Made of Stone

XLIV. De todas as famílias do mundo


Era o último dia.

Este seria o último dia em que nossa panelinha estaria completa, dentro deste colégio, como estudantes. A partir de agora, nós - os que restaram -, seguiríamos em frente sem o nosso mentor, nosso líder, nossa cola. Afinal, tudo havia começado com ele - não seríamos uma panelinha de amigos se não fosse pelo estímulo dele, e se acaso encontrássemos uma maneira de acabarmos juntos, não seríamos todos, e não seria o mesmo. E se eu parasse para pensar, tudo havia começado com ele dentro desse colégio, mesmo quando ele não era estudante daqui ainda. Nossa história - e a nossa história - havia começado quando ele entrou correndo por aquele portão e eu o vi pela primeira vez.

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Engoli em seco, puxando a gola da camisa para cima para esconder o pingente de bala antes de cruzar o mesmo caminho que Alex cruzou correndo ao entrar nas nossas vidas.

É algo bom, me convenci, isto é sobre ele e não sobre mim.

Está mais do que na hora de deixá-lo ir.

Estanquei subitamente no lugar, tentando engolir o nódulo da garganta.

— Que foi? Tá com medo de reprovar? — perguntou Ian, ausente da cabeça desmiolada como sempre, ao pausar a caminhada para olhar para trás.

— Sinto que eu já reprovei — murmurei para mim mesmo, antes de suspirar pesadamente e seguir em frente.

— Quê?! — perguntou ele, e Mason suspirou comigo, levando uma mão ao meu ombro e o apertando em conforto.

Em uma era completamente digital, é questionável que nosso coleginho de fim de mundo apenas anunciasse as notas em papel, nos murais dos corredores. Mas, por algum motivo - que eu sempre suspeitei ser apego ao passado e não os julgava por isso -, era assim que eles preferiam. No fim do ano letivo, nossos boletins eram entregues pessoalmente aos nossos pais ou responsáveis - ou, no caso dos nossos maiores de idade, como o Alex, entregues ao próprio aluno - em uma data destinada apenas a isto. Assim, ficávamos sabendo se havíamos pego exame e em quais matérias, mas nos nossos queridos murais de cada turma é onde anunciava a data dos exames. Neles também eram erguidas as notas dos exames, se aprovados ou não, um dia após havermos passado por eles, com exceção de alguns professores ansiosos que já erguiam as notas no mesmo dia.

Hoje, no entanto, eu estava aqui justamente para checar minha nota em literatura, que nunca foi um ponto forte para mim, e que também havia sido meu último exame. Ian estava aqui para passar por mais um, o de ciências, e também checar a sua nota de literatura. Korn também iria entrar para um exame de física da turma dele, se não me engano, mas o restante de nós tinha outro motivo além de fazer exames ou checar nossas próprias notas para estar aqui.

Alex.

Ele havia mandado mensagem no grupo poucos minutos atrás, informando que estava atrasado e que MJ estava com ele a caminho - e no fundo eu sabia que ele estava era enrolando para vir por medo. Ontem ele havia feito o único exame que precisou fazer, de química, e hoje ele viria para ver se passou. Por incrível que pareça, ele passou direto pela prova final de matemática, sem precisar ir para os exames, a matéria que havia reprovado-o ano passado. No entanto, química o segurou para trás, mas ele havia estudado muito com a ajuda da MJ e eu estou certo de que ele conseguiu.

De qualquer forma, todos viemos - todos mesmo.

Quando Mason, Ian e eu chegamos, havíamos sido os últimos, porque todos já estavam ali em frente ao mural do terceiro ano. Eu havia enrolado por medo de encarar esse dia, seja qual fosse o resultado, da mesma forma que Alex estava enrolando para vir.

— Que susto, achei que fosse o Alex! — exclamou Grace, quando virou para trás e nos viu, a mão no coração.

— Susto por quê? — perguntei, o coração subindo à boca, meus olhos arregalados intantaneamente procurando o nome do Alex no mural. — Ele reprovou de novo?!

Grace estalou a língua. — O que você acha?

Entrei no meio deles para enxergar melhor, encontrando a lista do exame de química e encontrando o nome dele logo de primeira no "A". Ele havia persuadido todos os professores e o resultado estava ali naquele "A" abreviado que escondia seu primeiro nome: A. Alexander Cunningham Lacroix Young. Nenhum professor ousava escrever ou pronunciar seu nome completo. E o que importava vinha depois da nota alta, escrito em verde: aprovado.

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Minha visão embaçou no mesmo instante e eu tranquei a mandíbula para tentar fazer as lágrimas ficarem ali e não caírem, não ousando olhar para os demais nem desviar os olhos da palavrinha escrita. Senti um misto de orgulho, alívio, alegria e tristeza mútuas.

Era agridoce, porém, mais doce do que acre.

Eu ouvi Ian comemorar atrás de mim, espalhafotoso do jeito que ele era, e os outros o aquietarem por medo do Alex chegar e descobrir assim. Acho que no fundo todos nós queríamos que ele descobrisse por conta própria, lendo seu nome ali, sabendo que ele conseguiu conquistar isto por si próprio, mas que sempre estivemos ali ao seu lado por conta própria também.

Acho que era por isso que todos viemos.

Era de conhecimento público que Alex estava passando por uma terapia intensa, mudando seus hábitos diários, e deixando-nos a par de algumas coisas as quais ele se sentia à vontade de compartilhar. Ele havia feito alguns pedidos, a respeito da gente ajudá-lo quando o assunto era drogas e fumos, para que ninguém o estimulasse a voltar a usá-los e que tivesse cuidado de, por enquanto, não beber ou fumar perto dele, porque ele ainda tinha dificuldade em ficar longe. Todos nós concordamos e o ajudamos como podíamos.

Também não era segredo que esse ano havia sido infernal para ele, desde a reprovação até ter sido expulso de casa agora no final do ano.

Quando o Alex começou a fazer terapia, acho que todos paramos para refletir sobre o quanto ele estava precisando disto mesmo. Havia ficado um tanto evidente o quanto ele estava mal, de todas as maneiras possíveis, ainda que eu tenha sido o único que o viu alucinar diante dos meus olhos - e não pelo simples ato de fazer terapia, porque até Grace e Bex faziam, mas pelo fato de que Alex deixava explícito diariamente que não queria estar buscando ajuda.

Não que precisássemos de um motivo, no final das contas, a gente só queria estar aqui por ele.

— É bom que ele não demore — reclamou Cristina, checando o horário no relógio —, porque eu tenho o exame de história daqui meia hora.

— Não precisa ficar nervosa — interrompeu Grace, em um tom compassivo —, você vai ir bem. Eu bem sei — enfatizou, batendo no peito, mas Cristina revirou os olhos.

Grace, de alguma forma, conseguiu convencê-la a aceitar ajuda para as provas e exames finais. No começo, quase desistiu, porque Cristina a expulsou várias vezes de sua casa quando estavam estudando por causa de suas brigas ou, segundo Grace, "porque Cristina é muito chata". Mas eu acho que isso foi bom, porque elas parecem mais próximas e mais tolerantes uma com a outra.

— Eu não tô nervosa — resmungou, olhando para longe com a melhor cara de quem não se importa com nada, mas acho que Grace também não comprava mais essa história.

Grace se aproximou e Cristina deu um passo para trás, mas ela foi rápida e passou um braço em torno dela, a mão em seu ombro e a outra em seu braço e apertou firmemente. Cristina odiou todo o contato físico, o que causou riso nos demais, e Grace sorriu de forma maligna, porque sabia que ela estava incomodada com todo o afeto e não se importava nem um pouco, continuando a abraçá-la até que ela se desvencilhasse feito uma gata arisca.

Cris também estava controlando um pouco mais o uso da maconha pessoal, por causa do Alex, e nunca fumava perto dele. Mas esses tempos surgiu uma publicação dela nas redes sociais, marcando a Grace, de uma sessão de estudos no meio da fumaça, e eu acho que elas nunca se deram tão bem quanto quando estão chapadas.

— Mas falando sério, eu também tenho exame — disse Ian, coçando os cabelos desajeitadamente. — O ruim é que a gente não tem nem como ir até ele, o chato não diz onde tá morando.

— Eu também tenho — contou Korn, mas deu de ombros, abraçado em Bex —, mas tem um tempinho ainda. Logo ele chega. — No entanto, ele franziu o cenho. — É mesmo. Ninguém descobriu ainda? Mason?

A especificação em Mason era óbvia: ele sabia de tudo e o que ele não sabia, ele acabava descobrindo no final das contas. Mas, por algum motivo, ele subitamente pareceu descobrir algo chamado "privacidade" e justo quando eu mais preciso da ausência deste algo, ele decide me falar que não iria simplesmente cavar buraco sobre a vida dos seus amigos. Ridículo.

Eu devia saber que aquilo era muito fora do personagem, se tratando do Mason, mas só descobri naquele instante, depois que ele pigarreou, ajeitou os óculos e anunciou:

— Ele tá ficando na minha casa.

Pisquei, incrédulo, e cheguei a me desencostar da parede.

Subitamente, uma série de "como assim?", "tá brincando?", "desde quando?", "por que não nos contou?" saiu da boca de todo mundo, e Mason apenas piscou, daquele jeito dele que, no momento, achei bem irritante. Dei um passo em frente, e eu mesmo enfatizei firmemente, por todos: — Desde quando?

Mason me olhou, piscando muito, mas não mentiu. — Desde que foi expulso de casa.

Mais uma série de exclamações e questionamentos explodiu, mas Maze firmou os olhos em mim o tempo todo, enquanto eu digeria, algumas coisas fazendo sentido. A súbita aproximação do Mason com o Alex, mesmo que sutil; as recusas dele de que eu fosse até sua casa, sempre preferindo ir até a minha; as duas vezes que pisei em sua casa nos últimos dois meses e que Alex suspeitosamente já estava lá, uma delas porque havia se antecipado quando programado de todos irem e na outra, quando apareci de supetão, ele simplesmente havia decidido passar um tempo com o Mason; as diversas vezes que os dois, por "coincidência", chegaram juntos no colégio; e óbvio, a maneira como Maze não teve interesse nenhum em descobrir onde Alex estava e, inclusive, evitava o tópico sempre que possível.

Eu vou matar os dois.

— Porque — começou, porém, pigarreou pela mentira seguida — o Alex pediu. Ele tava com vergonha de ter que pedir moradia pra um de nós, então...

Mentira.

— Se ele pediu, por que tá contando agora? — perguntei, acidamente, enquanto os outros também ficavam curiosos.

— Porque ele superou isso e disse que eu podia contar se quisesse — falou rápido demais, a resposta pronta. — A terapia ajudou.

Mentiroso!

Cruzei os braços no peito, com ódio no coração, tentando entender o que havia por detrás da mentira. Mas não precisei pensar muito para deduzir, e fiquei com tanta vergonha quanto ódio, e talvez um pouco de gratidão - mas só um pouco.

Mason era quem não queria que eu soubesse, o próprio Alex tinha me dito que havia prometido não contar, e só podia ser por minha causa. Maze provavelmente não queria que eu perdesse seu ombro amigo por estar sendo o ombro amigo do Alex também. Acho que essa foi a coisa mais desconfortavelmente empática que o Mason já fez, mas ainda assim, eu não concordava que fosse motivo para mentir para mim dessa forma.

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Esse tempo todo eu pensei que Alex estivesse na casa de algum rolo.

Suspirei pesadamente, vendo que Maze continuava a me olhar a despeito da conversa acirrada dos demais, como se buscasse perdão. Devagarinho, me aproximei dele sem chamar atenção dos outros, e só falei, sem olhar em seu rosto:

— Odiei — resmunguei, olhando para longe —, mas entendo por que você fez isso. — Engoli em seco e, sem querer muito, acrescentei: — Obrigado, mas não faça de novo.

Pelo canto do olho, vi que ele empurrou o óculos para cima e assentiu.

— É ele? — Ouvi Dan perguntar e todos se agitarem. — Ele chegou!

Todo mundo se virou rapidamente, formando uma parede de pessoas em frente ao mural, um ao lado do outro. Alguma pessoa aleatória tentou se aproximar para ver as notas, mas Bex basicamente chispou-a dali. Quase me senti mal por isso, mas a estudante teria que esperar para ver a própria nota.

Alex estava sendo basicamente arrastado pelos corredores do colégio por uma insistente Mary Jane.

Ele usava uma roupa toda preta, para variar, e um boné virado que eu reconheci puxava seus cabelos para trás. Havia ganhado um pouco de peso, o suficiente para que as roupas não parecessem boiar tanto no seu corpo. Uma careta estava formada em seu rosto, os olhos pretos varrendo o local com ansiedade antes de nos ver, os lábios curvados em um sorriso forçado para algo que MJ dizia para ele.

Coloquei o peso do corpo em outra perna, ansioso, observando-o se aproximar.

Sua expressão mudou quanto mais perto chegava, não mais só temeroso e ansioso, mas confuso e um tanto divertido. É claro, ele não estava esperando ver todos aqui.

— Perdi alguma coisa? — perguntou, assim que chegou perto o suficiente. — Tem alguma festa de final de ano hoje? — perguntou, desconfiado, antes de dar uma olhada ao redor do pátio e voltar para a gente quando foi negado. — Vocês todos vieram ver as notas?

Assenti, vendo que a maioria assentiu também, alguns sorrisos ansiosos no rosto de todos. Alex percorreu o rosto de cada um com desconfiança, antes de vislumbrar parte do mural atrás da gente, a ficha caindo um minuto depois.

— A minha nota? — especificou, um sorriso um tanto incrédulo, desconfiado e divertido com a situação. — O quê? Sério mesmo?

Como a gente combinou de não falar nada para não denunciar o resultado antes dele ver, só assentimos, um risinho que outro no meio da nossa pequena multidão de amigos. Não que adiantasse, acho que estava óbvio pelo nosso bom humor que ele havia finalizado o colégio bem aprovado, mesmo assim, a tentativa era válida.

Alex engoliu em seco, tocado por isso.

— Porra, vocês querem me fazer chorar uma hora dessa da manhã? — perguntou, rindo para disfarçar que a voz havia mesmo falhado.

Eu estava focado demais no Alex e cada detalhe das suas expressões para seguir o roteiro planejado, então só percebi que devia me mover quando Mason e Bex basicamente me empurraram um tanto para o lado e eu me movi por conta própria. Todos deram espaço para ele chegar até o mural, metade para um lado e metade para o outro. Mary Jane, que estava ao lado dele, ficou onde estava ao empurrá-lo para frente.

— Só vai — estimulou, também sabendo o resultado por uma mensagem de Bex. — Arranca o band-aid e seja qual for o resultado, estamos aqui pra comemorar ou afogar as mágoas. A gente te ama, otário.

Alex deu uma olhadinha para ela rapidamente e voltou-se para o mural outra vez, passando os olhos por mim antes. Fiquei ansioso por ele, mas fiquei quietinho ao passo que ele se aproximava do mural com receio.

Uma eternidade pareceu se passar enquanto ele observava o mural com os olhos presos em seu próprio nome aprovado. Vi que ele engoliu em seco algumas vezes, tentando controlar suas próprias emoções, mas um indício de sorriso em seu rosto deu brecha para que alguns já começassem a comemorar baixinho.

— Eu tô...

— Livre — especifiquei, quando ele não conseguiu completar.

Alex olhou por cima do ombro, os olhos pretos marejados encontrando os meus, em uma comunicação silenciosa. Ele sorriu de canto, com agradecimento - e ali estava outra imagem tatuada na minha memória - e todos começaram a gritar em uníssono, pulando e comemorando em torno dele.

— Livre feito um passarinho, meu bem — cantarolou Bex, abraçando-o com força. — Voa!

Alex riu, em meio ao choro, e assentiu. Em seguida, iniciou-se uma fila para abraçá-lo, dizer o quanto estávamos orgulhosos, que estávamos com ele e que esse era apenas o início de sua história. Um por um, todos revezaram em abraçá-lo, ao passo que os demais estudantes olhavam sem entender.

— Eu falei que você ia conseguir, irmão! — Ian concluiu, fungando também, talvez ainda mais emocionado que o próprio Alex, praticamente enforcando-o com um abraço.

Alex sorriu, levando uma mão para fazer um cafuné nos cabelos escuros do primo, como se fosse uma criancinha, apesar de haver precisado erguer o braço pra alcançar a cabeça do Ian. Havia um contraste do tratamento para a diferença de altura entre eles, que parecia aumentar.

— Que bom que você sabe que a gente é irmão, Ian — comentou, falando sério. — A gente nunca foi primo de verdade, você sempre foi meu irmãozinho — declarou, e eu já previ o choro do Ian antes de acontecer. — Obrigado por tudo. Eu te amo muito.

Se eu fiquei sentido com a declaração de amor, que dirá o Ian. Ele escondeu o rosto na curva do pescoço do Alex, encurvando-se mais, e ficou assim um tempo até controlar o choro.

— Sacanagem dizer isso uma hora dessa da manhã, Alex — comentou Korn, apontando para o estado do Ian, cujo rosto estava em uma vermelhidão quando se desvencilharam.

Alex riu, limpando o próprio rosto, parecendo sem jeito com toda a situação. — Vocês que começaram — defendeu-se, com um beiço.

— Isso porque a gente desistiu da ideia de um discurso ainda — riu-se Grace, e os outros concordaram, gargalhando. — A gente desistiu porque sabia que o Ian ia quebrar — brincou, a Ian nem teve forças de reclamar sobre a mentira.

A gente desistiu porque achou que seria demais mesmo, e que o Alex não iria se sentir confortável com a situação.

Ele franziu o cenho, coçando os cabelos debaixo do boné. — Mas por que tudo isso?! — questionou, com um riso nervoso.

— Porque a gente te ama — respondeu Mary Jane, dando de ombros. — Porque você merece.

— Porque todo mundo vai sentir sua falta mas, ao mesmo tempo, todo mundo tá torcendo por você — acrescentou Korn, com um sorriso largo.

Alex assentiu, engolindo em seco, contorcendo as mãos.

— Obrigado — conseguiu dizer apenas. — Vocês são foda.

Todo mundo se agrupou para abraçá-lo novamente, desta vez, um abraço em grupo ao qual eu me juntei.

Alex pareceu tão miúdo no meio da gente, não só por estar cercado de pessoas e por haver emagrecido tanto que parece ter menos altura, mas também por estar acuado, como se não soubesse receber tanto amor - quase como se também não entendesse de onde veio tanto amor que ele não viu acontecer.

No entanto, foi ele que fez acontecer.

Alex pode ter uma família quebrada em casa, mas aqui ele tem família inteira. Aqui ele tem um lar de onde jamais será expulso, um lar abstrato ao qual pode ir e vir quando desejar e precisar, onde sempre será recebido de braços abertos. Ele não será desrespeitado, nem trancafiado, nem invalidado, nem abandonado por ninguém dessa família. Aqui ele é aceito do jeitinho que ele é, e é exatamente por conta dele ser quem ele é que o amamos tanto.

Para mim, essa é a única família válida.

Sinceramente, o grande espetáculo que fizemos do dia de hoje era para que Alex soubesse disso. Era para que ele entendesse que, agora que está pronto para voar sozinho e sair desse lar, indo para onde quiser, ele sempre pode voltar para sua família a qualquer momento.

E, a julgar pelo brilho em seus olhos escuros, eu acho que nós aprovamos também nessa missão.

*

Eu acabei acompanhando Ian até a sala para o exame, lado contrário para onde Alex foi com o restante da panelinha, e olhei para trás algumas vezes, vendo-o rodeado de amigos ao caminhar em direção ao chafariz.

Quem sabe fosse a última vez que eu o veria naquele cenário.

Todos já estavam combinando de comemorar ainda hoje com alguma festa ou junção, ou até mesmo alguma janta especial, enquanto também discutiam sobre a formatura do ensino médio que seria na semana que vem. É claro que também haveria uma festa para comemorar a finalização do ensino médio com a turma do terceiro, e que nós também estávamos convidados, assim como os amigos do Alex de sua antiga panelinha.

Eles discutiam as opções de hoje quando caminhamos para lados opostos.

No final das contas, acabei sendo o único que não abraçou o Alex individualmente. Em minha defesa, eu iria abraçá-lo depois do Ian, mas ele começou a chorar por causa das palavras do Alex e o abraço em grupo veio em seguida. Ainda assim, eu sentia que tinha algo pendente, mas não poderia simplemente chegar lá e abraçá-lo agora que todos haviam abstraído da emoção e estavam rindo ao planejar festas e comemorações.

— Eu sei que não é o momento, mas você acha que a Grace tá gostando do Dan?

Pisquei, desvencilhando-me dos meus próprios pensamentos e focando a visão nos olhos alargados de cachorro abandonado na minha frente.

De todas as coisas que pensei que o Ian iria falar, depois de se acabar chorando nos braços do Alex, essa não era uma delas. Olhei para trás novamente, focando em algo que não fosse o Alex dessa vez, e encontrei Grace debaixo do braço do Dan.

Suspirei.

— Depois de toda essa função em torno do Alex não reprovar, seria um desastre irônico se você reprovasse no exame justo hoje por estar distraído com aqueles dois — decidi comentar, e ele fez uma careta.

— Seria — concordou, puxando um pedaço de pele do dedo, os olhos fixos no chafariz. — Mas você não respondeu minha pergunta.

Segui seu olhar, observando de longe o grupo que diminuía de volume ao passo que os demais que iriam fazer os exames se dispersaram em direção às respectivas salas, e suspirei.

— Não sei — admiti. Ultimamente eu só tenho focado no Alex, nos exames e no meu futuro infeliz sem ele. Sequer prestei atenção em mais alguém, que dirá dois deles juntos. — Talvez. Você teria que perguntar pra ela.

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Ian estalou a língua, como quem diz: impossível.

— Não entendo o que ela vê nele — resmungou, emburrado, os olhos preocupados. Evitei dizer que eu conseguiria listar várias coisas que ela pode ter visto nele, já que o Dan tinha várias qualidades. — Você é que podia perguntar pra ela, né?

Arqueei uma sobrancelha. — O que ela vê nele?

— Não! — reclamou, frustrado, com um beiço. — Se ela gosta dele.

— Ian...

— Por favor — pediu, unindo as mãos. — Se você gosta de alguém, eu posso perguntar também.

Pisquei, um tanto surpreso pela barganha, mas também pela escolha de palavras. Pensei um pouco antes de sorrir e analisá-lo feito um terapeuta: — Se eu gosto de alguém? — perguntei, e Ian assentiu, bobo. — Então quer dizer que você gosta da Grace?

Ah, um dos pequenos prazeres dessa vida, ver um amigo todo errado por causa de um interesse amoroso.

— Cala a boca — xingou, virado em um pimentão, sem conseguir olhar para mim. — Não foi isso o que eu quis dizer.

Eu podia torturá-lo um pouquinho mais, mas eu tinha meus próprios motivos para estar ansioso e distraído, e não queria aprofundar essa conversa faltando dois minutos para o Ian entrar e fazer o exame.

— Eu vou perguntar — prometi, me rendendo. — Mas se ela pedir segredo, não vou te contar. — Ian estalou a língua novamente e eu tentei chispá-lo dali. — Vai fazer seu exame logo.

— Tá, mas e você? — insistiu, ainda com os olhos no chafariz, ansioso, como se fosse um perigo desviar os olhos dali e a Grace se agarrar com o Daniel. — Não quer que eu pergunte a ninguém?

Remexi-me no lugar, desconfortável. — Não.

Pela primeira vez na conversa, Ian pareceu focar em mim, um tanto pensativo ao me olhar de cima a baixo. — Você não gosta de ninguém, Caleb? Nunca gostou? — insistiu, como se recém parasse para perceber isso.

Cruzei os braços na defensiva. — E você? — devolvi, mas Ian franziu o cenho.

— Não gosto de ninguém — mentiu, mas ainda estava focado —, mas já gostei de várias meninas e você sabe. — Ele se referia às paixonites que ele tinha que duravam um dia e meio. — Mas você...

Ian parou para me analisar, o cérebro sendo colocado para trabalhar pelo que parecia ser a primeira vez na vida. Arqueei as sobrancelhas, só esperando alguma pérola sair da boca dele.

— Sério que nunca gostou de ninguém? — perguntou, confuso, antes de soltar um riso ao comentar algo que parecia achar bobo: — Sabe que por muito tempo achei que você gostasse do Alex?

Se eu estivesse bebendo algo, teria cuspido na cara dele.

Eu tive essa impressão, mas não sei ao certo que expressão esbocei. Seja qual fosse a expressão, no silêncio absoluto da incredulidade e na tontura dos meus batimentos cardíacos acelerados, ela confirmou alguma coisa ao Ian. Ele abriu e fechou a boca, a ficha caindo em algum lugar de sua mente, os olhos arregalando-se como se houvesse descoberto um segredo universal.

Senti o rosto queimar, quase como um carma socando a minha cara por haver feito o rosto dele avermelhar segundos antes.

— Espera. Você...

— Cunningham — resmungou a professora, da porta da sala, com uma cara de quem chupou limão. — Será que poderia agraciar-nos com sua presença para que todos possam iniciar o exame? Ou quer ser reprovado diretamente? Aí facilita as coisas para todos — acrescenta, ajeitando os óculos retangulares.

Minha alma retornou ao corpo no mesmo instante, ao passo que Ian me dirigia um último olhar chocado antes de correr para dentro da sala. Soltei a respiração quando a porta foi fechada, sequer entendendo o porquê de havê-la segurado.

Quero dizer, qual o problema do Ian saber sobre mim? O que ele poderia fazer, contar para o Alex?

Eu mesmo havia feito isso, pessoalmente.

E ele havia retribuído.

Engoli em seco.

Ian é um bobão. Até mesmo quando está certo, está errado. Impressionante que ele nunca percebe nada e mesmo quando percebe algo, ele mesmo acha que está errado a ponto de desperceber. Eu não me surpreenderia se ele saísse daquele exame e dissesse que não entendeu nada e que acredita que não gosto de ninguém.

Independentemente disso tudo, eu não me importaria de contar ao Ian sobre mim da mesma forma que conto ao Mason. Eles são meus amigos mais antigos, eles são minha primeira panelinha, sempre fomos um trio à parte dos demais. Só que, depois de pensar um pouco, eu entendi o que me incomodou: eu não gostaria que ninguém soubesse sobre eu e o Alex, em específico, o que eu sinto por ele ou o que aconteceu entre a gente. Gostaria até de poder apagar da mente do Mason também, porque não quero ninguém falando sobre isso, nem perguntando, nem nos observando.

Não quando o que mal começou já chegou a um fim.

Não quando eu ainda não processei que chegou a um fim.

Quietamente caminhei até o chafariz, encontrando o grupo diminuído no meio de uma despedida. Alex insistia que eles não precisavam esperar, porque ele iria embora com o Mason e mataria tempo até a hora dele sair, aproveitando seu último dia como estudante. Grace dizia que eles deviam acertar por mensagem se essa junção iria acontecer hoje mesmo ou não, e os demais concordaram.

— Ah, Caleb, você tá aí. — Dan chamou, quando cheguei perto o suficiente. — Você vai embora com a gente ou vai ficar também? — perguntou, ainda abraçado em Grace.

Relanceei Alex rapidamente antes de negar. — Vou ficar.

Alex sorriu levemente, dando duas batidinhas ao seu lado no chafariz, um convite silencioso que aceitei, o gosto agridoce retornando à minha boca.

— Tá, então vamos combinar melhor por mensagem sobre a junção — instruiu Bex, balançando o celular. — Eu vou com vocês — disse, referindo-se a Grace, Dan e Mary Jane. — Levo todo mundo na parada de ônibus e depois volto pra buscar o Korn.

Mary Jane apertou a bochecha do Alex antes de seguir os demais para a saída, e então ficamos nós dois em um silêncio monumental.

Alex estava sentado nesse chafariz quando tive ciúmes dele pela primeira vez ao vê-lo com a MJ. Também foi aqui que iniciou a primeira e logo, a segunda panelinha que continha o Alex. Foi sentado aqui que ele contou a todos sobre sua sexualidade. Foi bem aqui que, três meses atrás, eu percebi que ele iria embora e tive a sensação de abandono. Foi um pouco mais adiante do chafariz que eu o segurei e acusei-o de abandonar-nos antes do tempo. E foi naquele mesmo dia que eu fui até ele e admiti que sentia o mesmo, o dia em que nosso pequeno universo a dois se transformou.

Alex só queria fugir antes do tempo porque devia ser um inferno viver naquela família despedaçada. Ele sempre pediu ajuda silenciosamente e nenhum de nós ouviu de verdade.

Eu não ouvi.

Só ouvi meus próprios problemas.

— No que você tá pensando? — perguntou ele, depois de alguns minutos em silêncio.

Olhei para ele, me sentindo envergonhado por tudo o que eu o fiz passar, focado na minha própria dor, desejando reescrever essa história. Alex inclinou o rosto para o lado, genuinamente curioso sobre o que se passava na minha cabeça angustiada.

— Tô orgulhoso de você — acabei dizendo, baixinho. — Eu...

— Tá?

Acabei olhando para ele, meu raciocínio interrompido, quando me dei por conta que aquilo significou algo para ele. Suas sobrancelhas perfeitas estavam arqueadas em surpresa, um brilho nos olhos como o de uma criança ansiosa ao ser elogiada.

Pisquei algumas vezes, assentindo em resposta.

— Achei que já soubesse. Você é... — Pensei um pouco, escolhendo melhor as palavras. — Você é bem incrível, Alex.

Desviei o olhar, nervoso pela ideia de vomitar palavras, ainda que elas fossem um tanto necessárias e eu soubesse que eram. Enrolei por tanto tempo, guardando tanta coisa para mim, que juntei coragem para vomitar algumas pequenas coisas ao menos.

Acho que eu devo isso a ele.

— Sou nada.

— É, sim. — Tomei coragem para olhar para ele novamente. — Existe um motivo pra todo mundo ter se reunido hoje aqui, e esse é o motivo. Você é o motivo. Você é o centro das panelinhas — falei, no plural, vendo os olhos escuros fixarem nos meus. — Você é a nossa cola.

Eu não soube interpretar sua expressão neutra, mas ele acabou soltando um som pelo nariz ao olhar para longe e dar de ombros.

— Isso é porque vocês são tudo o que tenho — murmurou, um tom melancólico.

Acabei franzido o cenho, sem entender o que ele quis dizer com aquilo, mas ele suspirou e voltou as orbes escuras para mim, explicando: — Eu sempre tentei unir todo mundo e manter todo mundo junto porque eu não tinha mais nada. — Senti o coração pesar com a fala. — Eu precisava disso, eu precisava não estar sozinho... E agora vocês são a única família que me restou.

Que coisa mais triste pensar que aquilo era verdade.

Que tristeza ser rejeitado pela própria família.

E que vazios que devem ser esses pais por dentro para rejeitar alguém tão maravilhoso quanto o Alex.

— Não importa o motivo, Alex, porque agora você nunca vai estar sozinho — contornei, falando a verdade. Seja quais fossem os motivos para que ele tivesse se dedicado a nós, eles não mudavam o resultado dessa dedicação. — Mais do que isso, a gente não quer ficar sem você.

Desviei o olhar novamente, juntando coragem para continuar, retorcendo os dedos em nervosismo.

— Você já deve saber agora que a gente não vai te abandonar nem que você vá pra longe. — Olhei para ele a tempo de vê-lo arquear as sobrancelhas, um tanto confuso e curioso. — Mas eu também queria te dizer que... — Engoli em seco, desviando o olhar para o chão. — A gente sabe que você não vai abandonar a gente nem que vá pra longe. Quero dizer, eu sei... Eu sei agora — contei, e por algum motivo soou mais baixinho do que eu planejei.

Uma eternidade em silêncio depois, pelo canto de olho, eu o vi aproximar-se um pouco mais de mim no chafariz.

— Mesmo? — murmurou, incerto, e eu tive que encontrar os olhos escuros.

Alex inclinava o rosto na direita, os olhos em mim, como tentasse ler meus pensamentos, e eu assenti. Desviei os olhos para as nossas mãos quando senti o toque, seus dedos cobrindo os meus com certa hesitação, meu coração acelerado respondendo ao movimento imediatamente.

— Caleb... — começou, e eu reprimi a vontade de fechar os olhos e parar o tempo. Acabei apenas congelado, com os olhos nas nossas mãos. — Eu ainda não entendo o porquê de eu querer tanto ir pra longe, mas eu juro que eu não iria se eu pensasse que não é necessário. No fundo, eu... Eu sinto que eu preciso fazer isso, sabe? — perguntou, e eu apenas mexi a cabeça para cima e para baixo, ouvindo um suspiro. — Mas ir embora, pra mim, também não é fácil.

Reuni coragem para encará-lo outra vez, sentindo sua mão apertar ainda mais a minha em resposta. Seus olhos escuros estavam límpidos na claridade do dia e eu ainda não conseguia diferenciar a pupila da íris.

— Agora que eu sei que depois que eu cruzar aquele portão eu não vou precisar voltar, eu não quero levantar — admitiu, com um sorriso triste. — Esse colégio fez parte da minha história. Quanto mais eu penso, mais eu vejo que durante os últimos anos, vir até aqui pra encontrar com vocês foi o único motivo que eu tive de levantar da cama. Vocês salvaram a minha vida — pronunciou, em seriedade, e eu engoli em seco. — É verdade. E você... — Arqueou as sobrancelhas, o sorriso vacilando. — Você, Caleb... Você...

Senti meus olhos marejarem contra a minha vontade, como um reflexo dos olhos escuros que me encaravam com tanta ternura.

— Eu acho que você não tem noção do bem que me faz — acabou dizendo, e eu senti meu coração apertar por algum motivo. Ele é que não tem noção do bem que me faz. — E eu acho que não tenho nem como pôr em palavras. Eu só tenho a agradecer por tudo, Caleb, por tudo mesmo.

— Alex...

— Não, deixa eu... Eu preciso dizer isso. — Fechei a boca em resposta, deixando como pedido, mas eu queria retrucar. — Eu preciso agradecer. Você foi o motivo principal de eu ter buscado ajuda. E da mesma forma que vocês todos salvaram a minha vida diariamente, a terapia tem feito isso de uma maneira diferente. E isso é por causa de você.

Engoli em seco.

No fundo, eu apenas me sentia culpado por sentir que não era verdade. Ele não tinha que me agradecer por nada, porque eu nunca fiz nada por ele, tudo o que fiz foi pensando em mim. Mesmo quando eu o ajudei, eu só queria vê-lo bem porque vê-lo bem me faz bem.

E pelo contrário, eu não o ajudei de verdade. Estive tão focado na minha própria dor e nas consequências do que ele fazia em mim, que eu deixei passar quando tudo o que ele precisava era de ajuda. Eu o culpei por isso, eu briguei com ele por isso, eu o cortei da minha vida diversas vezes por isso - por coisas que estavam além do controle dele, coisas que afetavam ele mais do que afetavam a mim.

— Eu demorei muito pra ver que você precisava de ajuda, Alex — consegui verbalizar, baixinho.

Alex negou, teimando. — Mas neném, se nem eu me deixava ver isso, que dirá você? — retrucou, mas eu não concordava. — Não é sua função me salvar, Caleb, só aconteceu de você ter feito isso mesmo assim. Mas não é sua responsabilidade. Acredita em mim.

— Mas...

— Só me ouve — pediu, e eu fechei a boca outra vez. Ele sorriu e disse: — Obrigado por tudo, e desculpa por tudo.

Desta vez, eu não aguentei, negando e desvencilhando minha mão da sua para que eu pudesse me ajeitar no chafariz o máximo que pude - para ficar de frente para ele.

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— Eu é que te devo desculpas, Alex — falei, seriamente, as discussões e retaliações repassando na minha cabeça.

Alex negou, suspirando.

— E eu aceito as suas desculpas — retrucou de volta, seriamente. — Você aceita as minhas? — perguntou, e eu franzi os lábios. — Eu ainda não sei bem como cuidar de mim, eu não soube cuidar de você também. Eu nunca quis te machucar, mas eu sigo machucando, e eu sinto muito.

— Você não precisa pedir desculpas pra mim — insisti, desconfortável.

A verdade é que nós dois machucamos um ao outro, mas a diferença é que o Alex nunca esteve bem.

— Preciso — afirmou, a expressão penosa. — Eu... A terapia e o diagnóstico tem me ajudado a entender que eu não tive em sã consciência por muitos anos. E não é desculpa — acrescenta, rapidamente —, mas ainda assim é verdade. Então é claro que eu fiz merda por anos, e provavelmente vou continuar fazendo, mas ainda assim o mínimo que posso fazer é pedir descul...

— Como assim, "diagnóstico"? — perguntei, confuso, assim que digeri essa parte da informação.

Alex congelou, como também recém se desse por conta do que havia dito, e fez uma careta arrependida. Abriu e fechou a boca algumas vezes, ao passo que meu coração acelerava com a adrenalina impulsionada pela ansiedade.

— O que você tem? É grave? — murmurei, os olhos arregalando tanto que tive que me forçar a me acalmar.

Eu não sei exatamente para onde minha mente foi com a palavra "diagnóstico", mas não soava muito bem aos meus ouvidos, na minha experiência só podia ser seguido de algo ruim. Talvez algo grave, talvez algo fatal. E ainda que eu soubesse que Alex tem tratado seu psicológico e emocional, ainda assim aquilo me trouxe um medo irracional de ser algo físico, como câncer ou pior.

Alex negou, a cabeça indo de um lado ao outro, mas eu não conseguiria ficar aliviado até que ele me explicasse.

Como se ele percebesse que a melhor das opções para impedir que eu morresse de ansiedade e de pavor era continuar o que fazia ao invés de remendar, ele suspirou pesadamente para me contar:

— Eu tenho Transtorno de Estresse Pós-traumático, Caleb — contou, depois de parecer reunir coragem. Pisquei, ainda com os olhos alargados. — Eu... Não... Não conta pra ninguém ainda, tá? — pediu, e eu franzi o cenho, tentando colocar minha cabeça para funcionar. — Eu ainda não queria que ninguém soubesse.

Assenti no automático, ainda pensando sobre isto.

— Não vou contar, mas... Isso não é aquilo que soldados tem depois da guerra? — perguntei, a cabeça cheia de perguntas sem respostas. — Por que você tem isso? O que houve com você?

Acabei me agitando ainda mais, se era possível, mas vi que ele soltou um riso pelo nariz quando me ouviu, quase como se achasse graça que eu houvesse pensado isso, como uma piada interna. Não ajudou com o meu nervosismo, mas ele pareceu perder-se em pensamentos por uns segundos, olhando para nenhum lugar em específico.

— Você lembra daquele dia que eu enterrei uma carta pra minha irmã no jardim? — perguntou, em um volume mais baixo, e eu me aproximei sem perceber.

É claro que eu me lembro, como se fosse ontem.

— Na garrafa — murmurei, tentando entender o que isso tinha a ver com o que estávamos falando. — Lembro.

Alex voltou os olhos a mim, e eles já não pareciam mais tão límpidos quando ele sorriu tristemente e, com um dar de ombros, falou: — Eu menti pra você.

Franzi o cenho.

Sobre o quê?, quis perguntar, mas senti que ele já iria responder sem que eu precisasse. Tentei repassar na cabeça a conversa que tivemos, mas só lembrava de partes sobre o que ele me contou - havia sido a primeira vez que ele mencionou sua irmã para mim e o que aconteceu com ela.

— Eu menti pra mim, na verdade — corrigiu —, eu queria acreditar naquilo. Não queria lembrar do que aconteceu de verdade — murmurou, e eu fiquei ainda mais preocupado. — Eu não queria aceitar que eu tivesse vivido aquilo, porque se eu não aceitasse, talvez pudesse esquecer com o tempo.

— O quê? — sussurrei, sem saber por que estava sussurrando.

Mas é óbvio que aquilo não seria nada bom.

— Quando minha irmã morreu, Caleb, eu não tava na casa de um amigo, mesmo que quisesse estar — reveleu, baixinho também, e eu pisquei ao tentar colocar o quebra-cabeças em ordem. — Eu tava em casa com ela.

Eu lembro que ele havia me contado que estava na casa de um amigo quando a irmã morreu de pneumonia, e que ele soube que ela tinha morrido porque sentiu no peito. Aquilo havia me marcado, de alguma forma, porque eu sou meio cético com essas coisas, mas se Alex havia dito que sentiu isso, só podia ser verdade, então eu acreditei.

Ele mentiu, mas devia haver um motivo para isso. E, se ele estava em casa com ela, isso só podia querer dizer que ele estava lá no momento em que ela morreu.

— Alex...

Meu coração apertou tanto que eu reprimi a vontade de segurá-lo com minhas mãos, ao passo que algumas coisas começavam a fazer sentido. Se ele começou essa conversa falando em diagnóstico de traumas, quer dizer que ele sempre foi traumatizado com aquilo - e com razão. Então os pesadelos, as insônias, as alucinações, tudo o que ele me dizia não ser nada demais, era fruto disso - e era "algo demais", sim.

E para ter sido tão sério a ponto de precisar de um diagnóstico, quão horrível deve ter sido a morte dela? Quão horrível deve ter sido presenciar a morte de um irmão, de uma criança, de alguém que você ama tanto?

Engoli em seco.

— Eu queria poder esquecer, mas mesmo quando eu reprimo as memórias o máximo que posso, elas voltam pra mim mesmo quando eu tô dormindo — murmurou, confirmando o que minha mente já raciocinava, e isso me fez lembrar da noite em que dormimos abraçados e ele estava tendo um pesadelo com ela. — Morgan disse que o TEPT começou com o trauma de ver... — Não terminou a frase, pigarreando, desconfortável. — Bom, agora eu sei e mesmo que não tenha uma cura pro transtorno, eu ainda posso aliviar os sintomas com a medicação e com a terapia. Ela vai me ajudar. Morgan tem me ajudado muito. Eu vou ficar bem — diz, orgulhoso, de tal forma que eu senti ainda mais vontade de chorar. Alex me analisou por um instante, enquanto eu segurava as lágrimas nos olhos, e pigarreou outra vez. — O diagnóstico é só uma parte — murmurou, parecendo estar na defensiva, provavelmente com o marejo dos meus olhos.

Assenti freneticamente, tentando controlar o que eu sentia.

— Você vai — é tudo o que eu consegui pronunciar, com a voz falha, antes que eu tivesse que acabar limpando o rosto com rapidez quando uma lágrima escapou do meu controle.

— Caleb...

O murmúrio do Alex foi um pedido um tanto frustrado e culposo, como se não quisesse que ninguém sentisse pena dele ao ponto de chorar. Acho que eu o conheço a ponto de entender que era a piedade que ele não queria.

— Não é o que pensa — garanti, tentando controlar minha voz, ao olhar para seu rosto chateado. — Eu só... Eu sinto muito — murmurei, com toda a sinceridade do mundo. — Eu sinto muito que você tenha passado por isso. Que horrível — murmurei, pensando no horror que deve ter sido mas, principalmente, desejando poder mudar o passado para que ele nunca tivesse que lidar com isso. — Eu... Se eu pudesse, eu... Eu...

Alex acabou relaxando o semblante, um sorriso leve, antes de levar uma mão ao meu rosto e limpar o outro lado que não limpei, depois de me ver fracassar em manter as lágrimas ali dentro.

— Eu sei — diz, apenas, descartando o final da minha frase. — Eu também.

Minha mente embaralhou-se em tanta coisa que eu nem sabia pôr em palavras, então tudo o que eu pude fazer foi devolver o olhar.

Nós ficamos olhando um ao outro por um tempo e tinha tanta coisa quebrada, tanta coisa remendada, tanta coisa não dita, tanta coisa que era melhor que não disséssemos nada mesmo. Nenhum de nós queria enfrentar aquilo mesmo, apenas se atentar ao momento - ao menos, foi o que me pareceu, que era recíproco.

Mas eu senti que tinha algo que precisava ser dito - ou estabelecido, ainda que não necessariamente com palavras.

Acabei puxando-o para um abraço com mais força do que planejava, não dando tempo de ver que expressão esboçou, mas ouvi o suspiro surpreso quando o tomei em meus braços, antes que retribuísse.

Eu queria abraçá-lo desde mais cedo, por motivos diferentes, mas depois do que ele havia me contado, era como se algo houvesse ficado engasgado na minha garganta e eu não pudesse aguentar um segundo mais.

Era doloroso que as coisas fizessem sentido depois daquilo, era horrível pensar que ele dava sinais de um trauma profundo desde que eu o conheci, e ainda mais aterrador que eu conseguisse nomear cada um dos vários. Era como se ele estivesse gritando por ajuda tão alto que todos ouviam mas não conseguiam entender até que soubessem - e agora eu sabia. Era desesperador pensar o que ele esteve sentindo durante todo esse tempo e que poderia continuar sentindo para sempre.

E, enquanto ele sentia todo esse redemoinho de emoções, eu ainda conseguia piorá-lo, como fiz no dia da tempestade, provavelmente em um dos piores estados em que ele já esteve. Eu praticamente chutei cachorro morto, e a culpa estava me remoendo.

Alex só precisava ser acolhido e ele merecia ser acolhido.

Eu só queria acolhê-lo.

Eu queria abraçá-lo para compensar por todas as vezes em que não o abracei antes. Queria abraçá-lo por todas as vezes em que ele não foi abraçado antes, por todas as pessoas que não abraçaram antes, por todos os abraços que foram negados em sua vida. Eu queria abraçar esse Alex que eu magoei muitas vezes, ainda que ele também houvesse me magoado, mas eu também queria abraçar o Alex que perdeu a irmã aos nove anos de idade e, ao longo dos anos, os pais também. Eu queria abraçar o Alex que estava indo embora, que havia acabado de conquistar a própria liberdade - o que era digno de muito orgulho, sim -, ao mesmo tempo em que queria abraçar o Alex que havia sido expulso de casa por ser quem ele é.

Achei inadmissível, enquanto penso sobre isso, que nenhum abraço do mundo era capaz de curar tanto assim, mesmo que eu quisesse.

Mas eu queria, ao menos, tentar.

Alex devolveu o abraço, encaixando o queixo no meu ombro e erguendo uma das mãos para acariciar meus cabelos - quase como se fosse ele a me consolar e não o contrário. Isso me deixou ainda mais triste, porque me fez pensar que Alex sequer sabia ser consolado, não sabia desempenhar nenhuma função no particípio do passado. Seu primeiro instinto em um abraço era me abraçar ao invés de ser abraçado, como sempre foi, mas a outra mão que puxou minha camisa para a esquerda e para baixo como se a segurasse em punho, me dizia que o que ele precisava era contrário ao seu instinto.

Não sei quanto tempo se passou, mas não havia sido o suficiente.

— O sinal tocou — murmurou ele, perto do meu ouvido, mas não deu sinal de se afastar. — Eles vão fechar o portão até o fim das provas.

Em resposta, acabei apertando-o um pouco mais contra mim, me ajeitando novamente em seu pescoço.

— Deixe que fechem — murmurei, baixinho, e quase que o pude sentir sorrir. — Fica aqui comigo.

Alex também me apertou um pouco mais e, por mais irônico que fosse, me entregou, de bandeja, as duas palavrinhas que eu mais entregava a ele desde que eu o conheci: — Tá bom.

Eu o abraçaria até que fosse forçado a soltá-lo.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.