Made of Stone

EXTRA - O curso natural das coisas - Pt. II


— Vocês são uma dupla e tanto.

Ao passo que se dispersavam da praça de alimentação, porque estava ficando tarde, Annelise e Bruno acabaram caminhando na frente dos demais.

Bruno riu.

— Alex é minha cara metade — contou, fazendo-a rir. — Assim como Faye é a sua — explicou, batendo o ombro no dela.

Annelise assentiu. — Eu sei — falou, relanceando atrás, com um sorriso.

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Após o murmúrio dela, um silêncio não tão confortável assim recaiu sobre eles.

Bruno relanceou sua amiga, por vezes, sua companheira, sentindo-se culpado por haver rejeitado seus últimos convites de saírem sozinhos. Ponderava se era isto que a deixara tão quieta ultimamente, e as conversas tão vagas entre eles.

— Me desculpe — pediu, chamando sua atenção. O olhar interrogativo dela o fez explicar: — Por haver estado distante de você.

Annelise sorriu, abanando como se não fosse nada.

— Não tem problema — garantiu, embora Bruno ainda parecesse relutante. — É sério. No início, eu estranhei, mas somos amigos. Está tudo tranquilo. Na verdade... — Pensou um pouco, com uma careta. — Na verdade, eu achei que eu estivesse te evitando nos últimos tempos.

Bruno franziu o cenho.

— É? Por quê?

Annelise suspirou. — Não sei, na verdade — murmurou, embora não fosse totalmente sincera. — As conversas com a minha mãe me subiram à cabeça, eu acho.

Bruno franziu o cenho, não entendendo, mas antes que perguntasse algo, Annelise prosseguiu: — Você sente.... — Hesitou, contorcendo as mãos. — Bruno, você sente que é discriminado por ser, você sabe, mexicano?

As sobrancelhas de Bruno arquearam-se com surpresa, antes que pensasse um pouco, coçando os cabelos.

— Ah, às vezes.

— É mesmo? — questionou, interessada, ao alargar um tanto os olhos.

— Sim... — Hesitou. — Quero dizer, eu não tive tanto problemas, especialmente com o colégio. Lá, ninguém nunca foi cruel comigo nem nada do tipo, mas ainda assim eu ouço umas coisas bem nada a ver sobre a minha origem.

Annelise assentiu, séria, antes de cair em mais um silêncio.

— Por quê? — questionou, curioso, ao bater o ombro novamente no dela, chamando os olhos para si. — Você anda sofrendo muita discriminação por ser... mexicana? — questionou, brincando com as sobrancelhas, ao fazê-la rir.

— Ah, cala a boca, Bruno! — brincou, dando um peteleco na cabeça dele. — Você não se aguenta né? — Ele dá de ombros, risonho. — Você sabe o porquê.

— Por ser uma deusa preta maravilhosa? — questionou, fazendo um carinho no rosto dela. — É, eu imagino que isso cause bastante inveja por aí.

Ela o olhou com carinho por um instante antes de revirar os olhos e empurrá-lo, sem muita força.

— Eu tô falando sério — pediu, perdendo o sorriso.

Bruno a imitou.

— Isso é sobre aquelas fotos do ano passado e o seu castigo? — questionou, sério. Ao perceber a expressão dela, explicou: — Faye me contou sobre a sua discussão com sua mãe. É por isto que têm me evitado também?

Annelise deixou o queixo cair.

— Aquela vaca fofoqueira! — reclamou, mas sem realmente sentir raiva, antes de suspirar.

As coisas haviam melhorado com a sua mãe, e o castigo não durou tanto quanto prometido. Ela já podia sair com os amigos sempre que quisesse, e Faye já tinha permissão para passar tanto tempo lá quanto antes. Sua mãe, finalmente, pareceu sentir que havia passado a mensagem de forma clara daquela vez.

O problema era ela própria. Não conseguia fazer o mesmo que antes sem que sua consciência pesasse. Havia se tornado prisioneira de sua própria mente assustada.

— Acho que sim — concordou, desanimada. — Eu só ando meio cautelosa — escolheu as palavras, com uma careta. — E eu tenho guardado muito para mim, porque ah, eu até queria conversar melhor com a Faye sobre isso... Quero dizer, eu vou — enfatizou — desabafar com ela sobre isso, mas... — Olhou-o, com certa hesitação. — Primeiro, eu queria conversar com alguém que fosse me entender — disse, encarando-o significantemente. — Tipo, entender de verdade.

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Bruno sorriu, assentindo. Olhou para trás novamente, ao perceber que já estavam nas escadas rolantes, vendo que ainda tinham um tempo à sós, antes de olhá-la novamente.

— Olha, o negócio é não se deixar abalar, sabe? Você sabe que eu sou todo, sabe, brincalhão — falou, escolhendo a palavra certa, fazendo-a sorrir —, então para mim é mais fácil relevar. Mas o León, por exemplo — fala, referindo-se a um dos irmãos — ficou meses sem sair de casa durante uma época por causa disso. — Annelise perdeu o sorriso, e ele também. — Ele sofria muito no trabalho dele. Diziam que ele era preguiçoso, que estava ocupando o lugar dos que mereciam, que devia voltar pro México. Ele teve depressão por um tempo por causa disso, sabe? — contou, baixinho. Anne assentiu, pesarosa. — Mas ele foi forte, teve que aprender a dar a volta por cima. Ele ficou lá, continuou aparecendo, e hoje ele é o gerente da porra toda e ninguém ergue a voz para ele — disse, orgulhoso, ao estufar o peito.

Annelise arqueou as sobrancelhas, subitamente animada.

— Que show!

— Acho que a gente tem que se cuidar, sim, talvez mais do que os outros — admitiu, baixinho —, mas nunca deixar de fazer o que gosta por causa desses otários — concluiu, dando de ombros. — Sempre haverão otários no mundo, você sabe.

— Eu sei.

— E cara, mais vale você ficar trancada em casa, deixando de fazer algo que gosta para ficar segura — questionou, sério — ou se arriscar e ser feliz?

Apesar de haver estado distante dela todo esse tempo, meses haviam se passado e era impossível não perceber que Annelise já não aparecia mais nas saídas arriscadas deles, o que faziam as saídas já não serem tão divertidas sem ela.

Annelise fechou a cara, parando de caminhar.

— Bruno. — Parou, olhando-o com hesitação. — Minha mãe tinha razão em cada palavra. Eu fui irresponsável e eu coloquei a minha vida em risco.

Bruno ponderou por um momento, suspirando, enfim.

— Sim, ela deve ter razão mesmo — disse, e Annelise franziu o cenho, confusa —, então você tem que aprender a ser responsável. Só que eu acho que quebrar as regras de vez em quando não é ser irresponsável, ser irresponsável é quebrar as regras na ignorância, sem estar ciente dos riscos, sem aceitá-los — divagou, colocando as mãos nos ombros dela. — Escuta, sua mãe é como toda mãe, e toda mãe quer manter o filho a salvo. Toda mãe quer saber onde o filho anda de madrugada, quer que tire notas altas, quer que seja um exemplo, que fique longe de álcool e de drogas, que não se ponha em perigo. E toda mãe tem razão. Mas tem um contraponto — acrescentou, fazendo Annelise sorrir.

Bruno olhou para trás de Annelise, de onde vinham os demais, conversando e rindo juntos. Jake caminhava lado a lado com Ben, parecendo desconfortável, mas lhe sorrindo ainda assim.

O mexicano voltou os olhos para ela.

— Eu não sei, eu... — Suspirou, trazendo as questões de Annelise para si próprio. — Eu tenho pensado nos últimos tempos que... Não existe vida sem riscos. E se você vive evitando tomar riscos, então não vive coisa nenhuma — concluiu, sério. — Não deixe as palavras da sua mãe subirem à sua cabeça desta forma, porque a gente não pode viver com medo, nem enfurnado em casa, com a cabeça nos livros ou presa nos diversos perigos que estamos correndo só de pormos um pé para fora de casa por um segundo — disse, vendo-a engolir em seco. — Você pode ser responsável, e ser uma garota foda e uma filha exemplar, e ainda assim ser uma adolescente normal. Sabe?

Annelise hesitou, no fundo sentindo-se dividida, mas satisfeita de poder finalmente conversar sobre isto.

Parece que quando você conversa sobre um problema, ele parece menos com um problema e mais com uma coisa boba.

— Sei. Você tem razão. — Hesitou, com uma careta. — Mas...

— Mas a sua mãe também tem razão — finaliza ele, e ela ri também.

— Sim — concorda, dando de ombros. Então, franze o cenho, agonizada. — Mas como eu encontro um meio termo? Como eu sei qual é o meio termo? Como eu posso ser uma adolescente normal, apesar de saber que eu nem sempre vou ser tratada como tal?

Bruno sorriu, fazendo um gesto misterioso com as mãos.

— Esse é o dilema, Princesa Anne, esse é o dilema — disse, enigmático. — E talvez a gente leve a vida toda tentando resolvê-lo.

Annelise soltou um resmungo agonizante, mas Bruno apenas passou um dos braços pelos ombros dela e abraçou-a de lado, esperando os demais os alcançarem no hall de entrada.

— Senti sua falta — admitiu ela, em seu abraço. — Disto, sabe? — disse, referindo-se à conversa e à amizade à parte da panelinha. — Não do demais.

Bruno afastou um tanto o rosto para olhá-la, estreitando os olhos.

— Não do demais?

Annelise gargalhou, dando um tapinha nele.

— Disto muito mais — corrigiu, sorrindo. — Obrigada.

Bruno sorriu também, suspirando.

— É, eu também — revelou, assentindo. Então, mudou a conversa para abstrair um pouco. — Sabe, uma vez ouvi um boato na vizinhança de que minha família faz parte de uma gangue mexicana que trafica mulheres, chamada Caliente — contou, causando risos em Annelise, que o analisou para tentar descobrir se era verdade. — Eu queria não estar, mas eu tô falando sério — reforçou, ao perceber o olhar analítico sobre ele, rindo junto dela. — Acho que “caliente” é a única palavra que as pessoas conhecem em espanhol.

Annelise gargalhou, sem aguentar-se.

— Meu deus, Bruno!

— Eu sei — concordou ele, rindo. — Virou uma piada interna para a gente, então às vezes conversamos alto sobre isso nas ruas, só para meter medo — confessou, e Annelise riu, chocada. — Ora, se eles se divertem à nossa custa, podemos fazer o mesmo, não?

— Você não presta.

— Eu sei.

*

Após uma dramática despedida, devido à raridade de todos estarem juntos, eles começaram a se dispersar.

Os primeiros foram Alex e seus pestinhas. Os cinco se enfiaram dentro do carro com a mãe de Ian, que buscou-os e de quebra, levou o sobrinho junto. Alex fez questão de sentar no colo do Caleb, vendo-o fazer todo um drama por ele ser pesado demais, o caminho todo para casa.

Antes de sair do shopping, no entanto, ainda encontrou mais uma oportunidade para provocar Bruno sobre o segredinho sujo que acabara de descobrir. Vê-lo nervoso com a possibilidade de Jake ver os gestos e os olhares acerca dele seria a maior diversão do Alex dos últimos tempos.

— Jake! — chamou Ben, em meio às despedidas dos demais.

Jake virou-se para ele, dando um sorriso formal.

— Hum?

— Eu vim de carro — contou, apontando vagamente para os elevadores que levam ao subsolo. — Se quiser, eu te levo para casa. Não precisa pagar executivo — tentou, cauteloso.

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No fundo, ponderava se estava cruzando uma linha, mas achava bobo pensar que uma simples carona faria isto. Ao mesmo tempo, Jake lhe dissera que precisava de um tempo, e talvez isto incluísse o pouco tempo sozinhos em um carro, em uma carona.

Jake hesitou.

— Ah — murmurou, perdido —, não precisa se incomodar. Mesmo.

Jake odiava aquela situação, mas estava tentando fazer o que era melhor para ele. Entendia o quão bobo podia parecer recusar uma simples carona do melhor amigo que, antigamente, sempre lhe carregava para todos os lados sem nem mesmo questionar.

Sentia, no entanto, que não era o certo para ele próprio.

— Jake!

Bruno apareceu entre eles, com um sorriso amarelo, ao olhar de um para o outro. Não havia planejado aquilo tão bem, mas logo pensou em algo: — Hã, você não esqueceu que vou levá-lo ao Mc Donald’s, não é?

Cutucou Jake, que arqueou as sobrancelhas, confuso. Ben fez o mesmo, também olhando de um para o outro.

— Jake gosta do sorvete de lá — contou Bruno ao Ben, como se ele não soubesse — e eu prometi levá-lo. É logo na próxima quadra, então não tem problema irmos a pé. Tem?

Desta vez, dirigiu-se ao Jake.

Jake abriu e fechou a boca algumas vezes, antes de negar rapidamente, mordendo os lábios para não sorrir.

Bruno acabara de inventar tudo aquilo, e Jake soube naquele momento que era para evitá-lo de pegar carona com Ben. Devia ter ouvido a conversa e percebido o quanto Jake queria evitar que aquilo ocorresse. Ele era tão transparente que não duvidava que qualquer pessoa percebesse seu desconforto.

— Ótimo!

Ben estranhou tudo, mas tentou uma vez mais:

— Tem certeza? — questionou, encarando Jake.

A expressão de Ben, subitamente desanimada, fez o coração do melhor amigo encolher-se dentro do peito.

Jake sentiu uma súbita vontade de chorar e de abraçá-lo, porque sabia o quanto Ben era solitário e o quanto aquilo tudo estava doendo nele, e de acabar com o tempo que havia pedido dele. Hesitou, olhando de um para o outro, prestes a gaguejar algo sem sentido.

Ben, no entanto, foi mais rápido.

— Tudo bem, então — disse, forçando um sorriso tão falso que até Bruno, que não o conhecia tão bem, percebeu. — Bom sorvete para vocês. Nos vemos na próxima?

Jake deu um passo em frente quando ele deu um atrás.

— Mas...

Ben balançou a cabeça negativamente, o calando.

— Tá tudo bem — garantiu, presenteando-o exatamente com o que Jake precisava ouvir para dar as costas com a consciência tranquila. — Eu tenho um lugar para estar daqui um pouco.

Conhecia-o o suficiente para saber que Jake não queria ir com ele para casa, mas que iria se Ben tanto insistisse. Optou por não insistir, respeitando seu espaço.

Se Jake precisava de tempo, ele o daria.

Jake assentiu, e os dois se despediram rapidamente antes que Bruno passasse um dos braços pelos ombros de Jake e o arrastasse para longe, dizendo algo que o fizera sorrir.

Ben havia percebido que eles estavam andando juntos há tempos, mas apenas naquela ocasião percebeu algo além disto: o quanto Jake parecia bem. Longe de Ben, Jake estava ótimo. Sorria mais, brincava mais, conversava mais quando esquecia da presença de Ben ao seu lado, como foi o caso deste dia. Foi assim o dia todo. E mesmo conversando com ele, parecia melhor.

E não apenas sozinho, mas também com Bruno.

Bruno fazia bem para ele, o protegia e o fazia rir. Mais do que isto, Bruno estava ajudando Jake a cicatrizar. Ben podia ver isto, que ele estava cicatrizando.

Subitamente, recordou-se das palavras da dona Martha sobre descobrir quem ele é sem o Jake, assim como Jake o fazia agora. E ela tinha razão, Jake estava se descobrindo e, aparentemente, o que ele estava descobrindo eram apenas coisas boas sobre ele mesmo, porque parecia tão mais confortável no próprio corpo quanto jamais esteve.

Ben queria sentir-se assim também.

Não sabia por onde começar, mas sabia que, apesar de haver blefado, realmente queria ter um lugar para estar ainda naquela noite. E sabia exatamente que lugar era este. No exato momento em que ponderou se devia simplesmente dar as costas e ir para onde seu coração o aquecia ou se devia oferecer carona para mais alguém, a resposta caiu no seu colo como um sinal divino.

— É sério, eu dou carona para vocês — insistia Matt, para as garotas. — Cabe todo mundo no meu carro, e eu sei onde vocês moram.

Ben murmurou uma despedida rápida e correu para seu carro.

— Você trabalha amanhã — interrompeu Emily, a única que relutava. — São quatro endereços. A gente pode pegar um executivo.

Matt deu um passo à frente, os olhos suplicantes, mas Faye se intrometeu ao corrigir: — Na verdade, são três. Mia vai dormir comigo hoje — revelou, piscando um dos olhos para ela, que avermelhou feito um pimentão.

— Ui — provocou Anne, rindo, antes de se virar para o Matt. — Nós vamos com você, sim. Em — chamou, os olhos pedintes —, ele quer nos levar, então ele que nos leve! Não é?

Matt assentiu, abrindo um sorriso largo, enquanto todos a olhavam com expectativa.

Emily suspirou, mas por fim, concordou.

Sabia exatamente o que a esperava e era exatamente o que não queria.

*

Ao passo que Ben aproximava-se da casa de Lucy, já conseguia ouvir a discussão. De fato, imaginou que boa parte dos vizinhos daquela quadra pudessem ouvir o mesmo.

Era uma casa simplória do lado sul da cidade. Havia estado ali apenas uma vez, após o único encontro que tivera com Lucy, em que a largou ali.

No instante em que parou em frente ao portão pequeno e baixo, sentiu-se um intruso. Por destoar de tudo por ali, por estar interrompendo uma discussão épica entre dois homens que não conhecia, por não haver avisado a Lucy que viria. Mais ainda, por não saber se ela estaria ali por ele. Por medo de que não estivessem mais na mesma página, por receio de que não houvesse volta atrás quando a dispensou sem sutileza alguma.

Sentia-se um intruso na vida dela.

As palavras de sua segunda mãe - sua mãezinha de alma -, no entanto, repercutiam em sua mente, bem como o sorriso completamente novo que Jake exibia sem perceber. Queria tanto aquela felicidade que Jake parecia estar alcançando, aquela que a dona Martha tanto desejava para ele.

Queira tanto que Lucy valia o risco de ter seu coração partido.

Adentrou no pátio da casa, visto que o portão estava aberto, e bateu na porta, já que não havia campainha alguma onde pudesse ver. O portão tampouco parecia representar muita segurança, porque mesmo que estivesse fechado, Ben podia passar por cima dele e do muro baixo.

Um longo tempo de espera se estendeu, e para a sua surpresa, foi Lucy quem abriu a porta com brusquidão.

Os cabelos loiros estavam erguidos em um coque desengonçado, o rosto estava limpo de maquiagem, e portava uma expressão nada amigável. Usava uma camiseta larga e desgasta pelo tempo, que lhe cobria até metade das coxas, escondendo a bermuda curta que vestia. Estava claro que não esperava nenhuma visita.

A loira tinha a boca aberta, como se estivesse algo preparado para dizer na ponta da língua, mas isto mudou quando reconheceu a figura alta que jazia em frente à porta.

— Benhur?

Ben fraquejou, engolindo em seco, ao ouvir seu nome completo sair da boca perfeita dela. No fundo, amava que ela o chamasse assim, ao contrário do apelido que todos usavam.

— Eu — murmurou, baixo, sentindo-se deslocado.

A expressão irritada dela esvaiu-se um tanto, mas não completamente. Não parecia exatamente feliz por vê-lo ali. Surpresa, mas não feliz. Deu uma olhada impaciente para dentro de casa, de onde a discussão acirrada seguia, antes de dar um passo para fora e fechar a porta atrás de si.

— Pensei que fossem os vizinhos de novo — disse, franzindo o cenho, antes de dar uma olhada na rua atrás de Ben como se para checar que eles não estivessem à espreita para reclamar uma vez mais da gritaria. Voltou os olhos ao Ben. — O que faz aqui?

Ben ponderou por um instante, quase arrependido de vir, sentindo a rispidez da voz dela. Por que está aqui e não em qualquer outro lugar longe de mim?, sentiu que fosse a pergunta real.

— Não queria atrapalhar — pediu, dando uns dois passos atrás, querendo desfazer sua aparição.

Lucy não permitiu, olhando-o de cima abaixo, analítica. — Perguntei o que faz aqui — repetiu, erguendo uma das sobrancelhas, incisiva.

Ben suspirou, os olhos castanhos por sobre os azuis dela.

Mal a enxergara, naquele primeiro segundo após ela abrir a porta, e já se sentira mil vezes melhor, mesmo na situação em que se encontravam. Mesmo com a postura arisca dela para consigo, e com as palavras ríspidas, e com a ausência de alegria por vê-lo, Ben percebeu que foi para isto que viera.

O simples fato de vê-la o fazia sentir bem.

— Queria te ver — confessou, simplório. — Queria conversar com você — contou, também, como uma corrente de verdades. — Queria pedir desculpas.

Lucy, ainda sem demonstrar emoção alguma além da posição defensiva - os braços cruzados -, assim permaneceu. A discussão de fundo parecia tão comum que ela sequer parecia se incomodar, agindo como se estivessem só os dois, e não mais os outros dois no fundo.

— Por ter me dado um gelo? — alfinetou, debochada.

Ben assentiu, prontamente, ignorando a ironia.

— Sim.

— E por quê? — rebateu ela, empinando o queixo.

Por quê?, perguntou-se.

Sabia o porquê, como sabia de muitas coisas sobre ele próprio, mas não tinha certeza se sabia como admiti-las ao invés de engoli-las, como sempre houvera sido sua escolha.

Mas havia algo mágico sobre a Lucy. Não sentia a necessidade de mentir com ela, ou de fingir, ou de esconder. Aliás, era exatamente sobre esta magia que tudo se tratava. Foi exatamente esta magia que o atraíra até ela, que o fizera esquecer do melhor amigo no meio de sua festa, que o fizera perder noção do tempo naquela e em toda vez que estava ou falava com ela.

— Porque eu o fiz por motivos errados — disse, pensativo. — Porque eu não queria realmente me afastar de você. — Encarou os olhos azuis com certa culpa e deslumbramento. — Pelo contrário. Eu queria tanto estar com você que tive medo. Tive tanto medo que usei outro como desculpa para evitar este — confessou, referindo-se ao medo de perder a amizade do Jake. — Me desculpa.

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Lucy piscou, desorientada.

Havia, parcialmente, esquecido da forma direta com que Ben dizia as coisas. Havia esquecido o quão desconcertante era aquela honestidade rara, dita na cara. E, principalmente, havia esquecido de como este detalhe e todos os outros a respeito do rapaz à sua frente a faziam se sentir.

Desde a forma limpa como dizia as coisas, preto no branco, até o levíssimo vislumbre de nervosismo que via nele, porque consegue disfarçar tão bem o que sente, dificultando o trabalho dela em desvendá-lo. A roupa cara, a pose ereta, o jeito de falar. A altura demasiada, os olhos misteriosos, o rosto perfeito e a forma como destoava de si e do ambiente ao qual ela crescera.

Recordar-se destes detalhes, apesar de aquecer seu coração, também a irritava profundamente. .

Ele a havia perseguido, se aproximado, conseguido um encontro - não são todos, hein? -, e então a ignorado, dado um pé na sua bunda, e agora se encontrava bem pleno na frente da sua casa, pedindo desculpas.

— Você é tão...

No entanto, Lucy não conseguiu encontrar a palavra certa. Ponderou, até mesmo, se havia apenas uma palavra para descrever aquele ridículo, cara de pau, deus grego, alma perdida, príncipe bipolar.

Ben ficou em silêncio, e ela suspirou, percebendo que o silêncio era exatamente o que não havia ali. Revirou os olhos, ouvindo as coisas repetidas que seu pai e seu irmão gritavam um ao outro.

Encarou Benhur antes de resmungar um: — Venha.

Não virou para ver se ele a seguia, mas ao ouvir seus passos nas folhas secas da grama, soube que sim.

Guiou-o ao quintal dos fundos da casa, onde não haviam vizinhos intrometidos, e de onde a discussão da sua casa não se ouvia em tamanho volume. Circundaram a casa em um caminho gramíneo que precisava de um corte, assim como toda a grama do quintal, até chegarem nos balanços. Os dois balanços de pneu de carro que seu pai havia montado para ela e seu irmão quando crianças.

Sentou-se em um deles, fazendo sinal para que Ben sentasse no balanço ao seu lado direito.

Ficaram em silêncio por um tempo.

Ben já sabia que a discussão era entre o pai e o irmão de Lucy, já que podia ouvir quase tudo. Vez ou outra, eles baixavam tanto a voz que sequer as podia ouvir, mas depois as elevavam de novo.

Era sobre o futuro do irmão dela, sobre ele não haver seguido a reabilitação pela quinta vez, Ben soube, porque eles eram específicos. Ele havia largado os estudos, viciado em drogas, roubado da família, decepcionado a irmã. Teve certeza que sua dedução estava certa quando mencionavam Lucy e o fato dele estar sendo um péssimo exemplo de irmão mais velho para ela, como se ela não pudesse ouvi-los.

O rapaz, em contrapartida, afirmava que o pai não o entendia, que ele tinha depressão, que não era tão fácil largar as drogas. Também enfatizava que não roubaria mais deles - enquanto o pai retrucava que ele sempre dizia isso e o fazia igual -, que ele já tinha encontrado um emprego e não precisava de estudos, que a irmã o apoiava muito mais do que o pai um dia o faria.

— É o meu pai e o meu irmão, como você já deve ter percebido — disse ela, quebrando o silêncio, agarrada nas correntes do balanço. — Eles vivem discutindo, mas quando eles pegam um dia pra brigar, resulta nisso.

Ben assente, sem saber o que dizer.

— Eles são muito parecidos — murmurou ela, como se uma constatação pessoal, pensativa. — O que mais desgostam um no outro são as características que os dois têm. É patético — disse, soltando um riso rápido.

— São só vocês três? — questionou, em uma tentativa de seguir a conversa.

Isto pareceu despertá-la, recordando-a de que não devia baixar a guarda novamente, já que ele ainda não havia se redimido pelo que fez. Mas o pensamento apenas a lembrou de algo que Ben a dissera na segunda festa que se encontraram juntos.

"Eu sei um pouco sobre autoproteção, então não sou eu a querer tirá-la de você", dissera, como se a enxergasse do avesso.

Fechou a cara, emburrada.

— Sim — disse, sem entrar em detelhes, encarando-o com julgamento no olhar. — Isto era um assunto do terceiro encontro, mas nunca tivemos um segundo — inventou, apenas para provocá-lo.

Ben piscou, pego desprevenido.

— Eu sinto mu...

— Que seja.

Ao menos, ela continua sendo a mesma, Ben pensou consigo mesmo.

Irritada com toda a situação, Lucy tirou os pés dos chinelos de dedos e os afundou na grama que rodeava os balanços. Gostava da sensação, e já havia largado um foda-se para sua aparência caseira e simplória sob os olhos do Ben.

Que ele conhecesse sua pior versão mesmo, de uma vez por todas.

Ben a observou, vendo que um fio louro e curto caíra por sobre sua testa, e ela o afastou com um safanão, impaciente. Quis rir por isto, mas não queria deixá-la mais irritada.

— Qual seria o assunto de um segundo encontro? — questionou ele, em parte para continuar a conversa, em parte porque ficara perdido nas regras dos encontros que ela mencionara.

Lucy soltou um som pelo nariz, balançando a cabeça, com os olhos nos pés descalços ao balançar-se devagar. — Por que quer saber?

Ben deu de ombros, também começando a movimentar o balanço de frente para trás em velocidade mínima. — Para que eu possa iniciar agora — revelou, com os olhos encantados por ela.

Lucy franziu o cenho, girando o rosto para olhá-lo, como se para se certificar de que ele não estava mesmo brincando.

— Um encontro, aqui? — questionou, cética, ao fazer um gesto vago com a mão. Ben assentiu, com um sorriso singelo. — No quintal pobre da minha casa, com a música de fundo sendo a discussão da minha família, e comigo usando roupa de dormir, chinelo de dedos, e acne à mostra?

Ben sorriu ainda mais para aquilo, relutando em soltar um riso.

Podia ver mesmo, devido à pele clara, que haviam manchas avermelhadas em alguns pontos específicos do rosto dela. Queria apontar que os pés já não estavam mais nos chinelos, e sim na grama, mas que ele achou aquilo adorável. Também quis mencionar que sua criança interior havia amado os balanços de pneu e, inclusive, sentia-se meio deprimido ao pensar que nunca teve nada assim.

Pensava, por fim, que era o encontro perfeito. O local era perfeito, ela era perfeita, e ele se sentia perfeito aos olhos dela, também.

— É contra as regras? — retrucou, por fim, bem-humorado.

— Não gosto de regras — retrucou ela, também, em um resmungo.

— Gosta de mim?

Não pensou muito antes de perguntar, mas não se importou, querendo ouvir a resposta. Ou talvez, o próximo resmungo que ela soltaria.

Lucy, no entanto, apenas o encarou com uma das sobrancelhas arqueada por algum tempo. Por fim, fechou os olhos rapidamente ao soltar um riso baixo, um tanto irônico. Ben sorriu, apesar de não saber o que se passava na cabeça dela, e a observou olhar para longe.

— Você é tão sutil quanto tanque de guerra, Benhur — declarou, balançando a cabeça como se dissesse: "você não tem jeito mesmo".

Ben achou que aquele era um bom sinal. Deu de ombros.

— Eu sei.

Lucy suspirou, tornando a olhá-lo com interesse, e um pouco de diversão. Observou-o ao estreitar os olhos, como se faz quando tenta ler um livro com letras minúsculas, ao passo que ele sentia o ímpeto de se encolher com tal.

— O que tem de tão assustador sobre estar comigo, afinal? — questionou ela, por fim, recordando-se do que ele disse minutos antes.

Ben arqueou as sobrancelhas, deixando a boca abrir involuntariamente. Piscou, os olhos desfocando ao pensar um pouco sobre aquilo para poder dar uma resposta sincera.

Não sabia a fonte do medo, no entanto, só conseguiu encontrar opções de motivos. Todos eles era válidos, porque pensava que estar com alguém que você se importa mais do que achou humanamente possível podia ser assustador de infinitas maneiras diferentes.

— Acho que a possibilidade de não estar mais com você — concluiu, por fim, o que mais parecia alarmá-lo.

Lucy fez uma careta, remexendo-se no assento, ao sentir-se atingida por aquilo. — A gente mal se conhece — resmungou, com desconfiança, olhando-o de canto de olho ao afastar um tanto o corpo de forma instintiva.

Ben deu de ombros.

— Eu sei.

Lucy estreitou os olhos azuis, ainda com o corpo afastado, grudado na corrente esquerda do balanço.

— Nós tivemos um encontro — apontou, novamente, como se para ver se entrava na cabeça dele o quão ridículo era aquilo.

— Eu sei — repetiu ele, achando graça.

— Não nos falamos há meses — insistiu ela, os olhos presos nos dele.

Ben assentiu, com um sorriso.

— Então do que isto tudo se trata? — prosseguiu, analisando-o com cautela à procura de uma resposta.

Ben franziu o cenho, confuso. — Não é óbvio?

— Não, não é.

— Estou apaixonado por você — declarou, de forma limpa, o que havia compreendido há muito tempo atrás e não tivera coragem de admitir.

Lucy, no fundo, estava esperando por aquilo. Ainda assim, alargou um tanto os olhos em surpresa, realmente pensando que aquelas não seriam as palavras escolhidas por ele.

Acreditava que ele diria qualquer coisa, menos aquilo.

Como era possível que ele se apaixonasse por ela em tão pouco tempo?

Mesmo sendo possível, Lucy não conseguia imaginar um cara admitindo isso desta forma, sem nenhum motivo intrínseco. Nunca na vida conheceu um macho que desse a cara a tapa desta forma, ou que declarasse seu amor por si próprio e não por ser o que imaginava que a garota queria ouvir. A não ser, é claro, que ele estivesse desesperado para ter alguém e enganasse a si mesmo dizendo que está apaixonado apenas para ter logo uma namorada.

Ben sabia que ela nunca pedira para ouvir aquilo. Mais ainda, que saber da forma como ele se sentia a respeito dela até memso estava deixando-a desconfortável. Também não era uma pessoa desesperada por status, apesar de saber que havia uma carência que o rodeava, parecia com a que ela própria sentia.

Então por que falar aquilo se realmente não fosse o que ele sente?

Lucy engoliu em seco, desviando o olhar. Esforçou-se para manter a voz, a expressão e postura neutras, para não demonstrar o quanto aquilo a havia afetado.

— Você sempre se apaixona tão fácil assim? — perguntou, depois de pigarrear, olhando para a sua casa.

Ben suspirou, os olhos escuros por sobre cada movimento dela, como se tudo que ela fizesse fosse precioso demais para que ele perdesse.

— Não sei — disse, soltando um riso um tanto acanhado. — Essa é a primeira vez.

Aquilo pareceu desarmá-la, por fim.

Lucy olhou-o com uma careta, apesar de que um sorriso insistisse em aparecer em seus lábios, o que o encantou. Encarou-o por um tempo, frisando os lábios para não sorrir tão largo, ao passo que pensava no que dizia.

Soltou, por fim: — Você é tão estranho!

Ben desviou o olhar, incômodo com o olhar divertido dela sobre si. Havia acostumado tanto com a atitude arisca que, quando esta desvaneceu um pouco, sentiu-se despreparado para as famigeradas borboletas na barriga.

Lucy, no entanto, pensou que havia ofendido. Ajeitou-se no balanço, cutucando-o no braço para ganhar sua atenção. Ben arqueou as sobrancelhas, surpreso pelo ato.

— Eu gosto — disse ela, de maneira tão amável que o recordou de outra vez que ela disse o mesmo.

"Tão sério", havia dito, "eu gosto".

Ben perdeu o sorriso, sentindo o corpo inteiro formigar, como se fosse uma maneira dele de querer agilizar as coisas para que se aproximasse dela. Engoliu em seco, perdido nos olhos azuis escuros, que não temerem encará-lo de volta.

Apesar da postura defensiva, os olhos ferozes, e o sorriso zombeteiro, Lucy transpassava uma ternura doce acerca dele.

Ben piscou algumas vezes, sentindo-se dormente, antes de forçar um sorriso.

— Do quê? — retrucou, de forma semelhante a qual a havia respondido sobre sua seriedade. — Da minha estranheza?

Ela dá de ombros, embora tenha sorrido por também se recordar do diálogo semelhante a este. Pensou um pouco, querendo ser tão honesta quanto ele era, e mordeu os lábios antes de olhá-lo com carinho.

— Todo você.

Ben sentiu que fosse parar de respirar, e chegou a levar uma das mãos ao peito para se certificar de que continuava vivo. O coração, quase que em uma taquicardia, confirmou sua vividez e a provável enfermidade que sofria.

No fundo, soube que não era doença alguma, e sim paixão. Estava desacostumado com a sensação de que iria morrer de amor, e preferiu achá-la bonita ao invés de simplesmente assustadora. Estava na hora de deixar um pouco dos medos de lado, ou ao menos, minimizá-los.

Lucy, acanhada com a forma intensa com o qual ele a encarava, desviou o olhar, uninado as sobrancelhas ao contorcer o rosto em uma careta. Olhou-o de canto de olho, antes de resmungar: — Não espere que eu retribua o sentimento.

Ben sorriu, percebendo o desconforto que ela obviamente sentia, antes de usar a força das pernas para aproximar seu balanço do dela. Inclinou o rosto para observar o avermelhado pela vergonha do dela.

— Eu jamais cometeria este erro — declarou, fazendo-a inspirar fundo para acalmar o coração.

Lucy observou o sorrisinho destemido dele, a forma atrevida como se aproximou, e a intensidade com a qual olhava no fundo de seus olhos. Odiava a sensação de ser a presa da situação, então franziu o cenho. Olhou-o de cima abaixo antes de fechar a mão em sua camisa, amassando-a ao puxá-lo para mais perto de si. Pegou-o desprevenido, percebeu, ao ver que engolia em seco, descendo os olhos escuros para a sua boca. Ela sorriu para isto, aproximando-se o suficiente para tocar o nariz no seu.

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— Ótimo.

Fechou a distância entre os dois, colando os lábios nos dele com brusquidão, sentindo uma das mãos do Ben fecharem no mesmo braço que o segurava. Sentiu-o sorrir contra seus lábios, e usou da brecha para mover seus lábios sobre os dele com devoção.

Em seguida, estavam abraçados desajeitadamente, ainda nos balanços, ao beijarem-se pelo que pareceram horas em uma disputa de quem era o primeiro a ceder.

Ben imaginou que, agora que a tinha, jamais cederia a sua felicidade.

*

Bruno e Jake caminhavam com calmaria na calçada estreita, apesar do céu já haver escurecido, devido ao movimento das ruas do centro. Não corriam risco de assalto por ali.

O assunto tinha durado até chegarem ao fast food, mas depois que começaram a se deslocar até a parada de ônibus com os sorvetes em mãos, um silêncio recaiu sobre os dois. Não era um silêncio incômodo, mas quanto mais ele se alongava, mais constrangedor tornava-se.

Bruno optou por quebrá-lo.

— Então — começou, tentando um assunto descontraído —, vocês realmente estavam achando que eu e o Alex somos amantes?

Jake sorriu, negando, ao passo que Bruno unia as sobrancelhas em curiosidade.

— Eu não — garantiu Jake, balançando a cabeça —, eu até disse para eles que não tinha nada a ver.

— É?

— Uhum.

Bruno o observou de canto de olho, percebendo que ele parecia certo do que dizia, sem muita preocupação. Lutava com sorvete, que começava a derreter, entretido no processo. Os cabelos castanhos pareciam escuros no bréu da noite, mas as luzes dos carros que passavam volta e meia faziam sua pele reluzir, de tão pálido. Usava uma calça de moletom solta e uma camiseta quase justa.

— Por quê? — questionou, atiçado pela certeza que ele parecia ter daquilo. — Porque eu não sou gay?

Jake hesitou, travando por um instante. Ignorou o sorvete, mas não olhou para o mexicano.

— Não — disse, finalmente, cauteloso. — Porque sei que vocês são amigos.

Bruno fez uma careta, sentindo-se alfinetado apesar de saber que não foi a intenção dele.

Sentindo-se pessoalmente atingido, coçou o pescoço, inquieto.

— É, mas... — Pigarreou, chutando uma pedrinha, subitamente constrangido. — Não é como se... Sei lá, como se amigos não pudessem ficar juntos.

Olhou para a rua, evitando encará-lo para não deixar transparecer o que, de fato, ele queria dizer com aquilo.

Jake franziu o cenho, erguendo os olhos para o Bruno com uma rapidez impressionante, o tico e o teco trabalhando naquilo com empenho. — Por que diz isso? — perguntou, sem pensar duas vezes. — Você gosta dele?

Bruno ainda demorou alguns segundos para absorver a pergunta, antes de girar o rosto para o Jake com os olhos arregalados. Compreendeu que suas palavras realmente podiam dar a entender o que Jake entendera.

— O quê? Não! — exclamou, a voz saindo estranhamente esganiçada. Forçou-a a voltar ao normal, ao repetir, mecanicamente: — Não, não, não... Não. — Bruno ainda finalizou, para reforçar: — Eu não gosto dele. Não.

Jake arqueou as sobrancelhas, apenas o observando balançar a cabeça negativamente como um robô.

Bruno engoliu em seco, pigarreando, antes de explicar:

— É só que pareceu que você quis dizer que amigos não podem nunca ficar juntos, e eu não penso assim. Quero dizer — emendou, com rapidez, ao lembrar da situação dele com Ben e querer bater com a cabeça na parede —, eu sei que você teve uma experiência ruim, mas... Ah, eu só discordo — concluiu, com uma careta e a voz uma oitava mais baixa, por haver pensado que havia metido os pés pelas mãos no seu argumento. Havia esquecido momentaneamente da situação dele com o Ben. Finalizou, olhando para longe: — Eu acho que amigos podem se apaixonar e podem ficar juntos, sim. É até bem comum as pessoas falarem que os melhores relacionamentos são os que começaram na amizade, então, sei lá.

Jake permaneceu com os olhos claros presos nele, sem nem piscar, embora Bruno tivesse o rosto aquecido virado para o outro lado da rua, constrangido.

— Hum — optou por responder, finalmente, ao perceber que ficara em silêncio por demasiado tempo.

Desistiu de tentar decifrar Bruno.

Sentia como se tudo que ele dissesse tivesse um segundo significado por detrás, mas não podia ter certeza. Mesmo que tivesse, não teria certeza do que era o segundo significado. E mais ainda, mesmo que fosse o que ele estava pensando que era, não saberia como se sentir a respeito.

— Quero dizer, tudo bem que você não pense como eu... — continuou Bruno, claramente incomodado com o silêncio, mas Jake o tirou do sofrimento.

— Não, eu... — começou, a voz fraca, antes de pigarrear. — Eu concordo com você.

Bruno girou o rosto até que os olhos encontrassem os de Jake, que abaixo das luzes fracas e amareladas dos postes, não deixavam transparecer o azul deles.

— É? — perguntou, em um fiapo de voz.

Jake assentiu, sem tirar os olhos dele.

— Sim. Você entendeu errado — explicou, manso. — Se eu defendi que você e Alex não são um casal, é porque conheço vocês e sei que são só amigos. Foi só isto — concluiu, ignorando o desconcerto com a forma como Bruno o encarava. — Ao menos, eu achei que assim fosse — apressou-se em dizer.

Bruno sorriu, aliviado, antes de assentir com rapidez.

— Ah, bom — murmurou, agradado. — Sim, você estava certo. Você está certo — reforçou, enfatizando. — Nós não temos nada.

Jake assentiu, por fim, desviando o olhar para a casquinha de sorvete em suas mãos. Bruno o observou fazê-lo e, em seguida, brincar com o sorvete derretido que restara usando a colher, parecendo haver-se esquecido que aquilo era para ser comido.

— Mas... — continuou Bruno, no automático, parecendo haver perdido a ligação entre a língua e a consciência. — Nós poderíamos. Não?

Jake levou alguns segundos para absorver a informação e, ainda assim, ponderou se havia entendido certo. Não atreveu-se a olhá-lo na cara, sentindo a própria esquentar-se como se tivesse um sol grudado nela.

Quem seria o “nós” ao qual Bruno se referia?

Estaria ainda falando do Alex?

O sistema nervoso de Jake entrou em pane, mas Bruno permaneceu quieto, como se soubesse do duplo sentido de sua pergunta e achasse justo que Jake levasse um tempo para responder. E, de fato, sabia. Estava se segurando para não contorcer-se no lugar com ansiedade, à espera de uma resposta.

Por fim, Jake olhou para o mexicano, confiando que o bréu da noite disfarçasse sua pele não mais alva, mas avermelhada. Incapaz de dizer qualquer coisa, apenas assentiu, quieto, com um sorriso envergonhado.

Sim, poderiam.

*

Um silêncio ensurdecedor recaiu sobre o carro de Matt, assim que as últimas duas caronas, Mia e Faye, chegaram ao seu destino. Despediram-se jogando beijo, e correram casa adentro, deixando apenas os dois no carro.

Emily, por haver sido sacaneada por Annelise, havia sentado ao lado do Matt, no banco da carona.

Matthew queria ter aquela conversa com a Emily desde a sua formatura do ensino médio, no final do ano anterior. Queria tanto, mas não sabia como começar. Abriu e fechou a boca várias vezes, mas optou por fazer um pedido antes de entrarem no assunto.

— Em — chamou, quando pararam em uma sinaleira —, por favor, não foge.

Emily girou o rosto para ele, percebendo os olhos verdes implorarem por aquilo, com certa agonia. Engoliu em seco, mais nervosa do que esteve o tempo inteiro desde a primeira vez que pôs os olhos nele, no shopping.

— Estamos dentro de um carro em movimento — optou por dizer, baixinho. — Como é que eu iria fugir?

Matt suspirou, tornando a olhar para frente ao dirigir, com um sorriso triste. — Nem que estivéssemos em uma nave espacial — disse, relanceando-a. — Você poderia, sempre, fugir da conversa.

Emily mordeu os lábios, balançando a cabeça, mas não pôde evitar sorrir. Aquilo era mesmo algo que ele diria, e sentia falta das coisas que ele dizia.

— Tem razão — concordou, sabendo que aquilo iria acontecer de uma forma ou de outra. Desistiu, por fim. — Não vou fugir.

Matt abriu um sorriso sincero.

Desde aquela confusão sobre Matt havê-la chamado de criança e Emily tê-lo escutado e ficado chateada, a relação deles nunca mais foi a mesma. Durante semanas tentou conversar com Emily a respeito, mandou mensagens pedindo desculpas - já que no colégio ela o evitava -, explicando-se, mas por fim, acabou deixando-a digerir tudo e manteu-se distante.

Matt só mencionou o ocorrido no fim do ano, na sua formatura, quando Emily o abraçou ao parabenizá-lo. Ela já havia respondido suas mensagens dizendo que estava tudo bem, semanas antes daquilo, e mais parecia estar constrangida do que brava quando se viam pessoalmente.

Parabéns — murmurara ela, contra seu pescoço. — Você vai conquistar muita coisa ainda, Matt. Estou orgulhosa de você!

Obrigado — murmurara, triste, não querendo que o abraço acabasse. Quando se afastaram, sentindo um nódulo na garganta pela estranheza da situação, começou: — Em, sobre o que eu falei de você...

Ela abanou, com rapidez, o assunto. — Deixa isto pra lá — pediu, interrompendo-o. Forçou um sorriso, parecendo envergonhada. — Tá tudo bem, Matt, não se preocupe. Não foi nada.

Mas eu...

Eu sei, eu entendo seus motivos — dissera, interrompendo mais uma vez, calma. — Tá tudo bem, de verdade.

Matt ainda tentou estender o assunto, mas era sua formatura e a de Ben, não tiveram muito tempo à sós antes que mais gente viesse abraçá-lo. Testou-a mais tarde ao enviar mensagens para ver se ela respondia, e até conseguiu, mas as conversas eram vagas, superficiais e, por vezes, monossilábicas.

Em algum momento, apenas desistiu.

Só conversavam indiretamente no grupo dos amigos, e se viram só duas vezes naquele ano, em duas saídas que, por acaso, os dois se encontravam juntos no grupo que havia resolvido sair. Esteve ocupado com seu emprego, com sua vida pós-escola, que o tempo voou.

Já estavam no final de maio.

— Sinto sua falta, Em — pronunciou, por fim, no carro. De relance, viu-a engolir em seco. — Sei que você deu a entender que estava tudo bem entre a gente, mas não tá. As coisas nunca mais foram as mesmas — desabafou, triste.

Emily fechou os olhos, suspirando.

— Eu sei — admitiu, desanimada. — Me desculpa, Matt. A culpa foi minha.

Ele negou, com rapidez, franzindo o cenho.

— Não, não diz isso. Foi minha culpa. Eu é que comecei tudo isso — enfatizou, referindo-se às palavras que começaram a confusão entre eles.

Emily sorriu, triste, por ele querer tomar a frente da situação quando, na verdade, tudo o que ocorreu foi em decorrer do que ela sentia por ele. Já sabia que ele sabia, porque da forma como agiu - e demorou a perceber que isto aconteceria -, havia ficado óbvio o que havia a magoado tanto naquela sentença dele.

Algo que jamais a chatearia se viesse de qualquer outra pessoa.

— Você sabe que não — diz ela, baixinho, envergonhada. — Fui eu. Muito antes daquela festa — enfatizou, olhando-o de canto de olho.

Matt se aquieta, no entanto, com os olhos na estrada, pensando no que dizer para não deixá-la desconfortável com aquilo.

— Bom, isso não importa — optou por descartar, enfim, e ela se sentiu agradecida. — Eu só quero consertar as coisas entre nós. Em, escuta — chamou, relanceando-a —, eu tenho vários amigos, inclusive fora do nosso círculo, sabe? Mas eu e você, sempre foi diferente. Você é minha melhor amiga — estabeleceu, vendo-a desviar o olhar na mesma hora. — É verdade. E eu sei que faz tempo que a gente não se fala, não mais como antes, mas isso não mudou para mim — insistiu, com carinho. — Porque eu não tenho esse vínculo com mais ninguém além de você. E eu odiaria perder isso — finalizou, tão baixo que ela se esforçou para ouvir.

Emily sentiu um nó na garganta, e um aperto no peito.

Sentia exatamente o mesmo, apesar de saber que parte disto se referia à paixão que também sentia em relação a ele e a ninguém mais. Mesmo depois de todo esse tempo, mesmo sem vê-lo direito, sem falar com ele, aquele sentimento não havia mudado.

Não era justo que, por causa deste sentimento e por causa dela não haver sabido lidar com ele, Matt perdesse a amizade dela.

— Sinto muito — sussurrou, sentindo-se culpada. — Eu não quis que isso se perdesse, eu só... — Suspirou, tapando o rosto com as duas mãos, querendo se esconder em um buraco profundo debaixo da terra. — Eu fiquei tão envergonhada que não sabia nem como olhar para você. E depois eu simplesmente não soube como lidar com isso — lamuriou, em um desabafo.

Matt engoliu em seco, desejando não estar dirigindo para poder abraçá-la, ao menos. Soltou uma das mãos do volante para levar ao ombro dela, apertando-o em conforto. Percebeu, com alívio, que ela não se afastou do toque.

— Você não precisa ter vergonha do que sente, Emily — começou, cauteloso. — Porque... Apesar de tudo, ainda sou eu. Sabe? — perguntou, com um sorriso carinhoso, apesar dela não poder vê-lo. — E eu sou seu amigo. Amigos não julgam, e não...

— Não é isto, Matt — interrompeu ela, balançando a cabeça, a voz abafada pelas mãos. — Não é vergonha do que eu sinto, é de como eu te tratei — confessou, chateada consigo mesma. Tirou as mãos do rosto, mas olhou para o outro lado, para a janela. — Eu fiquei com tanta raiva, e nem era tanto de você, era mais dessa imagem ingênua que todo mundo faz de mim, e acabei descontando em ti.

E agora sentia raiva dela própria por isto.

— Ah, você não deveria se preocupar com isto — disse ele, amigável, ao descartar como se não fosse nada. Acima de tudo, se preocupava com ela. — Tá tudo bem, não foi nada. Eu é que não devia ter falado de você daquela forma, você...

Emily engoliu em seco, querendo chorar, ao elevar a voz.

— Mas de que outra forma você ia falar, Matt? — choramingou, levando os cabelos escuros atrás das orelhas em um ato nervoso de fazer algo com as mãos. — Não existem maneiras tão diferentes de dizer que não retribui o sentimento por alguém. E, caramba — exclamou, chateada —, essa é a parte que mais me envergonho. Porque eu tive raiva disso também — confessou, culpada —, e te tratei mal por isso também, quando, na verdade, você não tem culpa alguma de não sentir o mesmo que eu. — Não teve coragem de olhá-lo, piscando algumas vezes para afastar as lágrimas. — Então, isso tudo aconteceu por minha causa. Me desculpa, Matt, de coração — pediu, engolindo em seco.

Matt piscou algumas vezes, incômodo, mas ficou em silêncio.

Acabou até por esquecer de falar que aceitava as desculpas, que estava tudo bem, que ela não tinha por que se envergonhar. Mas tudo se perdeu em uma das suas frases, que ficou rondando e rondando e rondando em sua cabeça.

Matt desligou o carro, no automático, assim que parou em frente à casa de sua garota preferida, e permaneceu em silêncio por um tempo. Na verdade, o que pensava mesmo era se contava ou não para ela o que estava preso em sua garganta.

Por um lado, poderia causar mais mal à ela. Por outro, pensou que não podia decidir o que causava mal à ela ou não, e inclusive, tampouco queria esconder nada dela. Afinal, tudo o que aconteceu foi um desenrolar do fato dela haver escondido, por muito tempo, o que sentia por ele. Até que tudo simplesmente explodiu na cara dos dois.

— Matt? — chamou ela, nervosa.

Já estava imaginando que ele havia percebido o quão péssima amiga ela fora e reconsiderando aceitar as desculpas, trocando elas por um "foda-se".

Matt piscou, inspirando fundo, antes de olhar para ela.

Emily tinha os olhos castanhos esbugalhados em sua direção, com medo do que ele diria a seguir, e Matt a achou adorável. Os cabelos lisos e longos encaixavam perfeitamente com a pele escura, e com o formato do seu rosto. A franja havia crescido bastante desde a última vez que a viu, e estava jogada para o lado. Emily se encaixava no esteriótipo de indígena, mas Matt amava isto nela.

Hesitou.

— Eu provavelmente não devia te dizer isso, porque não vai mudar meu posicionamento com relação a você, mas... — Soltou o ar que prendia, com os olhos nos dela. — Eu sinto, Em.

Primeiro, veio a confusão. Ela franziu o cenho, tentanto puxar na memória o que ela mesma havia dito que explicasse aquela sentença. Quando percebeu, os olhos alargaram ainda mais e a boca se abriu em surpresa, embora internamente se questionasse se era isto mesmo.

— Sente o quê? — verbalizou, em um murmúrio fraco.

Ele sorriu fraco, sincero. — Eu sinto o mesmo por você.

Emily piscou.

— O mesmo o quê? — insistiu, em um sussurro, como se para reafirmar a si mesma que ouvia mesmo o que achava que ouvia.

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— O mesmo sentimento.

Desta vez, foi Emily quem ficou em silêncio, o pane no sistema a impedindo de encontrar qualquer palavra que pudesse dizer. As batidas do próprio coração retumbavam em seu ouvido, como em um canto de alegria, obstruindo qualquer linha de pensamento que ela se empenhava em ter.

Ele disse mesmo aquilo?

Matt engoliu em seco, incerto se foi a decisão certa contar-lhe.

— Eu sei o que eu disse para a Annelise, mas na verdade, eu só percebi depois daquilo. Eu... — Suspirou, recordando-se do pavor ao enxergá-la beijando outra pessoa. Outra pessoa?, havia pensado, mais tarde, dando-se conta que se referia a outra pessoa além dele, porque era ele quem queria estar a beijando. — Você ficou com aquele cara e depois você se afastou, e depois as coisas mudaram entre nós, e... Eu não sei, no meio disso tudo, eu meio que me dei conta de como me sinto em relação a você.

Emily, que tinha a visão desfocada, focou-os em Matt mais uma vez. Franziu o cenho, receosa, ao analisar seu rosto à procura de algo. Um relance de mentira, ou um motivo além para dizer aquilo, mas nada encontrou.

— Você não está dizendo isso só para...

— Não — interrompeu ele, imaginando qual seria o fim daquela pergunta. — Eu falo sério. — Ela piscou, assentindo, mas a expressão dele mudou para uma mais cautelosa. — Mas eu também falo sério quando digo que não quero perder o que temos.

Emily, de repente, deu-se conta da outra parte de sua declaração. "Eu provavelmente não devia te dizer isso, porque não vai mudar meu posicionamento com relação a você", havia dito, resoluto.

Sentiu o coração ficar minúsculo, e até mesmo um pouquinho de raiva - a qual aquietou, por saber que a raiva havia levado a não se falarem este tempo todo -, porque finalmente ouvira o que não mais desejava ouvir, e parecia ser tudo em vão.

Quer dizer que ele sente o mesmo que eu mas não quer estar comigo?

Por fim, assentiu, quieta, digerindo suas palavras. Pensava entender o lance da amizade, porque ela própria já havia ponderado sobre isto, embora nunca tão à finco por pensar que nenhuma amizade seria arruinada porque Matt jamais sentiria o mesmo que ela.

Só que ele também havia comentado que a amizade estava se perdendo.

— Mas se você já sentia como se estivesse perdendo, então por quê...? — verbalizou, deixando o restante da pergunta no ar, confusa.

Matt engoliu em seco, desviando o olhar para o volante, sentindo falta do momento em que dirigia porque podia fingir prestar atenção no trânsito e não nela. Ficou em silêncio, desconfortável, pensando em como dizer aquilo sem ofendê-la novamente.

— É por causa da minha idade? — verbalizou, e o toque de mágoa não passou desapercebido a ele.

Matt tornou a encará-la, hesitante.

Emily havia completo os dezessete naquele ano, e Matt ainda completaria os vinte e dois. A diferença de quase cinco anos não era muita coisa, especialmente por serem novos, apesar de que Emily ainda era de menor.

— Também — admitiu, por fim. Não por causa da idade dela em si, mas do que isto representava sobre ela.

Emily não se incomodou em esconder a frustração, expressa em cada milímetro do seu rosto. Estava chateada por ele achar aquilo importante e decisivo sobre a possibilidade de estar juntos, mas mais ainda por ele haver praticamente dito que esta possibilidade existia minutos antes.

Estava dividida entre a criatura iludida dentro de si que ficava repetindo "ele sente o mesmo que eu" vezes seguidas, na tentativa de que lhe caísse a ficha, e a outra parte que queria lutar pela iludida que havia dentro de si, a que continuava aquela conversa.

Matt, no entanto, não havia se explicado por completo ainda.

— E porque somos amigos, e porque... Em — chamou, movendo-se para fazer carinho no rosto dela, ao perceber a ruga entre suas sobrancelhas. Ela piscou, suas vozes internas calando-se no instante do toque, e apenas ouvindo a voz dele. — Eu sinto que a gente tá em diferentes estágios da vida — confessou. — Eu sei que eu recém me formei, mas isso não muda muita coisa. Você vai se formar no fim do ano, e vai entrar em alguma universidade foda, ir atrás de um diploma e conquistar o mundo, e eu vou estar aqui — disse, fazendo um gesto vago com a outra mão, referindo-se ao mesmo lugar que esteve a vida toda. — Trabalhando em tempo integral, tentando me estabilizar, conseguir um cantinho próprio para mim, vivendo outra etapa da minha vida. E, não é que eu não precise de você nesta etapa — acrescentou, rápido, com os olhos piedosos —, é que eu preciso de você como minha amiga, e espero que você também precise de mim.

Sua voz falhou na última frase, como uma súplica indireta, fazendo os olhos de Emily encherem d'água uma vez mais.

Não soube o que pensar ou o que dizer, então Matt finalizou:

— Isso é o único que posso oferecer pra você agora. E o mais justo, para você e para mim. Eu sei que eu consigo fazer isto — disse, levando a mão ao peito, ao se referir à sua amizade com ela sem que o que sentisse o atrapalhasse. — Só preciso saber se você também.

Emily ainda demora um tempo, pensativa, enquanto ele faz carinho nos cabelos dela, não querendo que ela se afastasse de novo. Ela sentia-se triste, quase melancólica, como se aquilo fosse um fim trágico de uma história de amor.

Já não mais precisava fingir que não sentia nada, mas tinha que engolir esses sentimentos para manter uma amizade com ele. A mesma de antes.

— Em...

Matt se afastou, sentindo que a havia magoada, com os olhos nela.

— Por que você disse que é o único que pode me oferecer “agora”? — questionou, a cabeça girando em torno daquela parte, como se sua iludida interior se agarrasse naquilo como esperança. — Isso quer dizer que no futuro a gente pode ficar junto?

Matt sentiu o ímpeto de sorrir, mas apenas apoiou a cabeça no suporte do banco do carro, encarando-a com carinho desmedível. Pensou em uma resposta que não a prendesse a ele, embora seu eu egoísta quissesse isto.

Estava pensando nela, e não nele próprio.

— Isso quer dizer que as únicas certezas que tenho são as de agora — explicou, sincero. Deu um meio sorriso, sem poder evitar, porque a ideia também o agradava. — Quem sabe como as coisas vão se desenrolar no futuro?

Emily tentou conter as batidas do coração, com medo que ele ouvisse, e neutralizar sua expressão apaixonada o máximo que pôde, mas não tinha certeza se conseguira.

Ponderou por um instante, desorientada.

— Você quer que eu te espere?

No entanto, aquela pergunta apenas o fez franzir o cenho, em uma expressão instintiva. Negou, desencostando a cabeça do banco, ao tentar aproximar-se dela novamente, apesar do cinto de segurança.

— Não, Em. Quero que viva a sua vida — disse, devagar, ao enfatizar cada palavra para que ela se recordasse delas. — Quero que conheça mais pessoas, que colecione novas experiências, que se aventure da forma como eu sei que eu já me aventurei, que faça o que tem vontade. — Fez uma pausa, pegando as mãos dela nas suas. — Quero que não deixe nada nem ninguém te atrapalhar. E eu vou fazer o mesmo — reforçou, para que ela compreendesse.

Não é como se ele fosse muito conquistador, não sentia a necessidade de ficar com ninguém só porque muito tempo havia passado. Sinceramente, nem sabia se queria ou se empenharia-se em ficar com alguém, sentindo o que sentia por Emily.

Mas isto era bem diferente de estar em um relacionamento com ela, sem poder se dedicar totalmente, com choque de horários entre seu emprego e a vida de estudante dela, e sem poder atingir as expectativas de um primeiro namoro dela. E tudo isto, arriscando a amizade com ela. Um simples mal entendido levou-os a se afastarem por meio ano, um término de relacionamento, então, os afastaria para sempre.

— Eu acho que... — continuou, sob os olhos atentos dela. — Eu só não quero descartar totalmente a ideia de estar com você, porque ela é tão bonita — admitiu, inclinando o rosto para observá-la corar. Entretanto, continuou, mais sério: — Ao mesmo tempo, eu não quero que se prenda a mim desta forma. Eu odiaria fazer isso com você.

Emily engoliu em seco, apertando as mãos dele de volta.

— Mas e se for minha escolha? — questionou, sem desistir. — E se eu sempre escolher você, Matt?

Matt fechou os olhos. — Em...

Ela levou uma das mãos ao rosto dele, sentindo a barba pinicar de uma forma agradável, e fez carinho. Queria demonstrar a dimensão do que ele sentia, que era muito mais do que uma paixãozinha colegial, que ele significava muito mais do que seu primeiro amor.

Queria que ele fosse o último.

— Você escolheria a mim? — sussurrou, temerosa, ao se dar conta do outro lado da situação.

Matt sorriu, abrindo os olhos, ao levar as mãos para o rosto dela de forma semelhante.

— Você já é a minha escolha, Em — revelou, com um brilho bonito no olhar —, é por isto que esta ideia bonita tem que permanecer ainda sendo apenas uma ideia bonita. — Emily quase chorou de frustração, mas ele segurou seu rosto para que ela não desviasse o olhar. — É por isso que escolho o que já tínhamos antes, o que sempre tivemos, porque sinto que é o melhor para nós dois.

Emily negou, os olhos implorando, mas os de Matt também o faziam.

— Matt...

— Por favor — pediu ele, baixo. — Vamos tentar fazer do meu jeito.

Se encaram por um instante, tão próximos, tão juntos. Podiam sentir o cheiro um do outro, e a respiração um do outro, e o mesmo sentimento.

Emily fecha os olhos, por fim, assentindo mecanicamente.

— Tudo bem — sussurrou, sentindo-o levar os lábios para o seu rosto.

Matt queria tanto beijá-la, mas se assim o fizesse, a chance de continuarem a amizade como antes se esvairia. Beijou seu rosto, então, sentindo-a puxá-lo para um abraço desajeitado.

Quando se afastaram, Emily sorriu, inspirando fundo, e pronunciou as palavras que queria ouvir desde seu desentendimento do ano anterior. Simples palavras que queria tanto ouvir para que soubesse que as coisas realmente estavam bem entre eles, da forma como ela afirmou estarem.

— Amanhã eu te ligo para a gente combinar de sair, ok? — perguntou, antes de abrir a porta do carro. — Faz tempo que não fazemos nada.

Matt abriu um sorriso largo, nostálgico.

— Perfeito.