espaçosa, e o chão era de uma madeira lustrada, assim como toda a casa. Era quente no verão, e a gente gostava de sentar no chão frio e usar a mesinha de chá para colocar os brinquedos, cuja maioria era da Agatha.

Ela sabia me persuadir a deixar meus carrinhos e robôs no quarto para brincar com ela de casinha, de boneca, de festa de chá, de lego e da sua favorita: fazer pinturas. A tinta gouache tinha que ser praticamente estocada porque estava sempre em falta e escondida, uso só com permissão da mamãe e do pai, porque se dependesse dela, usava tudo em um mesmo dia.

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— Mano? — chamava outra vez, após eu a haver ignorado. — Alex, Alex, Alex, Alex!

— Quem tá bravo? — reclamei, parando de mover o pincel quando pude enxergar um vão no papel.

Minha folha, onde eu pintava um violão dos sonhos, havia ficado úmida o suficiente para que rasgasse em uma parte. Pude enxergar a mesinha pelo vão do papel, uma pincelada marrom estampada nele, então a esfreguei rapidamente com o torso da mão, com ódio, antes que secasse.

Aquela mesma raiva rancorosa tomava conta do meu peito, e eu não sabia como lidar com ela.

— O maninho — falou, abrindo as duas mãos já não mais gorduchas mas esbeltas, como quem diz “óbvio”, ao inclinar o rosto e me observar com curiosidade. — Você tá brabo comigo.

— Não tô — insisti, mais impaciente do que planejava.

Eu não estava bravo com ela - eu jamais ficaria bravo com ela.

O que eu odiava de verdade é que minutos atrás eu fui puxado pela orelha pela bagunça que ela fez no quarto dela com os brinquedos, porque eu não ajudei a guardar. O que me incomodava é que um minuto depois de eu arrumar a bagunça sozinho, ela veio manhosa, me puxando pela mão até a sala para fazer mais sujeira. O que me deixava bravo é que eu tinha que cuidar para que nem eu nem ela manchássemos a mesa com a tinta gouache, porque quem levaria a culpa era eu.

Ela era nova demais para perceber este tipo de coisa - quem sabe eu fosse novo demais também, mas para mim, não havia espaço para não perceber.

— Alex, Alex, Alex, Alex — continuou a chamar, irritantemente, em uma tentativa frustrada de me ganhar pelo cansaço com um riso. No entanto, o sorriso sapeca sumiu ao tossir duas vezes e esfregar o olho, sujando de tinta azul. — Fica brabo não, mano.

— Olha o que você fez — acusei, estalando a língua ao olhar ao redor para me certificar que não levaria bronca, antes de levar o dedo à boca e, em seguida, esfregar a bochecha avermelhada e quente dela para tirar a tinta.

Ela riu, tossiu outra vez, e ergueu a mão para fazer o mesmo no meu rosto, deixando um rastro frio de tinta na minha bochecha.

— Agora a gente tá igual. — Suspirei pesadamente e ela, novamente, sujou o rosto bem onde eu havia limpado. — Mano e mana. Alex e Agatha.

— Que saco, Agatha, não sabe que eu vou levar xingão por isso?!

Levantei em um rompante, tão irritado que minha pele coçava, e esfreguei com força onde ela havia sujado no meu rosto. Em seguida, dei as costas resmungando.

— Desculpa — ouvi-a pedir às minhas costas, desta vez, arrependida. Revirei os olhos. — Alex! Alex! Também eu levo xingão junto — insistiu, e eu parei de andar, olhando para ela.

— Não, não leva — frisei, as mãos em punho. — Eles gostam de você. Eles amam você. Papai só ama você — enfatizei, sentindo a voz falhar —, ele não me ama.

Agatha piscou, franzindo o cenho para o que ouvia, antes de pronunciar o tão simples: — Mas eu te amo.

Engoli em seco, mas acabei dando as costas novamente e marchando para longe.

— Alex! Alex! Alex!

Virei para trás, irritado. — O que foi?!

Agatha ergueu as duas mãos sujas de tinta com um riso infantil, um vão onde deveriam estar os quatro dentes da frente, o que davam a ela um ar de pestinha. Eu não percebi que as bochechas estavam quentes demais e vermelhas demais para ser normal, nem que as tosses se repetiam desde o dia anterior, nem que ela esfregou os olhos tantas vezes como quando tinha febre, nem que o loiro do cabelo estava um tanto sem vida - assim era sempre que a imunidade baixava.

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— Traz papel pra eu também? — Eu quis esganá-la ali mesmo, e ela percebeu, inclinando o rosto para um lado ao formar um beiço. — Desculpa eu, mano, eu te amo.

Bufei, dando as costas de vez.

— Que seja.

Quem sabe eu tivesse meus motivos para me permitir ficar chateado, já que tanto me forçava a não ficar nunca para não chateá-la também. Quem sabe eu fosse criança demais para saber lidar com meus sentimentos de uma maneira que não fosse simplesmente jogá-los para fora nos momentos mais inoportunos. Quem sabe se não fosse culpa apenas dos meus pais de não buscar assistência para mim e meus demônios desde criança.

Independentemente das desculpas e explicações que aliviavam a culpa da minha consciência, eu próprio não conseguia acreditar em nenhuma delas. Nenhuma me fazia dormir melhor à noite, ao invés disto, me faziam ser visitado por um anjo que arrancava meu coração para fora do peito, merecidamente.

No fim das contas, não havia desculpa que justificasse o meu "que seja" como resposta ao último "eu te amo" da minha irmã.

E não havia perdão.

*

Dezembro havia começado.

Naquela semana começavam as provas finais no colégio, o que significava que eu teria apenas mais uma semana no River Trench School, e Morgan e eu tínhamos apenas mais algumas sessões, a princípio, apesar dela reforçar que poderia estender um pouco mais a terapia caso necessário. A formatura e a festa já estavam planejadas, eu já estava estudando em antecedência para as provas por medo de reprovar de novo, e tudo em minha vida estava encaminhado.

E eu não sabia como me sentir a respeito de tudo.

Estava ansioso, mas era uma ansiedade diferente e incomum, que não me mantinha acordado à noite. Eu estava tomando os remédios corretamente e tendo uma rotina planejada com meu sono como um reloginho, como Morgan instruiu, e para falar a verdade, as coisas estavam mesmo melhorando. Eu não havia colocado fé nas medicações e nos exercícios para ansiedade, nem na rotina planejada antecipadamente, e muito menos o reloginho do sono. Mas, ali estava eu, me sentindo mais descansado do que jamais estive.

Nem tudo era perfeito, é claro, os pesadelos ainda me perseguiam. E, mesmo sem estar chapado ou alcoolizado, eu ainda podia vê-la às vezes, no reflexo do espelho, no cantinho do quarto, às vezes ao meu lado pelo canto do olho.

Era um lembrete enlouquecedor da culpa.

Como eu disse, as coisas melhoraram muito, meus demônios se aquietaram um pouco e os sintomas diminuíram. No entanto, tudo ainda estava ali, e era um pouco frustrante pensar que eu teria que viver com isso o resto da vida, que o melhor que eu conseguiria era reduzir a dor e não extingui-la por completo.

— Será que podemos ir direto ao ponto? — pedi, interrompendo algo que Morgan dizia, e isso a fez arquear as sobrancelhas.

— Direto ao ponto?

Assenti.

— Você me disse que eu podia sugerir algumas coisas e que eu tenho controle das sessões também, então... — apontei, vendo-a tentar entender onde eu estava querendo chegar. — Eu... — Pausei por um momento, pensando nas palavras antes de externá-las. — Eu acho que eu tô te dando permissão pra ir direto ao ponto que quiser. Não vou fugir, não vou mentir, não vou me calar — garanti, apesar da voz ter falhado um tanto.

Morgan pensou por um tempo, analisando a situação com cautela.

— Pensei que era isso o que estávamos fazendo. — Sorriu, mas não consegui devolver o sorriso. — Temos poucas sessões restantes e temos um objetivo aqui, não é?

— Sim, mas...

Abri e fechei a boca algumas vezes, sem saber como continuar.

A verdade é que, apesar da Morgan ter passado a me conhecer cada vez mais com o tempo, eu também passei a conhecê-la um pouco mais. Em conjunto disso, a própria terapia que ela explanava para mim todo dia.

Nós realmente estabelecemos um objetivo aqui, de maneira resumida, melhorar minha qualidade de vida. Eu estava tendo problemas em todas as áreas da minha vida e o objetivo maior da terapia era amenizá-los ou curá-los o suficiente para que eu possa viver bem, em harmonia com os demônios imortais e em paz daqueles demônios que puderam ser mortos ou feridos durante a terapia. E isso estava acontecendo, Morgan é boa no que faz.

Independentemente de eu enrolar ou mentir ou fugir de algumas questões, ainda assim ela conseguia fazer dar resultado nosso tempo junto.

Acontece é que ela alongou nosso ciclo de terapia, como ela chama, para mais algumas sessões, e ela persistiu várias vezes tópicos que eu continuei evitando até agora. Isso me fez perceber que ela queria incluir mais algumas coisas nesse ciclo ao me incentivar a falar delas, para que tivéssemos um resultado melhor. Ao menos, eu estava supondo que era isso.

E a verdade é que o nervosismo de época de provas, de final de ano, de encerramento de etapas, estava funcionando melhor do que a própria Morgan ao me incentivar a falar mais sobre os assuntos que evito.

Eu quero fugir das minhas dores maiores mas eu também quero ter o máximo de progresso possível antes de começar um completo novo ciclo de terapia novamente - antes de começar a minha vida do zero.

— Acredito que eu saiba o que você quer dizer, Alex — sugere ela, com incentivo no olhar, mas uma pontada de preocupação. — Você fez muito progresso aqui, Alex, tanto que estou orgulhosa de você — aponta, e eu acabo soltando um riso nervoso. — Nós trabalhamos juntos nessa porque você se esforçou em trabalhar comigo, então não se preocupe, nosso objetivo já está sendo alcançado. Você vai ter que seguir nossos planos à risca, ainda que opte por não seguir outro ciclo de TCC, para manter esse objetivo alcançado e pra seguir o ritmo desse progresso. Não vai ser fácil, mas você tem toda a capacidade de conseguir.

Assenti, em silêncio, a ansiedade batendo quando eu sabia que havia um "mas" depois disto. Sem conseguir me conter, incentivei: — Mas...?

Morgan sorriu.

— Mas ainda temos algumas coisas em aberto, não é? — questionou, e eu mordi o lábio inferior. — Em um cenário perfeito, poderíamos fechá-las antes deste ciclo acabar, mas a verdade é que eu não posso forçá-lo e você não deveria forçar a si mesmo também. Você pediu para que eu vá direto ao ponto e você sabe que a TCC é uma terapia que vai direto ao ponto, de fato. Mas, Alex, você precisa respeitar seu tempo para que esteja preparado para isto. Já tive pacientes que precisaram de dois ou mais ciclos da TCC para ter metade do progresso que você já teve em um, e isto faz parte. São passinhos de tartaruga, e cada um tem os seus. Ir direto ao ponto, aqui, neste contexto, depende mais de você do que de mim.

Acabei assentindo, incerto sobre continuar ou não. No meu tempo de hesitação, Morgan continuou:

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— É por isso que eu sugeri e sigo sugerindo fortemente que você não termine sua jornada nesse ciclo — apontou, dando de ombros, com um sorriso. — Se achar que outra modalidade de terapia possa ajudá-lo melhor, como a psicanálise ou qualquer outra, eu posso indicar outros terapeutas e psicólogos. Se quiser continuar comigo, em outro ciclo de TCC, eu sou toda sua. Eu estou do seu lado, Alex. Mas minha maior sugestão aqui é que você continue com a terapia até que esteja pronto para fechar estes "probleminhas" — brincou — pendentes, os que ficaram em aberto. Uma hora você vai estar pronto para falar sobre eles e eu quero que, nesta hora, você tenha todos os recursos e todo o apoio para externá-los, seja comigo ou com outro profissional.

Remexi-me na poltrona.

— Mas... — Pigarreei. — Mas e se eu tiver preparado agora? Você acha que poderia prejudicar nosso progresso aqui? — questionei, genuinamente curioso.

Morgan negou. — Se você realmente quiser se aprofundar em algum dos tópicos em aberto, se estiver mesmo preparado, não vai haver nenhum prejuízo aqui, Alex, pelo contrário.

Assenti freneticamente, um tanto desconfortável e ansioso, já havendo deslizado para a ponta da cadeira em nervosismo.

— E por onde eu começo? — perguntei, soltando outro riso nervoso.

Para ser sincero, não precisaria um gênio para saber qual desses tópicos era o mais importante, mas ainda assim desejei ouvir de outro alguém.

— Quer um empurrãozinho?

Acabei rindo. — Quero.

— Então, Alex... — começou ela, cruzando as mãos em cima da mesa, ajeitando-se para me olhar melhor. — A verdade é que a gente pode fazer terapia até que você esteja velhinho que sempre teremos assuntos a conversar e eu, trabalho a desempenhar aqui. Mas uma coisa é certa — apontou —, se você veio porque tem aracnofobia e está dificultando sua vida, conversar sobre sua ida ao parque de diversões do ano passado pode ser produtivo, como tudo na terapia, mas não ajuda o motivo de você ter aparecido aqui pra começo de conversa.

Engoli em seco.

— Falar sobre aranhas, neste caso, vai ser difícil, doloroso e vai te tirar da zona de conforto — explanou, sem romantizar. — Mas é o principal passo para que eu possa te ajudar.

Isto bastou para que eu sentisse meus olhos encherem d'água, só com a simples ideia de conversar sobre a minha "aracnofobia".

— Eu preciso falar dela — murmurei, a voz trêmula, o que ela quis dizer em outras palavras. Eu não precisei falar o nome para que nós dois soubéssemos a quem eu me referia.

Morgan assentiu.

— Eu acredito que, com base nas nossas conversas anteriores, conversar sobre a sua irmã pode ser crucial aqui. Acredito que, quando você diz que quer ir direto ao ponto, ela é este ponto.

Agatha.

Quanto mais tempo eu passava na terapia, pensando sobre a minha existência, mais eu tinha certeza que minha vida inteira era norteada por ela. Minha vida foi decidida por ela, pertencia a ela, começava com ela e terminaria com ela. Minha irmã morreu há anos, mas ela ainda era o ponto central da minha vida.

— Agatha...

Senti a respiração começar a pesar só de mencionar o nome dela, mais uma vez - e um nódulo dolorido entalou minha garganta, mais uma vez. Na última tentativa de falar dela, passei o restante da sessão chorando copiosamente sem haver sequer finalizado a primeira frase.

— Agatha era...

Mordi o lábio inferior com força, engolindo o choro assim que minha voz saiu distorcida porque ele viria com tudo. Morgan esperou pacientemente que eu me recuperasse, e eu esperei o choro entalado não retornar novamente.

Morgan usou as palavras certeiras: falar sobre minha irmã era, de fato, difícil, doloroso e me tirava da zona de qualquer possível conforto.

Eu queria afastar a imagem do ser humano mais incrível que já pisou na Terra de toda a grosseria dos sentimentos turbulentos e assustadores que geralmente acompanhavam minha memória sobre ela. Eu gostaria de poder simplesmente abrir uma pasta de memórias na minha cabeça sobre minha anjinha que só contivessem flashes dos sorrisos dela, das gargalhadas, dos detalhes dos olhos de gude, da portelinha nos dentes, das mãos pequenas de unhas minúsculas pintadas de colorido. Uma pasta de memórias que não trouxesse junto as memórias ruins, os sentimentos pesados e o luto.

Mas era mencionar o nome, era visualizar seu rosto sorridente em minha mente, que vinham a culpa, a dor, o medo junto. Às vezes eu me perguntava se havia alguma técnica de terapia que me permitisse lembrar dela sem que meu coração pesasse uma tonelada no processo.

— Agatha era o xodó da família — consegui formular, desistindo da ideia de separar as memórias boas das ruins que envolviam minha irmã. — Não havia ninguém no mundo que a conhecesse e não a amasse — pronunciei, e a voz falhou novamente, minha postura fraquejando. — Era o único... — Frisei os lábios quando a voz distorceu novamente pelo choro e respirei fundo. — Era a única unanimidade da família: o amor por ela. Nesse barco, nós três estávamos, sem exceção.

Inspirei e expirei lenta e distorcidamente, tentando normalizar minha respiração.

— Ela devia ser adorável — comentou Morgan, com um sorriso compadecido.

O choro retornou e intensificou em um piscar de olhos, e eu não consegui responder a não ser balançar a cabeça para cima e para baixo em concordância.

— Porra, por que tem que ser tão difícil essa merda?! — acabei reclamando em voz alta, limpando o rosto quase com raiva. Respirei fundo, esfregando os olhos outra vez.

Morgan suspirou. — Feridas abertas costumam doer mais.

— Como pode estar aberta depois de quase dez anos? — perguntei, mas foi bom que a raiva tenha me ajudado a formular as frases e me expressar com mais facilidade. — Anos se passaram e aqui tô eu, patético, afundado na mesma dor de sempre. Isso não pode ser uma ferida aberta, tá mais para ferida infeccionada — reclamei, limpando o rosto novamente. — As pessoas dizem que a dor do luto diminui com o passar do tempo, mas isso é mentira, pela minha experiência não é assim. Comigo parece que foi o contrário, parece que nunca doeu tanto quanto agora, parece que um dia essa dor vai me levar junto dela.

Morgan assentiu, parecendo cuidadosa sobre o assunto, mas o único que disse foi: — As pessoas vivenciam o luto de maneira diferente entre si.

— Eu queria vivenciar o luto de forma diferente — complementei, sentindo a raiva se dissipar um pouco. — Eu não entendo, sabe, Morgan, o porquê dela ser o assunto a ser discutido aqui, o meu "direto ao ponto", a minha "aracnofobia" — apontei, mas soou confuso. — Quero dizer, eu não entendo como pode ser que aquele serumaninho pequeno pode ser, até hoje, esse assunto monstruoso entalado na minha garganta. Não era pra ser assim.

Balancei a cabeça de um lado para o outro, a visão embaçando.

— Às vezes eu me sinto horrível por isso, sabe? — continuei, fungando, olhando para os carros lá fora. — Eu tenho pensado muito nisso ultimamente, em como a memória da minha irmã, da pessoa que mais amei na vida, se tornou algo tão ruim, tão pesado, tão dolorido. Eu sei que é porque eu sinto culpa pelo que aconteceu, e em certo nível, eu sempre penso que mereço que doa tanto assim, mas por outro lado...

Quando minha voz falhou, friccionei os lábios novamente e limpei o rosto, respirando fundo e enrolando a cortina nos dedos como conforto. Eu podia ver que ela ainda tinha as marcas de amarrotada que eu mesmo deixei nas outras sessões.

— Por mais que eu mereça todo o sentimento ruim, eu não acho que ela mereça ser lembrada dessa forma nem por mim nem por ninguém — confessei o que estava me incomodando. Não era justo com ela. — Me parte o coração enxergá-la tão... — Frisei os lábios. — Daquela forma tão horrenda...

Franzi o cenho, tentando afastar a imagem assim que ela brotou na minha cabeça, piscando ao olhar para os carros ao longe.

— Que forma horrenda é esta? — questionou Morgan, atenta, o tom de voz baixo. — Você se refere a ela de forma metafórica ou literal?

Desviei os olhos para ela, percebendo que a curiosidade era genuína. Foi aí que me dei por conta que não havia comentado nada disso com ela antes, nada sobre os detalhes dos sonhos, sobre a aparência da minha irmã, sobre as visões terríveis que eu tinha dela.

Morgan não tinha ideia do que eu estava falando.

— Das duas formas, eu acho — murmurei, olhando para longe novamente.

— Poderia descrever para mim? — insistiu, embora a voz mantivesse a mesma energia calmante.

Engoli em seco.

— Eu a vejo, às vezes — sussurrei, sem saber por que saiu um sussurro. Me senti desconfortável quando lembrei da cena do filme O Sexto Sentido em que o garotinho diz que vê gente morta. Remexi-me no lugar. — Nos meus sonhos e... — Mordi os lábios, ponderando sobre a possibilidade de sair daqui com um diagnóstico de esquizofrenia se dissesse que a via fora dos sonhos também, mas decidi seguir em frente: — E também quando tô acordado. — Morgan arqueou as sobrancelhas, curiosa, e eu explicitei: — Às vezes, eu a vejo pelo canto do olho, no reflexo do espelho, ou em algum canto do quarto. Dura poucos segundos, e eu me pergunto se realmente a vi ou se tô maluco de vez, mas é tempo suficiente pra eriçar meus pelos e formigar minha pele, tempo suficiente pra me lembrar que ela esteve ali. É como se ela quisesse me lembrar que sempre vai estar ali pra não me deixar esquecer que foi mina culpa — murmurei, engolindo em seco. — Eu sei que é maluquice, mas é assim que me faz sentir. E nos sonhos, eu realmente a vejo com todos os detalhes e... Ela sempre está sem cor, sem vida.

Eu a vi pelo canto do olho anotar algo na cardeneta, e logo questionar:

— O que acontece nesses sonhos?

Me recolhi para mais perto da cadeira, como se eu quisesse ser engolido por ela e sumir, mas trinquei a mandíbula e segui, porque se eu havia decidido passar por isso, eu iria até o fim.

— Ela aparece onde eu tô — murmurei. — No quarto, no pátio, na casa antiga, na casa nova... Geralmente ela nem diz nada — contei, me encolhendo mais. — Ela só aparece, sem dizer nada, e arranca meu coração do peito.

— São estes os pesadelos que você tem? — questionou, e eu assenti. — E é sempre a mesma coisa?

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Assenti. — Esse é o pesadelo mais comum, sim.

— E os que não são comuns?

Suspirei, parando para pensar nisso, trocando de posição na cadeira. A tensão fazia meu corpo doer como se eu tivesse fazendo uma maratona de corrida ruim.

— Às vezes eu sonho com o passado e em como eu tento mudar o futuro — contei, olhando para ela. — Sonho que ela tá morrendo e eu faço tudo que posso pra impedir que aconteça, mas geralmente acordo no meio do processo ou quando percebo que não vou conseguir — murmurei, sem enxergá-la direito, pensando nos tipos de tortura psicológica que meu cérebro desempenha comigo na inconsciência, até lembrar do pior tipo: — E às vezes, eu sonho com aquele dia.

Morgan parou a caneta no mesmo instante, e eu me encolhi, cruzando o olhar com ela no mesmo instante.

— O dia em que ela faleceu? — perguntou, mas tenho certeza que foi apenas uma formalidade, porque ela já sabia a resposta.

Não consegui formular uma resposta, então apenas assenti.

— Alex — chamou, e eu soube apenas pelo tom compassivo que ela sentia muito pelo que estava prestes a dizer —, você sabe que temos que falar sobre esse dia, não é?

Fechei os olhos, em desalento, contemplando minhas próprias escolhas.

Morgan e eu sabíamos que quando eu pedi para que ela fosse direto ao ponto, dentro do tópico principal sendo a Agatha, este era o ponto principal. Eu sentia que ela sabia para onde estávamos caminhando com essa sessão, e sendo muito mais perspicaz do que eu jamais seria, ela já havia chegado às próprias conclusões sem sequer ouvir o que eu vim aqui para relatar.

— Eu sei, Morgan — murmurei, desesperançoso, quando abri os olhos.

Minhas mãos começaram a suar quando meu objetivo da sessão de hoje começou a se concretizar, quase desejando poder sair correndo pela porta em arrependimento. Eu as retorci em um movimento ansioso e repetitivo, mas que eu sabia que me fazia sentir minimamente melhor, então por mais irritante que fosse, continuei.

Morgan parecia esperar algum tipo de consentimento para continuar e eu segui os olhos das minhas mãos para ela, assentindo novamente. Ela também se posicionou melhor na cadeira.

— Eu percebi que há algumas inconsistências no que você me relatou — começou ela, direto ao ponto, como eu pedi, e tenho certeza que comecei a ouvir meu batimento cardíaco pulsar pelos meus ouvidos. — E eu não tinha certeza, mas agora tô certa de que ao menos algumas dessas inconsistências são conscientes da sua parte, ou seja, elas são propositais da sua parte, Alex.

Pigarreei, desconfortável, como se algo tivesse pinicando na minha garganta, minha pele, meu couro cabeludo. Remexi as mãos, percebendo que elas começaram a ficar trêmulas e meu corpo dormente pelo nervosismo, e não soube dizer em que momento minha perna começou a balançar em movimentos frenéticos.

Pigarreei outra vez, mas apenas disse: — Continue...

Morgan não sorriu, não franziu o cenho, não esboçou nenhuma expressão, mas algo em seus olhos me fez pensar que ela queria sorrir, quase como se estivesse orgulhosa.

Meu nariz começou a pinicar e meus olhos embaçarem, mas continuei firme - ou assim eu quis pensar.

— Alex — continuou, como pedido —, você me disse que estava na casa de um colega quando sua irmã morreu.

Por alguns segundos eu não consegui destravar a mandíbula para abrir a boca e responder, me faltou coragem. Repensei todas as minhas decisões novamente antes de piscar lentamente e assentir.

— Sim — saiu a palavra, soando estranha nos meus ouvidos.

Morgan assentiu. — Você também me disse que foi você quem passou pneumonia para ela, porque você acredita que pegou primeiro — comentou, cuidadosamente — e, inclusive, ficou separado dela por alguns dias por conta disso.

Pisquei algumas vezes, querendo impedir que as lágrimas caíssem, o corpo inteiro rígido feito uma pedra, as mãos que se retorciam apenas apertavam uma a outra por força, segurança, o mais mínimo dos confortos.

— Sim.

Morgan passou a língua nos lábios secos, como se estivesse tão nervosa quanto eu, embora o rosto estivesse limpo de qualquer emoção. — Mas você também disse que estava internado no hospital quando recebeu a notícia sobre ela.

Porra, pensei, quando flashes daquele momento invadiram a minha mente sem qualquer permissão ou compaixão. Pisquei mais rápido, sentindo a respiração falhar.

— S-sim.

Morgan inclinou o rosto levemente para o lado antes de fazer a primeira pergunta dolorida: — Como você passou de estar tratando a pneumonia na casa de um amigo para estar internado no hospital ao receber a notícia sobre sua irmã?

Como eu fui parar no hospital?

As lágrimas bloquearam minha visão uma vez mais e senti o queixo tremer antes mesmo que a primeira caísse. Cerrei a mandíbula, tentando engolir o choro para poder contar a Morgan o desvendar dos acontecimentos daquela noite, externar todo o maior demônio, para que eu pudesse sentir logo o alívio que vem depois.

Mas logo um fio de memória traumática retornava como um redemoinho.

— O que foi que você fez, Alex?!

Meu corpo sacudiu rapidamente feito um terremoto, as mãos grandes engolindo meus ombros com tanta força ao sacudir-me que achei que quebrariam.

Ainda assim, não olhei para ele, não pude olhar, não consegui olhar.

— O que foi que você fez?! — repetiu, em um volume mais alto, mas eu não conseguia olhar para ele.

Meus olhos estavam na....

Puxei um pedaço de pele do meu dedo com os dentes, com tanta força que eu não precisava olhar para saber que sangrava, a ardência me despertando da memória ao passo que eu a chutava para longe. Meu corpo começou em uma tremedeira que se estendeu para a voz, um zumbindo iniciando nos meus ouvidos, como se todo meu corpo avisasse que eu estava entrando em zona perigosa.

— M-meu tratamento com rem-médio não durou m-m-muito.

Morgan assentiu lentamente, quase como se tivesse medo de me quebrar por completo.

— Então estava em casa? — questionou, mas sua voz não soava surpresa, apenas compassiva.

Tudo o que consegui foi assentir, ao passo que a respiração pesava. E quando eu voltei a olhar para ela, eu soube o que eu ouviria a seguir, e meus olhos se fecharam como se recusassem a ver o restante dessa sessão.

— Alex — chamou, o tom compassivo —, você viu acontecer?

Como se apenas um fiapo de autocontrole me segurasse, impedindo que eu desabasse, ele logo se desfez e eu me perdi por completo.

Meu corpo começou a tremer violentamente e, de súbito, quando as imagens do corpo da minha irmã de seis anos começaram a inundar minha mente, cobri os olhos fechados com rapidez, querendo tacar fogo nas lembranças do inferno.

Puta que pariu, que ideia filha da puta de querer enfrentar essa merda.

Ali estavam, flashes daquele filme de terror, fazendo semanas de terapia transformarem-se em pó. Era uma confusão mental repleta de detalhes que eu gostaria de apagar da minha mente e que eu gostava de pensar que, por deixar apossar-se da minha mente por apenas meros segundos durante anos, faziam-me lembrar de apenas metade.

Que bela de uma filha da puta de uma mentira do cace...

A imagem do bracinho dela suspenso, balançando de um lado ao outro ao ser carregada com pressa, subitamente voltou e no mesmo instante eu soube que foi o último vislumbre que tive dela.

Dói. Arde. Dilacera.

Eu queria mesmo externar tudo e sabia de certeza absoluta que seria a coisa mais difícil que eu faria, mas eu não sei por que não previ o ataque de pânico. Primeiro, achei que fosse apenas a ansiedade falando por mim, mas em seguida parecia que minhas vias aéreas se fechavam e nem todo o ar que eu puxasse para dentro deixaria meus pulmões satisfeitos.

Morgan levantou-se em seguida, percebendo o ataque antes que eu, e então tudo tornou-se um outro redemoinho de terror diferente que envolvia tentar fazer com que meu corpo parasse de entrar em pane. Ao menos, era isso o que tornou-se para a Morgan, porque para mim, tornou-se uma viagem ao passado mais cruel da minha existência.

Nenhum Alex estava ali com a Morgan.

Ele foi passear no inferno das memórias de um garoto amaldiçoado.

*

Eu estava na casa de um colega de classe, inclusive era um dos meus antigos amigos pré-Agatha que viraram inimigos no pós-Agatha, quando eu passei a descontar a raiva do luto em todo mundo.

Eu fiquei uma semana inteira na casa dele, tomando antibióticos, porque por mais leve que fosse a infecção e mais raro de passar aos demais, o caso clínico da Agatha impedia de deixarmos sua saúde na mão do acaso. Então, quando todo mundo pensou que eu estava bem, eu retornei para casa. Minhas memórias são meio nebulosas, então eu não saberia dizer se foi no mesmo dia que retornei ou na mesma semana, porém, o resultado era um só.

Eu não sei por que meus pais não desconfiaram da pneumonia que passei para ela, mas ela estava no meio de uma fase ruim asmática e, como era comum dela ficar mal, eles estavam dando os mesmos remédios de sempre.
Agatha começou a piorar naquele dia, mas eu também não achei que fosse nada demais, e depois de haver brigado com ela, fiquei enrolando o resto do dia para pedir desculpas. Estava com vergonha, principalmente porque ela adoeceu logo depois de eu haver sido rude com ela e ignorado-a o dia todo, então estava tentando achar o momento certo de ir até ela para pedir desculpas.

No entanto, ela acabou dormindo entre nossos pais no quarto deles enquanto cuidavam dela ainda cedo da noite, e eu não quis esperar para ver se iriam colocá-la a dormir no quarto dela mais tarde. Acabei dormindo muito mal, acordando algumas vezes de noite com tosse, até o momento que não consegui mais dormir.

Minha cabeça doía e eu estava meio tonto, ensopado de suor, mas fiquei sentado na cama ponderando se pedia ajuda ou não. Naquela época, meu pai não era tão ruim comigo, mas continuava sendo um chato, e eu já estava imaginando o tipo de coisa que ele diria quando eu o acordasse no meio da noite para dizer que também estava me sentindo mal. Sem falar que era a Agatha quem precisava de cuidados especiais, eu não gostava da ideia de cansar minha mãe mais ainda - eu tinha que ser o saudável, até para poder animar a Agatha e encorajá-la a tomar os remédios e ficar bem para brincar comigo.

A questão era que eu nunca havia chegado na conclusão de buscar meus pais ou não, porque ouvi uma tosse que não era minha no meio do meu devaneio enfermo.

Olhei para a porta, mais uma vez, pelos olhos daquele garoto, e eu não quis seguir o som aterrador.

Não, por favor, de novo não... — consegui murmurar, em uma súplica.

Meus ouvidos zumbiam ao passo que, mais uma vez, eu percebia que o som de tosse transformava-se em um anseio pela busca por ar. Aquele som assustador que era muito conhecido, ou eu pensava que fosse, já que era parecido com a crise asmática dela, vinha do quarto cor de rosa. Ainda que eu lutasse para sair da memória, me vi levantando da cama, ainda zonzo, em direção à porta.

Meu corpo tremia e eu sentia a pele arrepiar pelo frio, apesar do suor grudento em mim, e eu segui o som até o quarto dela com mais pressa do que recordava. Alguma parte de mim, mais velha, esperava que eu seguisse o som com o suspense do filme de terror, mas a parte mais jovem correu até o quarto, sabendo que tinha uma missão em frente - a de pegar uma das bombinhas, onde estivesse, para levar à boca dela.

Abri o quarto de supetão e acendi a luz, ainda que estivesse fracamente iluminado pela luminária, e mal olhei para ela antes de checar as gavetas atrás da bombinha. Meu eu de agora estremeceu com a visão de segundos, querendo gritar seu caminho para fora da lembrança, mas não conseguiu.

Então eu me vi correr até ela e vislumbrá-la com todos os detalhes cruéis daquela noite.

O rosto estava vermelho de uma maneira nunca vista, as mãozinhas estavam arranhando a própria garganta em busca de ar, a boca aberta, deixando visível a portelinha, perdendo a cor. E foi apenas ali que percebi que o som familiar da crise asmática havia dado espaço para aquele som silencioso e ensurdecedor: o engasgo, como se absolutamente ar algum conseguisse passar pelas suas vias aéreas.

Me tira daqui — sussurrei, em um fiapo de voz, sem conseguir sair. Em seguida, em um volume mais alto, repeti até que estivesse gritando: — Me tira daqui, me tira daqui, me tira daqui, me tira daqui, me tira daqui, me tira daqui...

E o pior eram os olhos.

As orbes azuis estavam esbugalhadas em puro desespero e elas estavam focadas em mim. Aquele garotinho era o herói dela, o salvador da pátria, o porto seguro, o melhor amigo, o cúmplice, o irmão mais velho. Ela não podia formar uma palavra, mas ela não precisava, para que eu soubesse que ela estava pedindo ajuda para mim.

Me deixa sair! Me tira daqui! Me deixa sair! — gritei o mais alto que pude, mas os olhos dela eram tudo o que eu podia ver.

Aquele garotinho miserável levou a bombinha para os lábios dela como se a própria vida dependesse disso, mas desde que ouviu o som desesperadoramente incomum da ausência da respiração, ele soube que não funcionaria. Era a única coisa que ele podia fazer, no entanto, então continuou tentando.

O rostinho começou a arroxear e os olhos a cerrarem-se e, quando o corpo começou a desfalecer, as mãozinhas dela já não estavam mais no próprio pescoço e sim, estendidas a ele. A mão esquerda espalmou no coração espremido do garotinho - no meu coração - antes de escorregar e cair lentamente.

Por favor, por favor... Faz parar. Faz parar, por favor — choraminguei, repetidamente.

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Fiz a única coisa que achei que poderia funcionar, como em filmes, e levei minha boca à dela ao passo que segurava seu nariz, para assoprar o ar para dentro e forçá-lo a ajudar minha irmã. Tentei uma, duas, incontáveis vezes, desejando forçar os pulmões malditos a funcionarem ao invés de maltratarem-na novamente.

Eu daria todo o meu oxigênio, eu daria os meus pulmões, eu venderia minha alma se necessário, para fazê-la respirar novamente, mas por algum motivo cruel, nada disto importava. Aquele garotinho, naquele momento, recusou-se a aceitar isso, e tinha certeza que se assoprasse forte o suficiente, ele seria capaz de trazer a vida de volta a ela.

Antes que conseguisse, no entanto, seu corpo foi puxado violentamente para longe dela.

Eu já não sabia se os gritos eram meus ou do garotinho infeliz, mas era de se supôr que não foi o silêncio da irmãzinha que acordou os pais. Assim que a mãozinha dela caiu e os olhos se fechavam lentamente, a porta foi praticamente arrombada pelos pais, cujo quarto ficava no final do corredor, e foi neste instante que a câmera lenta infernal acelerou muito mais do que o garotinho gostaria.

Ele queria voltar no tempo mas só conseguia ver o tempo voar para um futuro ainda mais aterrador do que o presente.

Um futuro sem ela.

Eu já não saberia dizer de onde vinha o choro descomunal, o desespero aterrador, os gritos agonizantes. Mas fui obrigado a revisitar os eventos seguintes, desde o horror no rosto de ambos meus pais, como um reflexo do que deveria ser o meu, até o desespero da correria de tentar salvá-la enquanto eu não pude salvar.

Em apenas um puxão, tamanha a força, meu pai conseguiu me tirar de cima dela, ao passo que eu sentia meu corpo voar para trás. Minha mãe, branca feito um papel como se toda a cor esvaísse do corpo dela, murmurava um misto de "meu deus!" com "o que houve?", seguidos do nome da minha irmã em um chamamento sem respostas.

As primeiras palavras do meu pai, as quais eu jamais seria capaz de esquecer, foram:

— O que foi que você fez, Alex?! O que foi que você fez?!

Eu não olhei para ele, ainda que estivesse encurvado na minha direção, as mãos grandes apertando meus ombro ao me chacoalhar, porque eu me peguei olhando apenas para o corpo desfalecido da minha irmã nas tentativas de cuidado das mãos pálidas da minha mãe. O garotinho, cujas mãos amaldiçoadas encontravam apenas o vazio, continuava a tentar chegar na irmã para salvá-la de algo que não poderia ainda que não estivesse sendo segurado para trás.

Em seguida, os murmúrios confusos e apavorados da minha mãe tornaram-se gritos desoladores que trouxeram um calafrio à minha espinha. As mãos grandes do meu pai retesaram contra meus ombros e eu olhei para ele pela primeira vez, os olhos escuros engolidos por puro horror e, após o grito estremecedor da minha mãe, algo mudou em sua expressão. A raiva tornou-se medo e os olhos enegrecidos tornaram-se vulneráveis, desfocados quando pousados em mim, como se não pudesse me ver. Era como se eu pudesse rever, novamente, o momento em que uma parte do meu pai morreu, assim como morreu em todos nós. Ainda de costas para elas, como se não pudesse encarar a realidade, ele olhou por cima do ombro, para onde eu tentava chegar à todo custo.

A mãe gritava algo sobre o hospital e sobre carregá-la, os olhos avermelhados do choro e esbugalhados com o medo. Revivi o momento em que os olhos escuros do pai voltaram-se ao garotinho à sua frente por um mero segundo antes que uma pressão dolorida se fizesse no meu peito seguida do meu corpo voar para trás. O pai empurrou o garotinho amaldiçoado com força pelo seu peito para que parasse de tentar alcançá-la, tanta que ele caiu sentado e suas costas bateram na parede.

Era aquele aperto no peito, aquela pressão, do qual eu tanto me recordava, aquele que doeu mais dentro do que fora.

O que doeu não foi a dor física, eu sequer a senti, dormente pela dor excruciante no meu coração. Tampouco foi o fato dele haver me empurrado em um momento frágil. O que doeu foi ser empurrado para longe dela, porque algo dentro de mim, mesmo quando um garotinho, sabia que esse espaço entre nós apenas aumentaria até que a morte nos separasse por completo.

Eu conseguia entender, revivendo a cena de terror, que meu pai precisava do tempo e do espaço para correr até ela e pegá-la nos braços sem que eu atrapalhasse, usando o tempo que levaria para me eu recompor do empurrão. Foi exatamente o que ele fez, ao passo que minha mãe seguia atrás, segurando-se nas paredes como se não tivesse forças, ao descerem escada abaixo.

Subitamente, senti que nem mesmo eu conseguia respirar ao vê-lo juntar o peso morto da minha irmã em um movimento apressado e indelicado antes de voar para fora no quarto. A mãozinha da Agatha, previamente pousada em meu peito, balançava desfalecida quando meu pai carregou-a e sumiu pelo batente da porta ao apressá-la para o hospital.

Foi o último vislumbre que tive da minha irmã, aquela visão de baixo, sentado no chão, no quarto cor de rosa.

— Não, não, não, não, não...

Eles mal haviam sumido de vista por um segundo quando me encontrei já na porta, ainda tentando alcançá-la, mas meu corpo subitamente ficou preso no batente da porta. Eu não saberia dizer por quanto tempo a empregada estava parada do lado de fora do quarto, mas ela fechou os braços em meu entorno para impedir que eu os seguisse escada abaixo. Eles foram rápidos, tão rápidos quanto o tempo passava sem me deixar voltar para trás, e eu não mais podia vê-los ali de cima.

O garoto amaldiçoado, no entanto, dava-se por conta de que havia algo pior do que perder a pessoa que mais ama no mundo: perder a pessoa que mais ama no mundo sem que ela saiba disto.

Não havia força no mundo, naquele momento, que o prendesse ali, porque a culpa sempre seria maior.

Ele mordeu a mão da empregada até que sentisse o gosto de sangue na boca, o que a fez soltá-lo instantaneamente, por um segundo - e um segundo era tudo que ele precisava. Me vi preso no momento que me perseguia em sonhos às vezes, aquele em que eu corria atrás dela, e se fosse parar para pensar, estive preso nesse momento a vida inteira: o momento em que tento alcançá-la.

Eu não posso deixar de tentar alcançá-la, de tentar impedir que ela se vá, de refazer a história, de consertar aquele filme de terror.

— Espera! — A voz infantil que vinha de mim saiu como um fiapo. — Esperem por mim! Espera!

Quando consegui sair para fora de casa, o carro já havia arrancado e eu não pude pará-lo, ainda que corresse como se minha vida dependesse disso. Podia ouvir os gritos da empregada ao passo que eu descia a rua atrás do carro que tornava-se cada vez menor no fim da rua, com uma velocidade absurda antes que dobrasse alguma esquina e eu não mais pudesse vê-lo.

Ainda assim, eu corri.

— Não, por favor! — O garoto continuava tentando. — Agatha! Não vai! Me desculpa! Agatha! Por favor... — Ainda que berrasse, sentia que a voz não saía mais do que um murmúrio, e ainda que corresse, sentia que não saía do lugar. — Espera!

Ainda que minha garganta ardesse e meus pés doessem e minha visão ficasse turva por razão diferente das lágrimas, eu corri atrás dela. Meu coração batia furiosa e dolorosamente no peito como se me lembrasse de que sim, estava ali comigo e não lá com ela. E tudo o que eu conseguia pensar era que eu não disse de volta.

Eu não disse que a amava de volta na única vez em que precisava.

Eu também te amo, anjinha.

Fica aqui.

Não vai.

Desculpa o maninho.

Fica comigo.

Eu também te amo!

Eu te amo!

Me perdoa.

Eu te amo.

*

— Alex!

Eu ainda podia vê-la, como um pesadelo incessante, a imagem não desvanecia por mais que eu quisesse, como quando você olha para a luz por muito tempo e um ponto aparece na sua visão por mais que você pisque para desfazê-lo.

— Você tá aqui? Hum? Está comigo?

Eu soube que era a Morgan falando comigo, e lembrava vagamente de seguir suas instruções ao passo que ela me acalmava durante o ataque de pânico, mas era uma visão fraca e distante. Eu ainda estava preso no quarto cor de rosa, a visão dele era forte e gritante.

Balancei a cabeça de um lado ao outro e, como se eu balançasse meu caminho de volta à realidade, isso me fez tornar mais ciente de onde eu estava e como eu estava. Senti minhas próprias mãos cobrindo as orelhas e as pontas dos dedos puxando meus cabelos, os joelhos na altura do peito, os sons ao redor como a voz da Morgan à minha frente.

Ela suspirou pesadamente quando neguei.

— Está, sim — apontou, calmamente, ao passo que eu me dava conta do mesmo. — Está aqui comigo. Então abra os olhos e veja que está aqui comigo.

Quando os abri, pude ver o que ela dizia.

Eu estava debaixo da sua mesa, encolhido, o corpo ainda trêmulo, e ela estava ajoelhada na minha frente, com um sorriso fraco, embora encorajador, a me esperar. Eu havia mesmo me rastejado para debaixo da sua mesa quando me perdi no passado, tentando respirar e fugir dos meus demônios, para em seguida deixar que ela me ajudasse.

Quando me localizei, suspirei também, o choro tornando-se silencioso ao passo que minha respiração voltava ao normal, um tanto entrecortada pelo lamúrio baixo.

— Ela m-m-morreu nos m-meus braços, Morgan — choraminguei, escondendo meu rosto novamente ao chorar mais, entre meus joelhos. — Foi m-m-minha cul-culpa.

— Alex, não foi sua culpa — garantiu ela, a voz de veludo, mas não importou.

Minha respiração piorou novamente.

— Ela morreu sem saber... Sem... Sem saber que eu... — Engasguei nas próprias palavras feito uma criança desolada. — Eu... Eu não consigo viver sem ela... Ela... Ela... — Morgan me abanou com um folheto, ainda murmurando alguma coisa que eu não ouvia. — Por quê? Por que ela foi? Ela... Tão... Tão pequena... Ela... Ela se foi, M-Morgan... Se foi e nunca... Nunca mais... Ela... Ela nunca soube... Ela.. A única... A única pessoa que me amava morreu p-por... Por m-minha... Por m-minha causa, Morgan... Ela m-morreu... Ela morreu... Ela morreu...

Eu sequer me reconhecia, estava perdido por completo. Como eu pensava, a dor me engolia para um abismo de luto.

— Eu sei, Alex, ela morreu — afirmou ela, quando consegui focar os olhos nos dela. Foi firme em complementar: — Mas não foi sua culpa e não foi por sua causa.

— Foi minha culpa... Foi... Foi minha culpa...

Morgan estendeu a mão e eu a segurei como um reflexo, porque precisava me segurar em algo, precisava de suporte, precisava de amparo.

— Levanta. — Apenas quando ela me puxou pela mesma mão que eu segurava firme sem perceber que eu percebi que foi por isso que ela me deu sua mão. Em seguida, deu instruções ao me manejar feito um boneco, e eu segui, como se fosse mesmo: — Senta na poltrona. Vamos, Alex. Ótimo. Agora leve o rosto entre os joelhos. Respira fundo.

Eu fiz o que ela instruiu.

Funcionou por um tempo, e eu pude analisar meu corpo da forma como ela me ensinou ao se acalmar, o coração bater mais regular, a respiração desacelerar, a tontura e o zumbido nos ouvidos sumir aos poucos. Demorei um tempo, distraído com as funções do meu corpo, até que eu me acalmasse e o choro retornasse de maneira mais desacelerada.

Meus pensamentos ainda estavam em uma desordem caótica.

— Ela era tão pequena, Morgan... — constatei, me ajeitando na poltrona, e voltando a olhar para ela. — Ela nem tinha vivido ainda... — choraminguei, tomado de culpa. — Era meu trabalho protegê-la! Era a minha função! Eu era o irmão mais velho, Morgan, ela confiava em mim. Ela estendeu a m-mão....

Não consegui finalizar por um tempo, o choro continuou feito um desgraçado.

— Ela estend-deu a m-mão pra m-mim... — contei, conseguindo visualizar como se eu a visse na minha frente, e era de quebrar o coração. Era de esmigalhar qualquer coração. Era de arrancá-lo do peito sem precisar sujar as mãos. — Ela pediu ajuda... Ela era minha responsabilidade... Ela...

— Ela não era sua responsabilidade, Alex, ela era sua irmã, sua amiga, sua semelhante — interrompeu Morgan, firme, embora ainda neutra. Arqueou as sobrancelhas: — Ela era uma criança e você também.

Neguei, pensando em como explicar o quanto isso não importava, até que me veio algo em mente: — Eu sou et-eternamente responsável por aquilo que cativo.

Morgan acabou sorrindo tristemente quando entendeu.

— É uma frase linda de um livro lindo, inclusive, um dos meus favoritos — confessou, e eu pensei que devia ter imaginado que seria. — Talvez seja uma das melhores denominações da responsabilidade afetiva. Mas você tem que saber aplicar, não acha? — Neguei, imerso na minha própria dor. — Nós já falamos sobre isso também: somos mais duros conosco do que com os demais. Você sabe que uma criança não deve carregar a responsabilidade de outra vida e que, mesmo que fosse possível carregar essa responsabilidade, algumas coisas não estão no nosso controle. Você sabe disso — afirmou, em seriedade, e não houve espaço para negar. — E ainda que você fosse um adulto e um médico, você ainda assim poderia não ter qualquer chance de salvar sua irmã, que dirá um garotinho de nove anos. Você sabe disso também, Alex. Você apenas é duro demais consigo mesmo.

Olhei para longe, tentando controlar a respiração, mordendo o lábio inferior enquanto tentava enxergar algum carro nos vultos nebulosos dos meus olhos embaçados.

— Vocês brigaram no dia em que ela faleceu e você não disse que a amava de volta — apontou, e eu senti a ferida sangrar um pouco mais ao ouvir de outro alguém algo pelo qual venho me culpando a vida inteira. — Isso é uma tragédia, mas acontece, e a gente não pode saber e não pode evitar — firmou. — Você não pode se forçar a jamais ficar chateado, triste, bravo, a ter emoções negativas humanas porque isso nos faz humanos. Essas emoções existem por um motivo. Não somos robôs. Não vamos estar felizes e contentes o tempo inteiro, recitando poemas e jogando flores e purpurina no ar, sempre uma aparição positiva na vida de todos que amamos, vinte e quatro horas por dia, porque isso não é normal, não é humano, não é natural. — E, como sempre, o que ela falava fazia um sentido absurdo. Eram coisas óbvias que, se você parasse para pensar, poderia chegar na mesma conclusão, mas por algum motivo... Você não faz isso. — Imagina colocar esse peso todo em cima da gente, de virar um robô contente para sempre, apenas para o acaso de alguém que você ama morrer e essa ser a última memória que eles terão da gente. — Morgan negou, firme. — Isso não é possível. Isso não é praticável. Isso não é vida.

— Então por que ela morreu justo quando a gente não tava bem? — me peguei questionando em voz alta, embora soubesse que Morgan não saberia responder, que ninguém saberia.

Morgan suspirou, negando.

— Eu não tenho resposta para isso, Alex. — Como eu imaginei. — Mas embora eu acredite que este cenário teria sido menos traumático para você, não acho que teria sido menos doloroso. Eu conheço a dor do luto também, ela é imensurável independentemente.

Assenti, limpando o rosto inutilmente.

— Eu sei. Eu acho que eu sei — corrigi —, eu só... Eu posso lidar com a dor de perdê-la, eu tenho feito isso por anos, mas eu... Eu só queria que eu não precisasse lidar com ela — sussurrei. — Eu só queria deletar a imagem da cabeça. Eu só queria esquecer. Eu tentei tanto esquecer que achei que tivesse esquecido mesmo. Mas é só eu entrar lá que eu consigo passar por tudo de novo, com todos os detalhes possíveis — murmurei, sentindo o estômago revirar com o vislumbre deles. — E quando eu entro, não consigo sair. As imagens, os sons, os cheiros, tudo tá marcado a ferro na minha memória. Morgan — chamei —, me diz qual é o propósito disso? Me diz como que falar sobre isso é melhor do que tentar esquecer.

Morgan pausou por um instante antes de dizer, calmamente: — Eu sou uma ferramenta, lembra? — Eu assenti, — Falar sobre isso comigo é bom porque eu estou vendo tudo o que você vê, mas pelo lado de fora, e do lado de fora eu consigo ver detalhes que você não consegue. E esses detalhes vão me ajudar a te ajudar, Alex. — E, por um segungo, eu quase acreditei de verdade. — Sem falar que, colocar para fora é sempre bom, não importa que não seja com uma profissional, porque comida estragada não se mantém no estômago, Alex, se coloca pra fora.

Acabei soltando um riso nervoso, limpando o rosto outra vez.

— É essa a sua metáfora de hoje, Morgan? —questionei, e ela sorriu. Engoli em seco, perdendo o sorriso ao me sentir angustiado novamente. —Tá precisando melhorar.

Morgan deu de ombros. — Estou errada?

Mas tudo o que ela conseguiu como resposta foi silêncio e, quando eu o quebrei, não foi com uma resposta: — Mas eu não consegui colocar tudo pra fora, Morgan — desabafei, angustiado e frustrado ao me dar por conta disso, porque parecia ter sido tudo em vão. — Eu não consegui te contar nada, eu só revivi aquele inferno pra nada, porque não pude externar. E agora mesmo é que não vou.

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Morgan já balançava a cabeça de um lado ao outro antes mesmo de eu conseguir terminar a sentença e, quando terminei, ela me puxou a orelha.

— Não minimize o que aconteceu aqui, Alex — pediu, qualquer resquício de diversão sumindo. — Você deu um passo muito grande. Você me contou o que mais importava no momento e ainda que não tenha relatado essa memória para mim, você a enfrentou sozinho e isso requer muita coragem e muita força — enfatizou, e eu quis me jogar no colo dela para chorar mais. — Eu estou muito orgulhosa de você. Você devia estar orgulhoso também. Você externou tudo o que precisava para esse ciclo de terapia.

Observei-a por um tempo, atrás de qualquer sinal de que estivesse mentindo ou exagerando, mas além da expressão denotar orgulho como ela mesma dizia, também me dizia que ela estava impressionada.

— Sério? — questionei, em um murmúrio.

— Sério.

Recostei-me na poltrona, me permitindo relaxar pela primeira vez na sessão inteira, observando-a finalizar nossos minutos ao me instruir alguns exercícios e muito descanso. E eu senti que realmente poderia descansar, porque havia aliviado um nó na garganta que apenas entortava mais desde a infância.

E talvez tivesse sido mesmo todo o cansaço emocional dessa visita ao passado do garoto amaldiçoado e do ataque de pânico que veio junto dele, mas quando eu deitei, eu dormi feito uma pedra naquela noite.

Meu coração seguiu batendo no peito em uma noite sem sonhos.

*

Morgan não me deu nenhuma pausa.

Na próxima sessão, na próxima semana, ela largou uma bomba no meu colo, uma tão grande quanto a bomba que larguei no colo dela sete dias atrás. E talvez tivesse sido a melhor - e a pior, em certo sentido - coisa que me aconteceu em muito tempo.

Eu havia passado pela prova de matemática naquela manhã e era um tópico que me gerava ansiedade extrema, porque foi nesta matéria que reprovei ano passado. Soube que fui bem, porque estudei para um caralho, mas mesmo assim, uma vozinha cruel na minha cabeça me garantia que eu repetiria outra vez e nunca sairia do ensino médio - e nunca seria livre.

Eu sei, eu sei, eu sei.

Morgan e eu já havíamos conversado sobre isso e sobre a tal da liberdade, inclusive em uma das sessões de terapia mais humilhantes da vida, mas era difícil desfazer pensamentos e crenças antigos e enraizados. Vez ou outra eu ainda me pegava pensando em que momento eu me sentiria livre de verdade.

De qualquer forma, todo dia dessa semana passei por uma prova diferente, e hoje em especial havia sido a de matemática, então eu estava exausto, mas também aliviado por já haver passado por metade das provas, a pior delas incluso.

Então eu já cheguei meio capenga para o nosso encontro, mas Morgan mal esperou as formalidades do dia antes de me largar essa:

— Alex, nós precisamos conversar sobre um psicodiagnóstico.

A palavrinha mágica já me trouxe um arrepio nada bacana, e algumas coisas me passaram pela cabeça. Diagnóstico me traz a sensação de uma doença terminal, e por acaso me peguei pensando, por mais irreal que fosse, se ela poderia saber se eu finalmente peguei um câncer de pulmão que me levaria até minha irmã. E então eu me lembrei que estou em terapia, e que o diagnóstico só poderia se referir a algo relacionado à minha cabeça disfuncional e me peguei tremendo na base ao me imaginar em uma camisa de força. Por fim, um último pensamento curioso me passou pela cabeça: será assim que Morgan se sente quando eu mal chego em uma sessão dela e já largo uma bomba em sua cabeça?

Haha, é de se ponderar se ela não tá se vingando.

— Diagnóstico? — tentei na minha boca, odiando ainda mais a palavra.

Morgan assentiu, com um papel em mãos.

— Desde a nossa última sessão, eu pensei muito sobre o seu caso e cheguei a um psicodiagnóstico que eu gostaria muito de compartilhar com você — apontou, de fato, parecendo querer muito compartilhar aquilo comigo, quase como se fosse algo bom. E aqui eu estava ainda me visualizando em uma camisa de força. — Eu revisei todas as anotações, só pra descargo de consciência, mas eu já imaginava que seria isto, antes da confirmação do evento estressor.

Pisquei, franzindo o cenho, ao desistir de tentar desvendar se o diagnóstico seria louco de pedra.

— O quê? — perguntei, precariamente.

— Alex, nós já sabíamos que você tem transtorno de ansiedade, inclusive, você a vem tratando há um tempo já, mas nossa última sessão confirmou que você tem um transtorno de ansiedade mais específico — pronunciou, palavra por palavra, como se tivesse medo de dizer rápido demais e me desnortear —, chama-se Transtorno de Estresse Pós-traumático, ou TEPT.

Ok, apesar de ficar preso na palavra "transtorno" por tempo excessivo, certo de que isso era sinônimo de "louco de pedra", eu me obriguei a engolir o resto do nome pavoroso, tentando lembrar de onde ouvi sobre isso antes.

Não me recordava de ver vídeos falando sobre TEPT alguma vez na vida nas redes sociais, apenas sobre ansiedade, depressão e o constante e possesso conteúdo sobre TDAH. Casualmente, autismo e mais frequentemente do que eu gostaria, narcisismo.No entanto, eu já havia visto algo sobre TEPT em filmes e talvez séries, e não era algo ao qual eu particularmente me identificava porque nunca usei um uniforme militar na vida.

— Como assim? — consegui falar, duvidando das habilidades de Morgan como se esse fosse nosso primeiro encontro. — Isso não é o que dá em soldados quando voltam da guerra?

Morgan assentiu.

— É comum em soldados que voltam da guerra, sim, mas você entende o porquê? — Pisquei, de fato, pensando sobre isso ao passo que ela falava: — O TEPT está dentro dos distúrbios de ansiedade, e ocorre em decorrência de um trauma. Você passa a reviver essa experiência traumática mesmo em segurança, podendo ter sido uma vítima direta ou no seu caso, vítima indireta da violência sofrida.

Pisquei, outro arrepio nada bacana subindo pela minha espinha.

— Mas eu não tenho isso. Eu só... — Engoli em seco, em negação consciente. — Sim, eu sou meio traumatizado, mas não é pra tanto, eu não tava em perigo, eu só...

— Seus sintomas são condizentes com o transtorno, Alex, e eu não estaria compartilhando isto com você sem ter certeza — interrompeu, e eu diria que ela estava ofendida, mas na verdade não demonstrava estar. Morgan estava séria, e eu finalmente comecei a levá-la a sério também. — Eu não estou te contando isso para que se sinta mal, pelo contrário. Eu repensei sobre contá-lo sobre o psicodiagnóstico porque alguns pacientes usam dele para justificar seus comportamentos e simplesmente abandonam a terapia depois disso, mas em alguns casos, como o seu, comunicá-lo a respeito só pode ser benéfico.

Continuei em silêncio, tentando processar o que eu ouvia, mas não conseguia sair da palavra "transtorno", tentando engoli-la.

— Alex, você tem feito suas tarefas de casa, tem prestado atenção em tudo o que compartilho com você, tem se esforçado para melhorar a sua vida, para mudar suas crenças prejudiciais, você tem sido ótimo. E acredito que saber de onde vem os seus sentimentos, as suas crenças, os seus pensamentos, só pode ser benéfico para o seu progresso aqui. Você precisa entender que existe um motivo para você se sentir assim e que não é apenas psicológico, é fisiológico também. Quando você revive esse episódio traumático, acontece algo que chamamos de "reação de revivescência", que é o desencadeamento de reações tanto psicológicas e emocionais quanto neurofisiológicas. Seu corpo inteiro reage a isso. A ansiedade, Alex, é basicamente o medo na ausência do perigo. É a reação do seu corpo e da sua mente, da cabeça aos pés, à crença de estar vivenciando a mesma situação de novo mesmo quando isso já nem é mais possível. É o formigamento que disse sentir quando pensa que viu um vislumbre da sua irmã pelo canto do olho, ainda que não haja nada ali, e a maneira como seu corpo inteiro reage a isso. É enxergá-la nos sonhos da mesma maneira como a viu no evento traumático, é voltar e reviver todos os sentimentos ruins que teve como se estivesse revivendo tudo outra vez. O TEPT se agrava justamente por você querer evitar reviver esses momentos e suprimi-los o máximo que pode, porque, sem o enfrentamento, a experiência traumática retorna em flashes e pesadelos, até mesmo em alucinações, e esses apenas pioram quanto mais você tenta evitar.

Pisquei repitadamente, desnorteado, tentando absorver um pouco do muito que me era dito. Havia um atraso na minha mente, e eu não conseguia acompanhar as sensações, como se eu realmente precisasse que a Morgan falasse no modo -2x para, possivelmente, digerir tudo.

— Você tá dizendo... — tentei, engolindoem seco, como se um nódulo diferente se formasse ali. — Você tá dizendo que isso tem nome?

Morgan assentiu, com muita cautela, ao passo que eu sentia meu mundo girar de cabeça para baixo, sem muita cerimônia, apenas me tirando do eixo sem aviso prévio.

O que eu senti durante a vida inteira tem nome?

Era demais para mim.

Subitamente me peguei engolindo a palavra "transtorno" junto da expressão "louco de pedra" ligeiro, porque meu interesse rondou em torno das palavras mais bizarramente curiosas que Morgan já disse para mim durante todas as sessões: "existe um motivo".

Existe mesmo?, me peguei pensando, esperançoso e angustiado. Existe um motivo? Existe uma causa? Existe um nome?

Minha cabeça girou em torno disso, com curiosidade e com cautela, analisando a possibilidade de ser real, se valeria a pena acreditar nisto sendo que o risco era sair daqui mais danificado do que antes caso não fosse verdade ou eu simplesmente houvesse entendido errado. Afinal, Morgan não mentiria para mim, e improvavelmente estaria errada.

Observei a possibilidade de todos os lados, analisando seu real significado, suas reais consequêcias, seus reais benefícios e malefícos, mas não pude chegar a alguma conclusão.

Demorei um tempo para conseguir ouvir o que Morgan respondeu há alguns segundos: — Tem nome, Alex, e tem tratamento.

Tratamento?, perguntei-me, os olhos arregalados. Um tratamento para os meus demônios maiores?

Não é possível.

— Presenciar a morte da sua irmã, e pior, pensar que aconteceu por sua culpa, foi um evento traumático para você — continuou Morgan, na ausência de uma reação da minha parte. Eu estava muito desnorteado. Incrédulo. Confuso. Fora de eixo. — Suas parassonias, suas crises de ansiedade, seus ataques de pânico, tudo iniciou aí. E particularmente, Alex, me chateia muito saber que você passou por um profissional que podia ter identificado os sinais iniciais do transtorno quando você era criança e iniciado o tratamento ali, mas ao mesmo tempo, fico feliz em saber que não só você buscou ajuda, mas está seguindo minhas instruções direitinho.

Retorci as mãos, decidindo entender os detalhes sobre o que Morgan estava falando antes de considerar se acreditava ou não:

— Morgan... Isso tem cura?

Ela suspirou como resposta e eu soube antes da resposta verbal.

— Não existe uma cura para o Transtorno de Estresse Pós-Traumático — conta, embora a voz estivesse entonada em um "mas" —, mas existe a possibilidade dele se extinguir com o tempo de tratamento adequado. E ainda que não se cure, juntos podemos reduzir os sintomas e aprender a viver uma vida funcional com o transtorno.

Morgan estava otimista, talvez por isso quisesse tanto me contar sobre o diagnóstico, para que eu também ficasse. Mas eu estava confuso e angustiado demais para chegar nessa parte.

— Que tipo de tratamento? — insisti, ainda sentindo como se isso não estivesse acontecendo comigo.

— Tratamento farmacológico, uma leve variação dos ansiolíticos e antidepressivos que você anda tomando — listou, em primeiro lugar, e eu pensei que não deveria ser tão ruim quanto eu imaginava, o que me deixou mais confuso ainda. Cheguei à conclusão de que realmente não entendia a magnitude do transtorno. Morgan, entretanto, continuou: — Tratamento psicológico, que é onde entra a TCC, é o que faremos aqui, principalmente a técnica de enfrentamento. Tratamento com exercícios de relaxamento muscular e respiração, e técnicas de manejo de ansiedade também ajudam. Há alguns tratamentos alternativos, dependendo dos sintomas apresentados — acrescentou —, mas estes são os principais.

Acabei remexendo as mãos, considerando as possibilidades, ainda tentando compreender. Assenti, perdido, mas algo havia me incomodado durante a resposta dela, e eu decidi perguntar, ainda que minha mandíbula quisesse cerrar-se na defensiva:

— Isso pode durar minha vida inteira, Morgan?

Morgan fica em silêncio por um tempo, parecendo escolher as palavras, e eu soube a resposta. — Vamos esperar que não dure tanto.

Pisquei, ainda analisando esse transtorno de todos os lados possíveis que eu passava a conhecer neste instante. Queria dizer alguma coisa, queria ao menos aceitar internamente o que me estava sendo oferecido, mas meu processador interno deu pane.

— Eu tenho muitas perguntas — admiti, o cérebro fritando, na ausência de alguma coisa produtiva a se dizer.

— Bom, eu tenho muitas respostas — brincou ela, e isso me arrancou um sorriso, e eu me remexi na cadeira, o corpo tenso. — Então perfeito.

Assenti, pensando em onde começar, mas óbvio que pelo princípio.

— O próprio nome diz que é pós-traumático — sugeri, cético —, então como é que passou desapercebido por tanto tempo e, não só isso, como só piorou mesmo agora que já se passou anos?

Assim que verbalizei, percebi que realmente era uma das coisas que me deixaram com um pé atrás sobre acreditar em Morgan, mas ela sequer hesitou antes de me responder.

— Infelizmente, Alex, que tenha passado desapercebido não é algo fora do comum — revelou, melancólica —, discutir abertamente sobre saúde mental é algo recente. Sobre a piora, bom... — Pensou por uns segundos, antes de retornar uma pergunta: — Se você estivesse com gastrite no estômago e não a tratasse por muito tempo, não é possivel que fosse evoluir para algo mais grave?

Fiz uma careta, cedendo ao mesmo tempo em que pensava sobre isto, subitamente me sentindo ansioso pela ideia dela estar correta. Uma descarga de adrenalina e nervosismo me fez remexer as mãos e balançar as pernas, ao passo que eu sentia meu coração acelerar um tanto.

— Talvez...

Morgan continuou: — E se você toma remédio para dor pode até conseguir mascarar os sintomas por um tempo, até que piore, não é? — Senti o sangue correr pelas veias, pulsando no meu ouvido, ao passo que a ficha começava a cair. — Você tem se incomodado com vários dos sintomas desde que o TEPT começou, Alex, e, consequentemente, você tem mascarado-os também. Não é por isso que têm fumado cigarro desde os onze anos de idade? Que tem usado drogas desde a pré-adolescência? — Pisquei, atordoado com as verdades escrachadas na minha cara, novamente, como se fossem óbvias demais para que eu não tivesse percebido por conta. — Não é para ajudá-lo a amenizar os sintomas de ansiedade, ou para ajudá-lo a dormir quando tem insônia, ou para ajudá-lo a não dormir quando tem parassonias e tem medo de tê-las novamente quando fechar os olhos? — Comecei a suar frio. — A reprovação no colégio não causou uma piora dos sintomas, a ponto de você ter mais dificuldade em mascará-los, ainda que aumentasse a dose das fugas ilícitas neste ano inteiro? E, além disso, a súbita abstinência da nicotina - aquela que tem sido sua fuga de vários sintomas desde os onze anos de idade - não o piorou a ponto de procurar por mim?

Senti um calafrio na espinha, me sentindo mais exposto do que nervo de dente inflamado, diante de olhos que todos meus detalhes viam.

Remexi-me na cadeira, pigarreando em desconforto.

— Quais são os sintomas mesmo? — decidi perguntar, ainda um pouco cético, como se ela fosse listá-los e eu pudesse interromper: rá, esses aí eu não tenho e esses outros que tenho são apenas uma depressão básica que qualquer garoto miserável tem!

Mas, novamente, eu estava errado.

— Ansiedade e depressão é comum na maioria dos casos, alterações de humor, como culpa, medo, raiva; e de sono também, como as parassonias que você relatou, insônia, terror noturno, pesadelos... — começou ela, e estava falando devagar com o cuidado de que eu tivesse tempo para absorver tudo. Meus pelos eriçaram quando ela continuou basicamente a listar todos os sintomas que eu apresento há anos: — Lembranças intrusivas como flashbacks e pesadelos sobre o episódio traumático, reações fisiológicas a estas lembranças - sintomas físicos decorrentes da descarga de adrenalina, como suor frio, tremores, taquicardia, tontura, dificuldade para respirar, reações exageradas a estímulos, em alguns casos pode haver reações dissociativas, como o que você mencionou sobre "estar preso na memória", dificuldade em sair dela. Também pode haver hipervigilância, comportamentos autodestrutivos, pensamentos suicidas; problemas de concentração, de recordação, de sono.

Se parasse para ouvir, o som era de uma ficha pesada caindo.

Fiquei com as palavras entaladas na garganta e Morgan me dirigiu um olhar compassivo. Em seguida, diante do meu silêncio atordoado, ela pôs-se a explicar o porquê dos milhares de sintomas que ela acabou de listar, em uma extensa aula de como meu corpo e minha mente funcionam:

— Isso tudo acontece porque a experiência traumática viola as crenças que você tem sobre a situação, sobre você mesmo e sobre o mundo — ensinou, como se desenhasse para mim todo o processo e eu podia realmente vê-lo como algo concreto. — A interpretação que você faz de um trauma é o que impulsiona o TEPT em primeiro lugar, e isso também afeta a memória. É por isso que é comum as inconsistências das memórias, porque é difícil para a pessoa que passou pelo trauma contextualizar o que aconteceu, poder enxergar o que houve junto dos aspectos benignos ou menos prejudiciais, por focar só nos aspectos negativos do episódio junto das crenças que nascem disso. Também é por isso que...

Meus olhos encheram de água antes que eu percebesse, e eu me segurei na poltrona para não cair, por mais irracional que fosse.

Quanto mais ela falava, mais ela me curava sem saber.

Era uma sensação bizarra e a única coisa que consegui fazer foi chorar baixinho, os olhos desfocados, repassando cada palavra dita na minha cabeça para ver todos os possíveis significados delas.

Ela havia listado meus sintomas e tudo pareceu tão pesado, mas quanto mais ela listava os porquês desses sintomas, explicando o que fazia com que eles surgissem e como tudo havia acontecido tão basicamente fora do meu controle pessoal, mais ela aliviava esse peso nas minhas costas. Morgan retirava alguns pesinhos de culpa de cima de mim e eu estava tão aliviado, tão chocado, tão grato, que eu não consegui falar nada.

Eu entendia que a causa de tudo o que eu sinto é metade minha, ainda que não houvesse culpa propriamente dita. Meu corpo e minha mente se defendendo por conta própria, ou seja, eu mesmo criando demônios pra me defender, fazia com que eu fosse a própria causa do meu sofrimento. Eu entendia isso, e eu estava trabalhando para um caralho para conseguir desfazer o que eu próprio fiz, para tentar remodelar pensamentos, sentimentos, crenças e medos. Isso era a temática da terapia em si, seja pela TCC ou por qualquer outro modelo de terapia: nos analisarmos para conseguir curar tudo aquilo que podemos.

Eu havia decorado toda essa merda, como se fosse conteúdo de prova do colégio, mas eu não entendia nem metade da prática dela.

Até este momento.

Eu finalmente conseguia ver a terapia consertar tanta coisa como se fosse um próprio bonequinho construtor arrumando um prédio mal nivelado. Só que, mais do que isso, aconteceu algo diferente com o psicodiagnóstico. Mais do que simplesmente entender que eu sou a causa dos meus problemas e tenho que consertá-los, eu também conseguia ver que havia uma causa externa para que eu fosse a causa interna. Havia um "porquê" e havia um "como", e isso era tão fodidamente libertador.

Era a personificação de "foi por minha causa, mas não foi minha culpa". Meu corpo e minha mente fizeram isso, mas eles não tiveram escolha, não sem apoio, não sem conhecimento, não sem maturidade, não sem amparo.

A sensação era absurda, era dolorida e reconfortante ao mesmo tempo.

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Meu choro foi silencioso desta vez, eu não solucei ou choraminguei, as lágrimas desciam uma após a outra e me molharam o rosto e o pescoço, como um banho, como se minha alma estivesse sendo lavada. E eu não consegui dizer nada, eu apenas ouvi, pisquei para deixar a visão um pouco mais nítida antes dela embaçar outra vez, e respirei com lentidão.

— Você ainda tá aí? — perguntou, e eu suspirei como se minha alma retornasse ao corpo levemente.

Assenti, não conseguindo abrir a boca, me sentindo estranho.

— Eu sei que é muita informação para você digerir agora, e você terá tempo, mas eu preciso reforçar a importância de conversar sobre o episódio traumático — aprofundou, séria. — Nós teremos que entrar em detalhes, Alex, essa é uma jornada extensa, não pense que não. Você vai ter que reviver o que aconteceu muitas vezes até que consiga contextualizar o ocorrido. Vai ser importante conversar com outras pessoas também, não só comigo, principalmente com sua família. Eu pensei na sua mãe, quem sabe — tentou ela, mas com um toque de questionamento em sua voz.

Engoli em seco, finalmente saindo do transe, e limpei o rosto quietamente, ainda sentindo-me sedado. — Que bem isso traria?

Morgan suspirou pesadamente.

— As inconsistências nas memórias dentro do TEPT, eu as identifiquei nos seus relatos também, Alex. É muito comum, quando a gente tá trabalhando com o transtorno, deparar-se com falhas na memórias e essa mistura atemporal de lembranças que encaixem em uma narrativa culposa de uma crença distorcida — expôs, e eu franzi o cenho. — Alguns detalhes sobre a ordem de acontecidos me pareceram bem confusos, realmente como as memórias que temos da infância — mencionou, soltando um sorriso fraco. — Especialmente, em se tratando de um trauma sofrido quando criança. Se quer um exemplo, é a portelinha no sorriso da sua irmã. Lembra? — perguntou. — Você me mostrou a foto dela, segundo você, do mesmo verão que vocês pegaram pneumonia e no qual ela faleceu.

Acabei ficando cada vez mais confuso, recém digerindo parte das coisas que ela havia dito sobre falhas de memória e confusão de lembranças.

— Sim — falei, mas soou como uma interrogação quando prolonguei a vogal. — O que tem? Não entendi — reforcei, as sobrancelhas juntas.

— Ela não tem uma portelinha naquela foto — explicou, com cautela, mas um pouco de satisfação por pensar estar certa na sua própria teoria. — E é bem pequenininha, aparenta ter uns três, quatro anos no máximo.

Parei para pensar, os olhos desfocando em resposta, me recordando que isso era verdade. Eu amo aquela foto e carrego para toda parte, e eu a conheço do avesso, em todos os detalhes da minha irmã, do que ela usava, dos fios da franja fora do lugar, do cenário atrás.

E do momento em que foi tirada.

Ou...

Assim eu pensava.

Abri e fechei a boca, pronto para dar uma explicação, mas eu não tinha nenhuma. Ela não tem uma portelinha na foto, todos os dentinhos pequenos estão ali, eu estou certo disso. E quando ela faleceu, ela tinha uma portelinha, estou certo disso também.

— Será que me enganei? — perguntei, mais para mim do que para ela, pensando sobre isso.

— Quer minha opinião? — Morgan chamou minha atenção para ela e, um pouco temeroso, assenti. — Eu tenho um sobrinho de cinco anos — comentou, com um sorriso mínimo, e eu arqueei as sobrancelhas. Morgan raramente falava sobre sua própria vida de forma concreta. — Ele começou a perder os dentes de leite um pouco antes de começarmos nossas sessões, eu e você, e agora ele tem uma portelinha nos dentes de baixo. Se você entende um pouco sobre crianças, saberia dizer que é nessa época que eles começam a trocar a dentição.

Assenti, juntando as sobrancelhas novamente.

Sinceramente, o assunto me revirava o estômago - qualquer coisa relacionada a crianças pequenas e detalhes que me relembravam da Agatha, e eu agradecia pela Morgan não se estender ali, mas eu ainda estava confuso.

— Ok — tentei, pigarreando. — Então eu tava errado, a foto não foi tirada na mesma época em que ela...— Engoli em seco. Eu ainda não conseguia falar sem pensar duas vezes. — Na mesma época. Isso é importante?

Morgan assentiu.

— É importante, sim — afirmou, seriamente. — Significa o que já sabíamos, a cronologia dos acontecimentos está uma bagunça na sua memória, porque você passou um trauma, Alex, e não quis revisitá-lo. — Pisquei. — Isso significa que há lacunas na sua memória, rombos na sua memória que aconteceram pela recusa em revisitá-la, lacunas que foram preenchidas pelas crenças disfuncionais do seu subconsciente. Então... — Fez uma pausa, cautelosa porque sabia que eu negaria a sugestão:— Além do fato de que conversar sobre o ocorrido seja parte da terapia para o TEPT, comigo e com os demais, falar com alguém que esteve com você durante o episódio traumático pode ser benéfico também. Alguém que possa ajudá-lo a preencher essas lacunas para que possamos, juntos, contextualizar seu trauma para tratá-lo, Alex.

Neguei rapidamente.

— Eu acho que entendo, Morgan, mas eu não tô preparado pra falar com ela — defendi, e Morgan apenas assentiu, respeitando. — E eu nem tô acreditando realmente que eu tenho um transtorno assim, que eu possa...

Suspirei pesadamente.

Eu não conseguia sequer pronunciar.

Tomei coragem para questioná-la, para que ela confirmasse que eu podia sentir essa leveza, esse alívio, sem me preocupar com a possibilidade de estar errado. Eu queria a permissão dela para acreditar que meu maior demônio é um transtorno que me assombra no escuro do quarto desde que eu era criança e que ninguém acreditou quando eu disse que ele estava lá.

E que eu estava certo.

Esse monstro é real.

Meus demônios tem nome, tem causa, e tem tratamento.

— Morgan, você tem certeza que eu tenho isso? — perguntei, a voz falha e miúda, e levei alguns minutos para conseguir encará-la. Morgan não precisou dizer nada, e um som escapou da minha boca: — Ah. — Mordi o lábio inferior, já maltratado, quando senti o baque da resposta silenciosa. — Eu realmente tenho um transtorno — acabei murmurando, sem perceber. — Eu não imaginei que tivesse — sussurrei. — Eu pensei que fosse só eu, mas não era.

Limpei o rosto, sorrindo sem entender o porquê, ao passo que o sorriso se transformou em um soluço e eu me desatei a chorar. Morgan estendeu a mão na mesa para que eu fizesse o mesmo, e apertou minha mão em apoio da mesma forma que o fez quando disse que poderia me ajudar.

E porra, isso me fez chorar mais ainda, porque ela realmente cumpriu.

É difícil não criar um laço com alguém que, puta que pariu, juntava meus pedaços diariamente e me ajudava a conectá-los novamente. É impossível que eu possa não amar a existência de uma pessoa assim e não reverenciar o trabalho que me salvava diariamente.

Eu nunca me senti tão grato em toda a minha vida.

Por mais irônico que fosse, após Morgan me desmontar com o fato de que eu jamais seria livre da maneira como gostaria ao fugir dos meus demônios, o que me fez quase desistir da terapia, com a ajuda dela eu finalmente consegui sentir um gostinho do que é liberdade.

Eu desejei pular na cama pela primeira vez em muito tempo.

Eu senti falta.

*

Era o anjo que me visita à noite.

Não tive o sono tranquilo como pensei que teria, porque ali estava ela novamente, flutuando no ar feito um anjo da morte vestida em branco. E, novamente, eu fugi dela, tentando me arrastar para longe porque meu corpo parecia ainda mais pesado que normal.

Estamos na antiga casa e eu engasgo no próprio choro ao vislumbrar a piscina na qual fomos tão felizes, mas é apenas para lá que posso me dirigir para escapar da justiça das mãos dela. Eu choramingo pedidos de perdão, implorando para que ela me cedesse piedade, e me arrasto para perto da beirada da piscina. E, quando ela se aproxima, acabo escorregando para dentro da água gelada.

Eu me afogo ao gritar por perdão, assim como Caleb se afogou, e vou descendo até o fundo da piscina. O interior dela, alterado pelo sonho, era tão vasto quanto um oceano, e tão iluminado quanto os filmes fazem parecer que é, de forma que eu a vejo mergulhar atrás de mim com a mão estendida Um som estridente sai da minha boca, ao passo que engulo mais água, em um grito choroso por perdão. Porém, por mais que engolisse a água do oceano inteiro, o universo jamais me permitiria morrer tão fácil.

Um som de filme de terror aumentou de volume, rompendo meus tímpanos, eriçando os pelos dos meus braços, ao passo que eu a enxergava chegar mais e mais perto de mim. O anjo aproximava-se tanto que eu já podia distinguir as orbes esbranquiçadas, vazias de vida, a garganta pálida marcada de arranhões feitos com as próprias unhas e os lábios azul-arroxeados. Eu me debati para me livrar da visão, mas tudo que consegui foi chegar ao fundo do oceano, sem lugar para fugir.

Quando a mão alcançou minha pele e começou a afundar-se no meu peito enquanto eu urrava de dor, pela primeira vez, eu decidi não mais fugir. Abri os olhos fechados pela dor, ainda sentindo o corpo inteiro entrar em choque, e olhei no fundo dos olhos esvaziados de vida. "Tá tudo bem, anjinha", falei em pensamento, segurando seu pulso e o empurrando para mais dentro de mim ainda que queimasse de dor, "pega, é seu, mas me leva junto". Senti a mão fria envolver meu coração em um aperto desgraçado quando puxei ainda mais seu braço para conseguir puxá-la para mais perto e abraçá-la. Envolvi seu corpinho miúdo e gelado com meus braços trêmulos, e fechei os olhos, esperando acabar.

Subitamente, a dor começou a desvanecer e o gelo começou a esquentar, até que eu me sentisse indolor e aquecido o suficiente para parar de tremer. Meu corpo subiu mais e mais e mais para a superfície do mar, meus pulmões parando de arder antes mesmo que eu saísse da água.

Quando abri os olhos, estávamos os dois flutuando acima da piscina.

Desci o olhar e encontrei a mãozinha quente espalmada em meu peito, sem atravessá-lo - pelo contrário, ela apenas o tocava ternamente, como se tivesse medo de tocá-lo e fazer doer. Quando foquei os olhos nela, senti o coração aquecer junto de sua mão, percebendo que seu rosto estava ruborizado em vida e os grandes olhos azuis estavam límpidos e coloridos como nunca deveriam haver deixado de ser.

Minha mão, que estava envolta em seu bracinho, deslizou até sua mão espalmada no meu peito, e que estava quente e, ao contrário da minha, estava seca assim como seus cabelos e seu vestido braco flutuante. Apertei- ainda mais contra meu peito, desejando acalentá-lo ainda mais, a dor se esvaindo por completo.

— Você...

Agatha sorriu, colocando tudo de volta em seu lugar, e declarou: — Eu só queria colocá-lo de volta no lugar.

Acordei subitamente.

Meu coração retumbou em meus ouvidos em volume considerável e eu engoli em seco, tentando me localizar. Suor estava grudado no meu corpo retesado pela tensão do sonho, as lágrimas molhavam o travesseiro contra meu rosto, e não ousei abrir os olhos. O som característico do ventilador capenga me dizia que eu estava exatamente onde adormeci: no quarto do Mason, no colchão reserva ao chão do quarto.

Sequer me mexi, tentando entender o que havia acontecido, querendo mais do que nada retornar àquele sonho que divergiu tanto dos outros pesadelos.

Principalmente porque eu queria vê-la daquela maneira novamente.

Um suspiro veio da minha frente, tão próximo que o ar tocou em meu rosto, e eu retesei no mesmo instante, mas levei menos de um segundo para saber de quem se tratava.

Eu a reconheceria de olhos fechados em qualquer lugar.

Sua testa encostou na minha, e eu senti meu lábio inferior tremer ao passo que mais lágrimas eram produzidas e, em seguida, seus dedos acariciarem meus cabelos com tanta ternura que eu não ousei me mover um centímetro.

Eu não quis abrir os olhos, não queria acordar, não queria espantá-la.

Choraminguei, tentando controlar a respiração, ainda retesado.

— Qual é o problema, maninho?

Sua voz foi a música mais linda que ouvi em quase dez anos e me desestruturou por completo, ao passo que eu soluçava baixinho. Seu cheiro me remetia a tintas gouache, suas mãos eram ternas ao acariciar meus cabelos, sua testa estava aquecida e seu hálito tinha cheiro de algodão doce.

— Tô com medo de acordar — sussurrei, como um pedido. — Esse não era o sonho que eu tava esperando ter com você.

Agatha solta um risinho e, talvez porque tenh meus olhos fechados, soa exatamente como eu me lembrava, como se ela ainda tivesse seus seis anos de idade e houvesse achado algo bobo engraçado.

— É porque esse tá no meu controle — diz ela, a voz infantil contradizendo com a maturidade das palavras bem pronunciadas —, o desastre só acontece quando é você que controla.

Engoli em seco, querendo me aconchegar mais para perto dela, mas com medo de espantar o sonho para longe.

— É? — acabo perguntando, em um murmúrio.

Sua testa se move, encostada na minha, para cima e para baixo, indicando que ela assentia.

Uhum — concordou, seriamente. — Às vezes eu tento entrar nos seus outros sonhos, mas sua cabeça é bem teimosa e eu não consigo — conta, e eu quero rir ao invés de chorar, porque parece verdade. — Quem fica no controle é você.

— É? — consigo repetir, com dificuldade, para mantê-la falando.

Uhum — repete ela, descendo os dedos para acariciar meu rosto também com a mãozinha. — Acha mesmo que eu arrancaria seu coração do peito?

Engoli em seco, sentindo-me culpado. — Acho que é uma metáfora — consigo dizer.

Agatha solta outro risinho que acariciou minha face, e diz, da mesma forma que fazia quando criança: — Que bobisse.

Com muita cautela, por medo de que ela desvanecesse, ergui meu braço e encontrei sua mãozinha, tirando-a do meu rosto e segurando com delicadeza, para que continuasse a sentir a textura da sua pele aquecida na minha. Quando confirmei que ela seguia ali, abri meus olhos e finalmente pude enxergá-la como no último sonho, embora um detalhe estivesse diferente.

Agatha não tinha seis anos aqui, ainda que eu sentisse a mãozinha pequena na minha, ela aparentava a idade que teria hoje se ainda estivesse viva: quinze anos. Levei a outra mão ao seu rosto e o acariciei, vendo-a sorrir lindamente para mim, percebendo que estou vendo-a exatamente do jeito que imaginei que ela seria quando adolescente.

Crescida de uma maneira que nunca pôde crescer.

— Me desculpa, anjinha — pedi, em um murmuro falho, porque nenhum pedido de desculpas jamais seria o suficiente.

Agatha levou a outra mão para o meu rosto também, enquanto as outras estavam entrelaçadas, e fez um carinho que cura, limpando uma lágrima que caía do meu rosto.

— Nunca precisei desculpar você — sussurrou ela, a voz soando triste. — A única pessoa que precisa te desculpar é você mesmo, maninho.

Fechei os olhos momentaneamente, saboreando as palavras como se fossem verdade, sentindo partes de mim sendo unidas novamente. Desejei tanto que isso estivesse acontecendo de verdade, que chorei um pouco mais ao imaginar que acordaria logo.

— Eu não consigo — sussurrei de volta, reabrindo os olhos.

Agatha esboçava uma expressão tristonha.

— Faz por mim — pediu em um murmúrio. Leva a minha mão ao coraçãozinho dela - e ele batia tanto! Engoli em seco, tão genuinamente feliz de sentir algo remotamente parecido em um sonho que gostaria de manter minha mão em seu coração vivo para sempre. — Faz dodói bem aqui quando você se maltrata por minha causa. Não destrua a cama se ainda pode pular nela, mesmo sem mim — sussurrou, e eu desabei.

Acabo soluçando e puxo ela para mais perto, aconchegando-a no meu peito como eu gostaria de nunca haver deixado de fazer. Subitamente, sem vê-la, ainda consigo sentir que é pequenina como quando tinha seis anos novamente e perdeu-se no meu abraço, unindo seus pequeninos em meu entorno.

— Sinto sua falta — sussurro, fungando contra seu cabelo, que tem cheiro de xampu infantil. — Todo dia.

Agatha enfia o rostinho no meu peito e sua cabeça move-se para cima e para baixo, assentindo, antes de dizer: — Também eu.

Apertei-a ainda mais contra mim, o choro retornando, quando ouço as palavras trocadas que ela tanto dizia quando criança, e desejo mais uma vez ouvi-las para sempre bem assim, conservadas pela memória.

— E eu amo você — declarei o que vinha me culpando a vida inteira por não dizer de volta, a voz falha. — Eu amo tanto, tanto, tanto você. Todo dia.

Agatha abraçou-me mais forte de volta.

— Também eu.

Eu queria poder mantê-la ali comigo, mas eu sabia que uma hora acabaria acordando. E, por mais que não fizesse o menor sentido, eu sabia que eu não teria mais sonhos assim, mesmo que eu desejasse tê-los com tudo em meu ser.

— Alex — chamou, e eu atendi ao abrir os olhos e descê-los para ela. Agatha sorri com tanta ternura que eu me senti sendo costurado de volta no lugar só com aquilo. — Eu sei — sussurrou. Não pisquei ainda que as lágrimas caíssem, por medo que ela desvanecesse em uma piscada, justo quando dizia todas as coisas que sempre desejei ouvir dela. — Maninho, eu sempre soube.

Abracei-a novamente, sentindo que ela realmente era um anjo e que eu acabava de receber um pedacinho do céu. — Obrigado, anjinha, obrigado. — Ouvi outro risinho dela e a embalei como fazia quando tentava fazê-la dormir, murmurando "eu te amo" contra suas mechas louras pelo que pareceu uma eternidade, até que eu a fizesse dormir.

Ao menos, assim pensei.

Eu a embalei até que eu me fizesse acordar e, quando abri os olhos pela manhã, eu fiz a promessa de pular na cama por ela como se não houvesse amanhã.

Gosto de pensar que, onde quer que ela esteja, isso a fez sorrir.