Made of Stone

XLII. O anjo que me visita à noite - Parte III


Era inverno - ou inferno.

Eu encarava uma foto da turma do colégio - em específico, o Charles, que estava prostado ao meu lado - quando ouvi uma porta abrir, mas era do lado de fora. Meu pai havia saído do escritório onde estava tendo uma reunião com os colegas da empresa. Dei um pulo e escondi a foto na caixinha de argumentos e a enfiei debaixo do colchão, o coração batendo a mil por hora - como se ele fosse saber quem eu encarava na foto em grupo, mas o medo era maior.

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Saí do meu quarto só para garantir que estivesse tudo bem, já que os passos apressados e rudes dele ao descer indicavam um mau humor. Fiquei em silêncio no corredor, tentando entender se os demais haviam ido embora, até ouvir a conversa cochichada e infeliz.

Não consegui ouvir direito e fui me aproximando até reconhecer a voz cochichada do Seu Carlos, um dos colegas do meu pai, e uma outra voz grossa, não tão cochichada assim, de outro que vi pela janela entrar em casa junto deles mas nunca lembrava o nome. Aproximei-me da porta para ouvir melhor, até que os sons cochichados se tornassem em palavras.

— Já faz dois anos — resmungou um deles. — Não achei que ele fosse reagir assim, ele é sempre tão casca grossa. Eu só quis dizer que tava preocupado, o cara tá de mal a pior.

— Você quis é puxar saco fingindo se importar — respondeu o Seu Carlos, com desdém.

— Que seja — resmungou o outro. — Eu ainda tô certo: Henry não parece bem, não é mais o mesmo.

— É claro que ele não tá bem — retrucou Carlos, baixando o tom de voz quando elevou: — O homem perdeu a filha, uma parte dele deve ter morrido também.

Engoli em seco, mordendo o lábio inferior. Uma parte de todos nós, completei por ele.

— É, deve ser difícil — contemplo o outro, pensativo. — A menina era um anjinho e morreu, agora a mulher dele virou crente e o filho é um diabinho, só apronta.

Ali estava outra vez, o abismo entre eu e a Agatha: ela, um anjo morto e eu, um diabo vivo. Fechei as mãos em punho ao ouvir, tentando não surtar, mas meus demônios pessoais começaram a concordar com eles.

— Ouvi falar disso mesmo — comentou seu Carlos, em um tom pesadoro. — Henry chegou a mencionar que o menino faz e acontece, já fugiu de casa, já foi suspenso duas vezes do colégio, uma delas por agredir uma professora. Ele inclusive acha que o pestinha anda mexendo nas bebidas dele. — Estalou a língua. — Tem onze anos e já tá nessas.

Minha respiração começou a falhar.

— Mas isso é de se esperar mesmo — descartou o outro, cuja voz já começava a me deixar enjoado. — Desde que botei os pés na empresa, Milton vive falando que o menino não é coisa boa, que o Henry nunca devia ter colocado a peste pra dentro de casa, que ele ia desgraçar a família.

É claro que esse infeliz devia ser amigo do tio Milton. Eu só devia agradecer que ao menos ele não estava ali na reunião empresarial, porque trabalhava em outro departamento.

Seu Carlos bufou para a fala dele.

— É claro que o menino precisa de uma surra, mas não vamos exagerar como o Milton faz — negou, e eu espiei pelo vão da porta, vendo-o torcer o nariz, sentado de frente ao outro. — Não é culpa de ninguém que a filha deles tenha morrido, ela já nasceu cheia de problemas.

O outro estalou a língua, abrindo mais as pernas ao ajeitar-se na cadeira.

— Eu não sei, eu meio que concordo com o Milton — declarou o óbvio. — Pelo que ele conta, desde que o bastardinho botou os pés aqui, só traz problemas. É como se os pais trouxessem um objeto amaldiçoado para casa — resumiu, antes de fazer uma pausa dramática e perguntar com intensidade: — Você sabe de quem ele é filho, não sabe?

Senti o coração parar por um instante.

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Seu Carlos suspirou, revirando os olhos para o drama excessivo dele. — Sim, sim, eu sei.

— Pois é. — Ele balançou a cabeça de um lado para o outro, como se doesse dizer o que diria: — Que deus me perdoe, mas crianças assim deviam ser proibidas de nascer por lei. Se tinha que morrer alguma criança aqui, que deus me perdoe — repetiu —, mas devia ter sido...

— Cala a boca — grunhiu o outro, e deu uma olhada em direção à porta, mas eu me escondi antes que me visse, o coração batendo forte no peito e as costas grudadas na parede do corredor. — Quer perder o emprego?! Ele já deve estar voltando.

O outro não pareceu se importar.

— Aposto que ele concorda comigo, ele não suporta o próprio filho — apontou, e eu senti o coração sangrar. — Já viu como ele o trata?

— Mesmo assim, você não tem que se meter nesses assuntos— insistiu o Seu Carlos. — Tá doido? — Estalou a língua. — E deixa de exagerar tanto, você passa muito tempo com o Milton, ele é só um menino malcriado. Critica a mulher crente dele mas fica acreditando nessas merdas religiosas também?

Limpei o rosto rapidamente, sentindo a cabeça rodopiar e as mãos cerradas em punho tremerem.

— Não sou louco igual o Milton — defendeu-se ele. — Não é por religião, é por ciência. Espera só esse menino ter os próprios filhos um dia pra ver se começa a ser óbvio que o sangue dele é ruim.

Decidi não ouvir mais nada e marchei com raiva para o quarto dos meus pais, trancando a porta logo em seguida. Não pensei duas vezes, não me permiti um segundo para digerir o que eu sentia, simplesmente limpei o rosto com brusquidão e subi na cama.

E pulei até que ela se quebrasse.

(...)

*

— Morgan...

Como se pressentisse que algo viria, o tom foi quase satisfeito ao responder com um: — Sim?

— Eu preciso falar coisas — admiti, olhando para ela.

Elas estavam rodopiando pela minha cabeça desde manhã, quando tive aquela conversa com o Mason. E agora, mais do que nunca, com essa conversa sobre os meus pais, elas voltaram com tudo e eu precisava externá-las.

— Eu preciso falar coisas e preciso que você não ache que é besteira. E sim, sim, eu sei o que vai dizer. Mas é que... — Suspirei, frustrado. — Eu vou falar coisas que provam que eu realmente não mereço ser feliz. E eu sei que no fim delas você vai me dar um jeito de me convencer de que eu mereço a felicidade tanto quanto qualquer outra pessoa e blábláblá — descartei, vendo-a arquear as sobrancelhas. Mas eu preciso que você simplesmente tente me entender e ver que o que eu tô falando faz sentido. Ok?

Morgan assentiu, interessada.

— É claro, Alex, pode contar comigo.

Apesar do nervosismo, não pude deixar de sorrir.

Eu sei que posso.

Morgan sorriu também, os olhos incentivando para que eu falasse e, depois de alguns segundos, eu comecei a colocar para fora toda a confusão mental. Remexi os dedos.

— Você me perguntou se minha relação com meus pais sempre foi assim. — Ela assentiu, interessada. — A verdade é que, quando se trata de mim, tudo começou errado e só podia terminar errado. Nós começamos com o pé esquerdo, nós três, e não tem conserto — afirmei, certo disto. — Tudo relacionado a mim e a minha família sempre esteve fadado a dar errado.

Morgan respeitou minha pausa para organizar minhas ideias, antes que eu continuasse.

— Desde criança, me diziam que eu era amaldiçoado e que eu traria desgraça para a minha família — contei, baixinho, sem conseguir olhar para ela, os olhos nos carros lá embaixo. Tomei alguns segundos de coragem antes de continuar: — Enquanto crescia, eu fui constantemente relembrado de que eu sequer devia ter nascido. Eu não entendia muito bem de onde vinha tudo isso, sabe?, quando eu era pequeno — elucidei, os dedos remexendo. — Mas eu não conseguia esquecer. E eu não acreditava totalmente, sabe? — apontei, em defesa própria. — Eu não era tão manipulável assim, me assustei a primeira vez que ouvi mas depois achei que era bobagem. E com a Agatha, eu me sentia... Eu me sentia a pessoa mais importante do mundo — relembrei, um gosto agridoce na boca. — E então ela morreu.

Morgan aproveitou a minha pausa para questionar, cautelosa: — E quem foi que te dizia isto, Alex?

Soltei um som pelo nariz.

Quem não?

— Meu avô, meus tios, meus primos — numerei, erguendo um dedo de cada vez. — Posso contar nos dedos quem da família nunca me dirigiu nenhuma palavra ofensiva.

Dentro da lista de parentes desnecessários, definitivamente estava o meu avô paterno e o velho ocupava o primeiro lugar.

— Será que não pode ficar quieto por um minuto, moleque?! — ele grunhiu, me pegando pelo braço quando passei correndo ao lado dele.

— Eu só...

— Tem que estar sempre me infernizando, porra! — gritou, as duas mãos apertando meus braços e me sacudindo com grosseria.

O velho era alto e meio corcunda com a idade, ainda tinha uns fios pretos por entre os milhares de brancos, o que dava aparência à barba dele de desleixada. Era magro e barrigudo, mas também tinha os braços fortes. Eu odiava quando ele me agarrava assim, como se eu fosse um fantoche, e me sacudia daquele jeito. Os olhos azuis e já foscos pela idade ainda davam uma aparência pior a ele, como se fossem olhos de alguém morto. E eu desejei, pela milésima vez, que ele realmente caísse duro no chão.

Fiz uma careta para o bafo próximo ao meu rosto. — Eu vim buscar a Agatha pra...

— Deixe a sua irmã em paz! — reclamou. — Já não é suficiente que fique grudado nela o dia todo?!

Desvencilhei-me do aperto dele, irritado também, e franzi o cenho. — Me solta, que saco! — Assim que consegui, mostrei a língua e saí correndo.

Não cheguei muito longe porque ele me puxou pelo colarinho da camisa, erguendo-me de maneira que eu fiquei na ponta dos pés, querendo muito morder as mãos que me seguravam e arrancá-las dos braços dele.

O que foi que você disse?! — berrou, ameaçadoramente. — Repete, pivete! Repete agora! — Eu bufei, mas mordi a língua para não apanhar. — Olha só pra você, parece um selvagem!

Ele soltou uma das mãos para apontar um dedo indicador para mim, e eu continuei torcendo o nariz com nojo dele.

— Você ainda vai desgraçar essa família, escuta o que eu tô dizendo — falou, e eu vi uma gota de cuspe voar da sua boca — e eu vou estar lá pra acabar com sua raça quando acontecer!

Soltei um riso amargo ao me lembrar do meu querido avô paterno.

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Quando aconteceu o que ele dizia e eu realmente desgracei a família como ele previu, o velho já tinha um pé na cova. Ele estava mais para lá do que para cá, e logo depois bateu as botas, descendo de tobogã para o inferno, direto aos braços de Satã, onde ele realmente pertence.

Haha, chupa essa, desgraçado.

— Eles disseram o porquê?

Inspirei fundo e soltei, um tanto melancólico.

Decidi ignorar a pergunta dela e continuar o que eu estava dizendo: — Eu sei que você vai achar bobagem, mas... Eles tinham razão. Eu sou amaldiçoado. — Dei de ombros. — Tudo o que eu toco apodrece. E eu já tentei de tudo, acredite, eu tentei acreditar no meu potencial de ser alguém que merece estar aqui, que merece viver e ser feliz, mas o universo sempre dá um jeito de provar o contrário. E eu tô falando da minha vida inteira aqui, sabe? — especifiquei, antes de completar: — São dezoito anos em que eu só me fodo, especialmente quando eu decido acreditar que não existe essa besteira de maldição.

Morgan arqueou as sobrancelhas, um tanto intrigada com o que eu dizia, e estava tão atenta que sequer se dignou a escrever notas em sua caderneta.

— Maldição?

Me senti envergonhado outra vez e cocei a cabeça.

— Olha, não é... Não é que eu acredite em bruxaria e que alguém me jogou um feitiço ruim. — Acabei rindo de nervoso, balançando a cabeça, para me socorrer do embaraço. — Eu só acho que... — Parei para pensar por alguns instantes. — Eu acho que algumas pessoas não deviam ter nascido e eu sou uma delas. E o mundo se certifica de provar isso pra mim o tempo todo. Uma questão de energia, de carma, de balanço da natureza, de alinhamento do universo, chame do que quiser.

Morgan assentiu, parecendo começar a me entender, o que me trouxe certo alívio, porque...

Imagina se a mulher começa a pensar que eu acredito em bruxaria!

— Dentro dessa sua crença — perguntou, cautelosa —, qual seria a explicação de você haver nascido se não deveria nascer?

Aquilo me pegou de surpresa e eu abri e fechei a boca algumas vezes, vacilando na resposta. Acabei soltando a primeira coisa que me veio à cabeça, na defensiva: — A mesma pra toda merda que acontece: o acaso. — Pensei um pouco mais e joguei no ar, como se não me doesse: — Por que algumas pessoas morrem de pneumonia e outras não?

Morgan assentiu, mas ela me olhou com descrença e um indício de sorriso.

— O acaso? — questionou, uma pontada de humor. — E você acredita mesmo nisto ou foi a primeira coisa que veio à sua mente agora?

Uma careta involuntária se formou no meu rosto, mas eu tentei me explicar ainda assim: — Eu só acho que algumas anomalias acontecem, como tumores, seja pelo acaso, pelo destino, por algo que eu realmente não sei — admiti —, e elas precisam ser erradicadas antes que se transformem em câncer e levem alguém com elas. Pode não haver uma resposta do porquê o tumor surgiu, mas você sabe que precisa se livrar dele antes que ele te mate.

Morgan suspirou, olhando para longe também ao pensar a respeito antes de voltar os olhos para mim novamente.

— Nessa sua analogia — apontou —, você está querendo dizer que você é uma anomalia que precisa ser erradicada?

Fiquei em silêncio por alguns segundos, encarando ela com um sorriso amargo antes que ele desvanecesse. Não foi necessário responder, mas eu acrescentei: — No meu caso — falei, baixinho —, eu já levei alguém comigo.

— Sua irmã?

Assenti amargamente.

— Alex, quem levou sua irmã foi uma doença e não você.

Balancei a cabeça de um lado para o outro, antes mesmo que ela terminasse de falar. Eu já sabia que ela diria isto, era o óbvio, era o sensato, era a resposta pé no chão. Mas eu nunca acreditei nela.

— Eu sinto que eu a matei — admiti, descartando o que ela disse. — Não por acidente, mas como se eu realmente houvesse a matado com minhas próprias mãos. Não importa — acrescentei, torcendo o nariz, quando vi que Morgan estava prestes a comentar algo. — Eu não quero falar dela hoje, eu quero falar de mim.

Ela assentiu, pegando o caderninho e a caneta e finalmente dando uma atenção a eles. — Muito bem — concordou. — Então me conte: por qual motivo você acredita ser amaldiçoado?

Ponderei por uns segundos antes de murmurar: — Eu já disse.

— Então me diga o que exatamente prova a sua teoria — insistiu, com um indício de um sorriso —, além da morte da sua irmã, que não teve nada a ver com você — enfatizou, mais uma vez.

Suspirei pesadamente.

Eu deveria contar o incontável?

No fundo, eu já sabia que vim hoje com esse intuito. Eu queria falar e queria que ela escutasse, eu queria colocar um pouco da podridão para fora, aquela tão antiga que havia criado raízes dentro de mim.

Inspirei fundo e as palavras começaram a sair assim que me dei por conta que eu aguentaria o tranco.

— Eu não sou filho biológico da minha mãe. Não é algo que me afete — acrescentei, rapidamente. Morgan pareceu bastante interessada e surpresa, como se não esperasse isto. — Quero dizer, sim, mas não pelos motivos óbvios. Eu fui criado pela Katya, ela é a minha única mãe, não tenho outra. Acontece que o buraco é um pouco mais fundo.

Puxei um pedaço da cortina e dobrei infinitamente.

— A família do meu pai sempre teve muito dinheiro. Desde muito antes de eu nascer, eles tinham empregadas que trabalhavam na casa. Você sabe — falei, com um sorriso amargo —, daquelas que recebiam um salário de merda, moravam em um quartinho minúsculo dentro de casa, e não podiam comer na mesa com a família. Cresci ouvindo falar aqui e ali sobre a empregada que ficou mais tempo lá dentro — contei, meus olhos na janela. — Uma senhora que cuidou do meu pai e de todos os meus tios desde que eram pequenos, até quando alguns já eram adultos.

Pausei, percebendo que Morgan apenas ouvia com atenção, nenhum comentário a fazer, e então continuei:

— Essa empregada teve uma filha e a menina cresceu com junto do meu pai e dos meus tios. Quando essa menina foi embora com a mãe, os dois ainda eram pequenos, pelo que entendi deviam ser pré-adolescentes ou algo assim — contei, lembrando que demorei a juntar todas as peças daquele quebra-cabeças com as partes soltas que ouvi durante a vida toda. — Acredito que tenham ficado muito tempo separados até se reencontrarem já adultos, meu pai e ela — murmurei, pensativo, na história cheia de furos que eu tentei, de todas as formas, preencher com minha narrativa. — Não sei bem como foi — admiti —, se eles se apaixonaram, se tiveram um caso de uma noite, enfim. Foi muito difícil conseguir informação o suficiente pra poder te contar o básico que sei hoje. Eu só conheço os fatos gerais. — Dei de ombros, antes de apontar para mim. — E bom, todos eles indicam que eu nasci.

Mordi os lábios, pensando em como continuar, mas fiquei tanto tempo em silêncio que a Morgan obrigou-se a comentar: — Infelizmente, o envolvimento de pessoas de diferentes classes sociais ainda é mal visto em muitas sociedades hoje em dia.

Soltei um som pelo nariz, não conseguindo evitar sorrir amargamente, e não pude dizer nada por um tempo. Engoli em seco, abri e fechei a boca algumas vezes, me perguntando como contar, e então me dei por conta: pudera não saber como contar!

Eu nunca, jamais, havia dito aquilo em voz alta.

Como se soubesse que eu precisava de incentivo, ela quebrou o silêncio: — Você sabe que tudo o que me disser aqui não sairá dessas quatro paredes.

— Eu sei — murmurei, me sentindo subitamente vulnerável. Ri, de nervoso. — É só que eu me dei por conta que nunca disse em voz alta. Eu ouvi os pedaços dessa história e eu juntei, sempre ouvindo todo mundo falar de mim, mas eu nunca disse nada. Eu só ouvi — sussurrei, relembrando do passado. — Eu ouvi tanto.

— Aqui — fala ela, me chamando para a realidade — quem vai ouvir sou eu. E você pode falar o quanto quiser, Alex.

Aquilo me fez sorrir minimamente, o coração apertado. O acolhimento da Morgan era muito mais emocionante do que minha história a contar. A história em si, a história que me gerou como pessoa, era algo tão dolorosamente duro e concreto que não me dava vontade de chorar, eu não sentia quase nada além de repulsa e vergonha.

Suspirei novamente, me ajeitando na cadeira.

— O problema não foi a diferença de classe social — admiti, sentindo a voz diminuir de altura. — O problema que fez da minha vida um inferno foi que a filha da empregada também era filha do meu avô. Meu pai e ela tinham o mesmo pai.

Engoli em seco, me encolhendo levemente.

Não ousei olhar para Morgan por um tempo, mas quando o fiz, ela não parecia demonstrar nada. Deu um leve aceno para incentivar que eu continuasse, bastante empenhada em saber o restante da história.

— Meu pai e ela eram meio irmãos — explanei, intrigado, para que tivesse certeza de que ela entendeu —, o que faz de mim, fruto de um incesto. Por que você não parece surpresa?! — perguntei, e não queria que soasse tanto com uma acusação.

Ela arqueou as sobrancelhas.

— Ora, eu tô surpresa — confessou, as sobrancelhas lá em cima, mas o semblante era neutro. — Não esperava que fosse isto que você iria revelar. E entendo o porquê de afetá-lo tanto — confessou, a expressão tornando-se compassiva. — Não deve ter sido fácil para você descobrir isto de maneira tão indelicada por familiares, e muito menos guardar isso só para você durante tanto tempo. — Ela pareceu olhar direto na minha alma quando disse, com sinceridade: — Eu sinto muito, Alex. Gostaria que as coisas houvessem acontecido de maneira diferente para você. Mas me sinto muito grata por haver confiado em mim o suficiente para contar algo que te doa tanto.

Remexi-me no lugar, desconfortável, antes de fazer o papel da Morgan ao analisá-la também. Torci o nariz.

— Eu sei que você tem que mostrar neutralidade aqui — apontei —, mas seja sincera: não é perturbador? — Morgan piscou. — Minha existência não é de dar náuseas?

Morgan suspirou antes de negar, e eu quis sacudi-la para que fosse sincera.

— Eu entendo como deva se sentir em relação a isto — comentou ela —, e você tem todo o direito. Em uma sociedade construída como a nossa, não é o ideal que tenha tido pais meio irmãos. Mas isto não muda o fato de que sua existência tem tanto valor quanto qualquer outra, Alex — explica ela, em um tom calmo e paciente.

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Eu quis chorar, então pisquei ao olhar para longe.

Era tentador demais acreditar nas palavras que quis ouvir a vida inteira, mas eu, várias vezes, caí nessa tentação. Por várias vezes, me fiz acreditar na mesma fantasia, e em todas elas foi comprovado que eu estava errado.

Minha existência é, sim, perturbadora e só condena as demais existências à minha volta. Se eu realmente me importasse com as pessoas que eu amo, eu simplesmente daria um fim nela ao invés de acreditar em palavras acalentadoras e fantasiosas.

Balancei a cabeça, piscando para as lágrimas ficarem onde estavam.

— Eu não conheço o resto da história a não ser o básico — continuei, tentando desviar a atenção do que ouvia dela. — Já ouvi chamarem aquela coitada de tanta coisa, justificarem que meu avô era homem e que homens tem necessidades e que a culpa era toda dela por ceder — contei, entredentes, porque isto sempre me deixava furioso. — Mas agora eu sou adulto e eu entendo mais do que eu ouço deles. Eu sei como as coisas funcionam na realidade. Meu avô era um velho nojento — resumi bem — e aquela senhora não tinha onde cair morta. Eu apostaria um braço que ele abusou dela e que ela nunca teve escolha alguma. — Parei e pensei por um instante para contar o que havia ouvido a tia Gloria contar uma vez: — Na primeira chance que ela teve, pegou a filha, levou pra longe e nunca olhou pra trás. Por um acaso — enfatizei, com um sorriso amargo —, a filha dela se reencontrou com o meu pai depois de adulta. Eles não conheciam a própria história, não sabiam que eram meio irmãos, e quando ficaram sabendo, já devia ser tarde demais. Eu já tinha acontecido — concluí, com pesar.

Morgan chamou meus olhos para ela quando sugeriu: — Parece que você ficou muito tempo supondo o que aconteceu. Alguma vez chegou a perguntar aos seus pais?

Suspirei pesadamente, negando em silêncio.

— Por quê?

Dei de ombros. — Acho que eu não quis ouvir nada disso deles.

— Então eles não sabem que você sabe?

Neguei outra vez, soltando um som pelo nariz.

— Meu pai deveria — retruquei, torcendo o nariz. — Ele deveria saber que isso aconteceria. Ele conhece bem a família que tem.

Morgan me observou por uns instantes, e eu fiquei quieto.

A verdade é que, apesar de toda a podridão e dor em torno do assunto, eu realmente sentia que tinha tirado um peso das costas ao compartilhar isto com ela. Era uma sensação estranha, diferente, e não era tão dolorida quanto eu esperava que fosse. Aquilo só me deixou pensativo.

— É por este motivo que você acredita ser amaldiçoado, Alex?

Eu vacilei, mas não tirei os olhos da janela, engolindo em seco.

— Eu me pareço tanto com ele — comentei, perdido em pensamentos —, quase como um reflexo. Às vezes penso se não é porque eu sou parecido com ela, e que talvez ela fosse parecida com ele também, porque eram irmãos. — Soltei um riso amargo. — Eu sempre soube que existe algo sujo, deturpado, distorcido em mim — admiti, sem ousar olhar para ela. — Algo que carreguei a vida inteira. Tem muito a ver com a maneira como a família do meu pai sempre me tratou, especialmente ele, mas também tem a ver com tudo o que eu causei na vida dos outros — ponderei, encolhido. — A causa é uma só: eu e minha genética, mas as consequências são infinitas, o tempo todo, até hoje. Por que eu acho que sou amaldiçoado? — devolvi a pergunta, retoricamente. — Porque eu sei que, se eu não tivesse nascido, a vida de todos que me conhecem teria sido melhor. E minha irmã podia estar viva. Morgan — chamei, embora não me atrevesse a olhar para ela —, você pode mesmo me dizer que eu tô errado?

Morgan pareceu medir as palavras por alguns instantes, os olhos também atraídos pela janela ao nosso lado. E então, ela suspirou com pesar, voltando os olhos a mim.

— Eu não posso te dizer o que pensar ou no que acreditar ou como se sentir, Alex — evidenciou, calma. — Eu só posso te auxiliar a ter uma vida funcionalmente saudável, sendo as suas crenças quais forem, suas vivências quais forem e seus sentimentos quais forem — apontou. — Mas uma coisa eu te digo: nem eu nem você temos respostas para tudo. Você mencionou o acaso e perguntou por qual motivo alguém morre de pneumonia enquanto outro alguém não. — Ela deu um sorriso triste, balançando a cabeça de um lado ao outro, ao passo que eu engolia em seco. — Eu não posso te responder isto, até eu mesma caio nesses dilemas. Sou tão humana quanto você. Mas eu penso que seja qual for a explicação que nós decidimos dar para aquilo, que mais vale ser algo que nos faça sentir bem. Porque no fim das contas, Alex, nossas crenças são apenas teorias - algumas entre milhares. E eu acho que de nada vale acreditar em algo para o qual não se tem prova quando este algo não nos faz bem, quando não nos auxilia na nossa vida, quando não nos faz dormir melhor à noite, quando não nos faz evoluir — ditou, e eu pigarreei para afastar o choro. — Acho que crenças e religiões passaram a existir como um auxílio, como uma ajuda, e elas perdem todo o valor quando elas não cumprem isto, quando só nos fazem sentir mal, quando nos deixa empacados, quando não nos ajuda em nada e, inclusive, atrapalha. Se você vai acreditar em algo abstrato, algo para o qual não se tem provas, por que acreditar em algo que te faz infeliz?

Senti o peito apertar e os olhos arderem, mas fiquei em silêncio por um tempo.

— Porque tudo o que aconteceu na minha vida e com as pessoas que eu amo só suportam a minha teoria, e não qualquer outra — decidi responder, escolhendo as palavras.

Morgan assentiu.

— Você se importaria de compartilhar comigo que coisas foram estas que aconteceram na sua vida e afetaram diretamente quem você ama?

Eu esfreguei o rosto, cansado emocionalmente tão cedo na sessão, e me remexi no lugar.

— Tudo.

— Tudo o quê? — insistiu ela, firme.

— Minha irmã morreu. Meus pais foram infelizes a vida toda depois que nasci, merecendo ou não — acrescentei, em relação ao meu pai. — Nunca fui o suficiente para tirar minha mãe da depressão. Magoei o Caleb tantas vezes que não consigo contar. E da última, por minha causa, ele caiu na piscina e quase morreu. Vivo magoando meu primo também, querendo ir para longe dele e dessa cidade. Tudo o que eu faço, se afeta alguém, é negativamente. Não existe nada positivo. Se eu não existisse — firmei —, as vidas dos meus amigos, da minha família, teria sido apenas melhor.

Morgan analisou-me por um instante antes de comentar:

— Seria por isto que nas suas primeiras sessões seus amigos, que não são poucos, a propósito — acrescentou, um um sorriso mínimo —, esperavam ansiosos do lado detrás dessa porta?

Fiquei sem palavras por um instante.

Eles realmente ficaram esperando do lado de fora - uma forma de apoio, de suporte, de incentivo talvez, mas ficaram nas duas primeiras sessões esperando na sala de atendimento.

Abri e fechei a boca para falar, mas não consegui. Queria dizer que era porque não entendiam que eu mais os magoava do que era um bom amigo, que significava que eles tinham um bom coração e não sabiam a quem entregavam, que era porque me viam com outros olhos e não sabiam sobre toda a minha natureza ruim. Eu queria dizer um misto de tudo isto, mas me senti doente com a simples ideia de verbalizar, porque sabia que eles realmente se importavam comigo.

Eu não queria reduzir a cinzas nem eles nem o amor deles por mim.

Engoli em seco.

— Me faça entender, Alex — pediu ela, inclinando a cabeça para o lado. — Você me disse que sua irmã tinha problemas respiratórios e que morreu de uma pneumonia. Como isso é culpa sua? — questionou, o tom ameno. — Seu amigo escorregou e caiu na piscina. Como exatamente isto foi culpa sua?

Balancei a cabeça de um lado ao outro, sentindo-me encurralado.

— Você não entenderia.

— Sinceramente, até que você coloque em palavras, Alex, eu vou pensar que nem mesmo você entende por completo — apontou ela, e eu franzi os lábios. — Fala comigo, coloque em palavras, se comunique. Talvez eu veja o que você vê.

Abri e fechei a boca algumas vezes, pedaços e pedaços de memórias passando pela minha cabeça em apoio às minhas próprias palavras, mas também em conflito com as dela.

— Morgan, você está errada. Você não entende, você... — Soltei um som pela boca, frustrado, ao deixar os ombros caírem. Sentindo-me exposto e envergonhado, admiti: — Você não tem todas as informações.

Comecei a me remexer na cadeira, angustiado, e ela apenas aguardou, sem querer me pressionar mais.

— Caleb só caiu na piscina porque ele tava me evitando e foi pra lá pra fora e ele escorregou na água que eu derramei — apontei, colocando a mão no peito. — A gente tinha brigado de novo, e eu fiquei chapado, quase coloquei fogo na casa e a água foi pra apagar. Entende? A poça de água onde ele escorregou não estaria lá se não fosse por mim — apontei, quase implorando para que ela entendesse meu ponto de vista. — Foi só por isso. Foi por minha causa. E minha irmã...

Minha voz falhou e eu percebi que estava começando a embargar novamente, porque eu nunca conseguia falar dela sem chorar feito um desgraçado.

— Ela tinha os pulmões sensíveis, sim — enfatizei. — Ela nasceu cheia de problemas de saúde, sim — repeti, e então contei uma das coisas que mais me doíam: — Mas ela só pegou pneumonia por minha causa.

Morgan ficou em silêncio por um instante, respeitando o meu tempo, como se soubesse que eu estava me senindo engasgado com o nódulo na garganta.

Inspirei e expirei fundo, limpando o rosto, e acabei fechando os olhos.

— Eu deixei ela entrar na piscina — contei, levando mais alguns segundos para segurar o choro. — Minha mãe disse que não podia, que o sol já tinha subido, que a gente já tinha ficado o dia inteiro lá... — Abri os olhos, o marejo não me permitindo enxergar Morgan nitidamente. — E depois que ela tomou banho, ela ainda quis entrar, e eu deixei — choraminguei. — A gente entrou junto. Eu cuidei pra ela não se afogar, eu deixei a bombinha perto de nós, mas eu não me liguei que ela pudesse ficar gripada ou pegar alguma infecção de novo. Eu...

Morgan me deu espaço para que eu chorasse feito o infeliz que sou, estendendo um copo de água e os lenços que estavam sempre abastecidos naquela sala para os pacientes colocarem o berreiro para fora.

Mas eu não conseguia sequer fazer piadas internas.

Falar sobre qualquer relacionada a Agatha sempre me lembrava que eu é que havia causado a morte dela e que eu sou o motivo dela não estar aqui. Falar dela era muito mais dolorido do que falar das violências que sofri do meu pai, do abandono que sofri da minha mãe, do fato da minha genitora provavelmente ser fruto de estupro enquanto eu próprio fui fruto de um incesto.

Conversar sobre minha irmã e relembrar das coisas que mais desejo esquecer não era só dolorido, era dilacerante, era aterrador.

Tranquei o choro na garganta e trinquei a mandíbula para continuar: — Um tempo depois, eu fiquei doente, tive febre por uns dias e depois ela ficou. Eu peguei pneumonia, e eles me separaram dela por um tempo mas mesmo assim eu passei pra ela — admiti, o choro querendo sair. — E ela morreu — choraminguei. — Ela morreu. — Solucei. — Ela morreu.

Aconteceu no mesmo verão em que foi tirada a foto dela que guardo na minha carteira, aquela tão sorridente, tão cheia de vida. Eu fiquei doente e como a imunidade dela baixou também, eu fiquei uns dias separado dela dentro de casa. Não funcionou, porque eu já havia contagiado minha irmã.

Foi a pior coisa que já fiz na vida.

É imperdoável.

— Foi culpa minha, Morgan — admiti — e eu nem tive a decência de morrer junto dela: eu sobrevivi e ela, não.

Morgan balançou a cabeça.

— Você era só uma criança, Alex — apontou ela, pesarosa. — E você não causou isto nem teve a intenção de causar. Estou errada?

Neguei o que ela estava dizendo.

— Eu sei que minha irmã tinha a saúde debilitada e que, mesmo sem mim, talvez ela realmente não tivesse um destino diferente — concordei, até certo ponto. — Mas isto não muda o fato de que este tenha sido o fim dela comigo, com a minha interferência. Não se trata dos meus pais, da Agatha, dos meus amigos ou dos meus parentes, isto se trata de mim, da minha vida. Tem a ver com o contexto todo. — Solucei. — Desde que nasci, a minha vida e a vida dos outros à minha volta foi de mal a pior. Tudo tem dado errado. Não adianta me perguntar "e se?" e ficar pensando se as coisas tivessem sido diferentes sem mim. Eu sei como elas aconteceram comigo. E tudo o que aconteceu foi comigo e com a minha interferência.

Morgan assentiu, como se entendesse onde eu queira chegar, mas eu podia ver a relutância no rosto dela. Ela ponderou por alguns instantes, dando-me mais espaço para chorar, antes de me responder.

— Eu entendo o que quer dizer, Alex, e eu concordo com você: o que aconteceu na sua vida e na vida dos demais à sua volta tem a sua interferência. É o que acontece quando existimos, mesmo os mais quietinhos, mesmo os mais reclusos, a gente não passa a nossa vida inteira desapercebido — apontou ela, pensativa. — Ninguém passa. É impossível. Você interfere e vai continuar interferindo no ambiente à sua volta, na sociedade à sua volta. Você ocupa um lugar no espaço. Não é?

Limpei o rosto, tentando acalmar o coração com a voz calma dela, mas não consegui responder.

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— Assim como o que acontece com você, na sua vida, também tem a interferência dos outros — contrapôs ela, com um sorriso. — A sociedade é uma rede bem caótica, bem desorganizada, bem rápida e maluca, de pessoas interligadas de infinitas maneiras, tantas que a gente nem consegue perceber. Somos caminhos conectados, interligados, enroscados uns nos outros, em infinitos nós impossíveis de se desconectar. Essa é a graça da coisa. E também, quem sabe, a desgraça — sugeriu, com certo humor.

Ergui os olhos para ela, enxergando-a um pouco melhor agora, a visão já mais desanuviada.

— Muito poética, Morgan — apontei, um pouco frustrado. — Mas você ouviu o que eu disse?

— Ora, é claro que ouvi. Essa poetisa que habita em mim resolveu dar uma aparecida exatamente porque ouvi o que você disse e entendi o que disse — apontou, com um riso. Revirei os olhos marejados. — Brincadeiras à parte, Alex, eu estou te ouvindo. E você, está me ouvindo?

Suspirei, ajeitando a postura na poltrona, e finalmente assenti, os olhos nos dela.

— Você pode ter interferido milhares de vezes na vida de todos que conhece e vai continuar interferindo, da mesma forma que há milhares de interferências alheias na sua vida. — Ela pausou por um instante antes de continuar: — Todos nós temos nossa cota de decisões ruins, de erros que cometemos, de pessoas que magoamos. Mas acredito que todos nós devemos entender que existe outro lado da moeda. Existe...

Ela sorriu, soltando o ar pelo nariz com certa satisfação, chamando minha atenção.

— Existe o Caleb convencendo você a buscar ajuda para si próprio, porque te conhece bem o suficiente pra não acreditar quando você diz que está bem — apontou, com certo humor, e eu engoli em seco. — E quanto ao Ian ter ficado chateado que você não aceitou carona para as sessões de terapia depois da primeira semana, porque ele queria tanto sentir que está ajudando? E quanto ao Bruno, que durante semana de provas na faculdade, foi passar todas as noites da semana com você, pra certificar que estivesse bem? — Eu mordi o lábio machucado mais uma vez e, mais uma vez, minha visão começou a anuviar. — E quanto a Mary Jane, que têm feito resumos das aulas das quais você não presta atenção para te entregar mais tarde? E quanto ao Mason e a mãezinha dele, que têm te abrigado há quase um mês, sem perguntar nem exigir nada? E os seus tios, que não só respeitaram sua privacidade, como também praticamente cortaram relações com seu pai depois dele haver te expulsado de casa? E todos os outros amigos que estão todo dia te oferecendo um lugar para ficar, uma carona para ir pra casa, um dinheiro extra pra você se virar sozinho?

Levei uma mão ao rosto porque eu devia parecer patético com todo aquele choro descomunal, mais uma vez, e não consegui retrucar absolutamente nada que ela havia dito.

— Alex — chamou ela, em um tom ameno —, eu entendo que muita coisa pode ter dado errado — concordou, com cautela, mas eu já negava ao perceber que vinha um "mas" depois —, assim é a vida, mas você tem certeza de que tudo deu errado?

Hesitei, mas eu não conseguia simplesmente me jogar no que ela estava dizendo. Eu já havia me convencido das mesmas coisas antes, até eu levar outro susto de haver colocado mais alguém em perigo ou magoado mais alguém profundamente, e então eu me lembrava que não devia me convencer de nada.

— Você tem amigos que te amam e te apoiam — apontou ela, e eu fechei os olhos. — Até mesmo na família, você tem tios e um primo que nunca deixam de te estender a mão. A sua irmã, por mais que tenha vindo a falecer, pelo que você me conta, te amava muito.

Neguei, sentindo o coração pesar. — E olha o preço que ela pagou por isto.

Morgan balançou a cabeça de um lado ao outro, firme. — Sua irmã não morreu por te amar, Alex — falou, séria.

— Eu a coloquei em risco várias vezes e o mesmo com meus amigos — apontei, relembrando as confusões nas quais eu os meti, inclusive em parar em um borde no aniversário do Caleb quando são menores de idade —, e o mesmo com o Caleb. Ele quase morreu nos meus braços, Morgan — repeti, deslizando um pouco mais para frente na cadeira, como se me aproximar dela fosse fazê-la me entender —, sem respirar, da mesma forma que a...

Franzi os lábios e ela arqueou as sobrancelhas minimamente.

Dei de ombros, tentando me manter firme na minha convicção. — É um sinal que prova que a minha teoria tá certa e eu não devia ter nascido.

Morgan pareceu querer dizer algo, mas apenas inspirou fundo, pensando a respeito antes de concordar comigo.

— É — concordou ela —, ele quase morreu. Mas você o salvou — contrapôs, com um sorriso. — Que sorte a dele — acrescentou, fazendo-me olhar para ela —, que justamente quando ele caiu na piscina onde não dava pé, alguém que sabia nadar e podia tirá-lo da água estava lá para salvar a vida dele.

Minha cabeça bugou por um instante e eu não consegui pronunciar nada por um tempo, mas acabei apenas negando no automático.

— Não, você tá vendo as coisas pelo ângulo errado...

— Estou? — retrucou ela, ajeitando-se na cadeira, cruzando os dedos. — Ou será que é você que está?

Abri e fechei a boca, mas acabei ficando quieto.

Eu sabia onde ela queria chegar, mas eu não podia concordar. Não fazia tanto sentido quanto o que eu havia visto, vivido e presenciado durante a minha vida inteira.

Morgan aproveitou meu silêncio para ser ela quem falasse, desta vez.

— Você estava lá quando ele precisou e o salvou, porque estava ao seu alcance — repetiu, novamente. — Você estava lá quando sua irmã precisou a vida toda e não pôde salvá-la, mas é porque estava fora do seu alcance — enfatizou, embora eu continuava a girar o rosto de um lado ao outro. — Infelizmente, Alex, o seu amor ou o seu cuidado quando criança não seriam o suficiente para curar sua irmã de uma enfermidade, não importa o quanto isto te doa. Mas você estava lá o tempo todo, o que era tudo o que você podia fazer quando criança — enfatizou, e eu senti minha respiração falhar, fechando os olhos. — E eu só consigo imaginar que, durante os pequenos seis anos da vida dela, você foi a pessoa mais importante para ela.

Um soluço alto escapou do meu peito e eu dobrei as pernas, apoiando os pés na poltrona e escondendo o rosto nos joelhos, para me sentir mais protegido. Neguei, ainda assim, mas agora eu já não sabia mais o que estava negando.

— Você a amou e cuidou dela até o dia em que ela se fosse — completou, e eu chorei baixinho, sem ousar abrir os olhos ou erguer a cabeça do escuro protegido do meu próprio corpo. — Alex, eu entendo que você acredite que seu sangue faz de você uma pessoa amaldiçoada, mas posso compartilhar o que eu acredito?

Eu não consegui responder, mas ela tomou meu silêncio como afirmativa, como deveria.

— Eu acredito, também, que algumas pessoas tem um propósito negativo a desempenhar aqui no universo, mas elas raramente são as que cogitam ter um propósito negativo — apontou, pensativa. — Acredito que você tem um propósito muito maior e melhor do que imagina, até do que eu imagino.

Neguei mais uma vez, suspirando baixinho.

— Eu acho bem mais fácil de acreditar, vendo o quanto você amou sua irmã, que ela nasceu na sua família, ao seu lado, para que você cuidasse e amasse ela com tanto esmero para que a curta vida dela tivesse sido mais mágica do que teria sido sem você — ponderou, em um tom compassivo.

E outro soluço doloroso escapou do meu peito antes que eu pudesse segurá-lo e empurrá-lo para dentro.

— Acho bem mais fácil de acreditar que você estava lá, naquele momento, ao lado do Caleb, com o propósito de salvá-lo para que ele tivesse a vida inteira pela frente. — Ouvi o som da cadeira dela antes que ela suspirasse, continuando: — E talvez quantos propósitos mais? Sua vida recém começou, Alex, tem tanta coisa por vir ainda — garantiu. — Quem sabe quanto mais de diferença você vai fazer no mundo ou, simplesmente, na vida das pessoas que te amam? — questionou novamente, em um tom ameno. — E uma coisa eu te digo de certeza: seus amigos não estavam esperando por você ali fora por você haver impactado negativamente a vida deles, Alex, não mesmo.

Ergui o rosto e foquei os olhos marejados nela, finalmente, vendo um sorriso compassivo formar-se ali.

— Você entende que essas crenças que você tem geram esse tipo de pensamento e que, por sua vez, gera uma série de reações em você, constantemente te levando às parassonias, às crises de ansiedade, aos ataques de pânico? — questionou ela, e eu finalmente consegui fazer mais do que ouvir e assenti. — Eu entendo, é difícil mudar nossas crenças centrais, porque elas são a base de tudo o que pensamos.

Mordi o lábio com tanta força que reabri pela milésima vez o corte.

— Mas, Morgan, essas crenças existem e são base de tudo porque faz sentido pra mim — falei, e ela assentiu. — Eu não posso simplesmente começar a acreditar que o céu é vermelho se eu sei que é azul.

Morgan assentiu, com um brilho no olhar, como quem diz: é este o dilema. No fim, ela apenas perguntou: — E ainda faz?

— O quê?

— Depois da nossa conversa de hoje — enfatizou —, essa crença de que você é o causador de todos os males à sua volta ainda faz tanto sentido quanto fazia ontem?

Vacilei na resposta, piscando algumas vezes.

— Essa é a parte difícil — apontou ela, quando só respondi com silêncio —, mas a gente já tá percorrendo ela. Alex — chamou, e eu ergui os olhos novamente —, a autocrítica é tão necessária quanto a autocompaixão. Nós precisamos das duas coisas, e isso é muito difícil de equilibrar. Estamos tão acostumados a ter uma ideia pronta sobre nós mesmos que nem permitimos um segundo de autoanálise. Mas eu volto a dizer que a base desta terapia inteira é a autoanálise — apontou, e eu suspirei. — Mais importante do que eu te analisar, é você se autoanalisar. É esse minuto de parar e pensar de onde vem esse pensamento, se a crença que o gerou está correta, de onde ela surgiu. Nosso cérebro é como uma rede social — apontou, como uma sugestão. — Ele vai nos jogar várias informações, novas e antigas, sobre pessoas que você conheceu ou não. Cabe a você questionar as notícias e as fofocas que essa rede te entrega, checar a fonte, ver se é verídico antes de compartilhar e mandar a mesma mensagem para o restante do seu cérebro. E também entender se essa notícia que vive no seu feed, te machucando, é realmente importante para você para você compartilhar e pedir mais dela. Entende o que eu quero dizer?

Acabei sorrindo e assenti.

— Essa rede social pode ser bem cruel — apontou para a própria cabeça, em seguida pegando o celular e o balançando —, ainda mais do que as redes sociais normais. — Ela deu um sorriso triste. — Porque somos nós que a controlamos e nós também somos o centro dela. E o negócio, Alex, é que às vezes nós tendemos a ser bem mais críticos conosco do que com os demais. — Morgan pausou por um instante, como se recém surgisse uma ideia, e jogou: — Se o Ian, ou o Caleb, ou o Bruno viesse até você contando que é fruto de um incesto e que é amaldiçoado, que sua vida seria melhor sem ele, você o trataria da mesma forma que trata a si mesmo?

Aquilo doeu.

Senti como se todos os meus demônios, aqueles pensamentos doentios que voam pela minha cabeça e que me fazem acreditar que possuem a razão de tudo, batessem em uma parede naquele instante. Porque por mais que eu quisesse contradizer Morgan, por acreditar mais nos meus demônios do que nela, eu sabia que ela tinha razão sobre aquilo.

Minha cabeça rodopiou em respostas contrárias, mas nenhuma delas fazia tanto sentido quanto a resposta sincera: não.

Não, jamais, nem por um segundo.

Engoli em seco, desviando o olhar para longe, o coração pesando em algum lugar ali dentro e com os olhos lá no sol ao longe, eu acabei negando.

— O que você diria a ele? — questionou, interessada.

Senti meu queixo tremular contra minha vontade.

— Eu... — Minha voz falhou e eu tive que tentar outra vez, os olhos já cansados de produzir lágrimas. — Eu diria que isso não faz o menor sentido. Eu... — Pigarreei, tentando engolir o nódulo. — Eu diria que...

Acabei chorando outra vez, sentindo-me engasgado, os soluços vindo com toda a força, como se estivessem presos durante minha vida inteira. E eu não pude falar ou pronunciar qualquer coisa semelhante a fala.

— Você se afastaria ou você o acolheria? — insistiu ela, e eu tapei o rosto, não conseguindo pausar o choro.

— Morgan...

O choramingo saiu feito uma súplica e eu continuei soluçando feito uma criança infeliz. Não pude enxergar nada, não soube que expressão ela pusera no rosto, mas eu ouvi sua voz.

— Acolha a si mesmo também, Alex.

*

(...)

O aperto no peito começou a me sufocar no minuto em que subi com facilidade, sem ajudar alguém a subir junto de mim. Sozinho e solitário, não importou que eu houvesse secado as lágrimas, porque mais começaram a sair.

Algo em mim lutou para sair e eu permiti, no segundo seguinto um berro havendo ecoado pelo quarto inteiro. Minha garganta secou e ardeu pelo grito doloroso e eu tossi logo em seguida, tornando a pular ao passo que choro ficava pior e pior.

Eu não sabia viver sem ela.

Eu odiava todo mundo que não fosse ela.

E mesmo quando pulava na cama como quando pulava com ela, e como havia prometido que faria mesmo sem ela, não conseguia sentir a presença dela. Não conseguia ter um vislumbre dela, nem um aroma dela, nem um eco da gargalhada dela, nem mesmo conseguia sentir algo remotamente parecido com o sentimento que aquecia seu peito quando estava ali com ela.

Ela.

Nada fazia sentido sem ela.

Nada tinha graça.

Ela era toda a graça, ela era toda a questão, ela era todo o contexto, ela era minha toda a minha motivação.

Pular na cama não tinha graça sem ela, mesmo que ela jurasse de pé junto que a graça não estava nela, estava em pular. Pular ou não, não fazia diferença, era tudo igual.

Tudo era feio e dolorido.

Eu ainda estava pulando fracamente, ouvindo as batidas pesadas na porta e a voz grave e forte do meu pai ordenando que eu abrisse, até no último pulo. Eu senti que o choro já não me permitiria pular mais então decidi parar. No último, meu impulso foi maior e me levou mais para cima e, na volta, eu recolhi as pernas para cair sentado.

O creck quando uma parte da cama quebrou ecoou pelo quarto, ainda mais alto que meu choro, e foi seguido do som da porta quando finalmente abriu com o baque do corpo pesado do meu pai.

Eu mal o enxerguei, a visão turvada, e mal o ouvi, com os soluços altos. Ainda assim, eu soube que seus olhos pretos escureceram e soube que ele proferia murmúrios de ódio. Eu também soube que iria apanhar antes da primeira palmada pesada acertar o braço que eu usei para apoiar na cama e levantar, escorregando dela para o chão aos prantos.

Eu não tinha consolo.

Eu não tinha motivos para ter consolo também.

Eu não tinha nada nem ninguém, e nem mesmo um eco fraco da Agatha retumbava em meu coração. Eu já esquecia da sua voz, do seu riso, das suas feições.

E tudo era dolorido.

Eu estava em um túnel úmido e fétido sem saída, sem iluminação, sem conforto, sem apoio, sem amor. E, ainda assim, eu tinha que seguir em frente, fingindo que haveria uma saída iluminada, fresca e arejada ao fim dele quando sabia que não existiria tal coisa.

A vida havia perdido todo o sentido.