Loving a soldier

Capítulo 3 - Aquele do cotidiano


30 de Novembro de 2014

Os dedos médios e finos apertavam o casaco o máximo que conseguiam ao redor do corpo a fim de se proteger do frio de 50 F inesperado para uma Miami, mesmo durante o inverno, contudo a avantajada barriga de cinco meses de gravidez atrapalhava o ato. Sendo assim, não restaram opções para Allycia além de encolher-se e apertar o passo visando chegar à sua casa sem demora.

Porém, quando já dobrava a esquina, podendo enxergar a modesta construção de madeira cinza, por um instante sequer, preferiu voltar para a Starbuks que trabalhava e permanecer ali o resto dos dias pelo simples fato de não querer lidar com sua atual carga, a qual aumentava cada vez que subia um degrau da entrada da residência, exatamente como estava acontecendo no momento.

Com um semblante cansado, que até mesmo a constante esperança de mudança sentida sempre ao abrir a porta não conseguia transformar, entrou na casa, jogou a mochila no chão, tirou o agasalho, o pondo no mancebo, realizou manobras a fim de conseguir descalçar os pés do inseparável tênis azul com o empecilho de um proeminente ventre e se infiltrou na sala de estar onde encontrou Lester sentado no chão, encostado no sofá, rodeado de álbuns.

“Oi, pai” Ally disse em uma tentativa falha de contato, no entanto, isso não a desmotivou “Como foi seu dia?” Habitualmente, mais silêncio “Minha manhã foi bem cansativa, assumi o turno da Molly para conseguir mais dinheiro e servi tantos clientes. Acho que o inverno é perfeito para um café bem quente, não é? De qualquer forma, é melhor eu ir descansar um pouco no quarto. As costas, todos os músculos doem. Tchau, até daqui a pouco.”

As últimas palavras saíram tropeçadas na rapidez que pronunciou simultaneamente a sua corrida de velocidade amena por conta das dores e inchaços, principalmente nos tornozelos, resultantes da gravidez em direção à escada que levava para os aposentos. Já no andar de cima, aproximou-se da parede, escorando a testa nela e soltou um grande suspiro.

O fundamento de todo monólogo que teve com o pai estava justamente na descoberta de seu estado. Dias após a partida de Austin, enquanto surtava tentando entregar a bebida das pessoas no emprego, Lester, sozinho na casa, começou a ouvir os recados na secretária eletrônica e deparou-se com um da obstetra confirmando a consulta da semana seguinte. O homem ficou possesso, pois sua garotinha não poderia ter cometido tamanha besteira de engravidar tão jovem, estragando o futuro promissor o qual sentia pertencer a ela.

Motivado pela ira, esperou a filha chegar do trabalho, a confrontou para, enfim, jogar na sua cara tudo o que perderia. Ally lembrava-se até hoje das perguntas feitas: “Você vai desistir do Conservatório de Boston?”, “Vai criar essa criança sozinha?”, “O que vai ser de você?” e, infelizmente, quanto às duas primeiras questões a resposta era “Sim” – A segunda provavelmente temporária, entretanto ainda válida -, já para a última não tinha a mínima noção. A partir desse dia a relação entre ambos passou para praticamente inexistente, com exceção das tentativas em vão da menina de realizar contato.

Ademais, o ocorrido coincidiu com a partida dos amigos, Dez e Trish, o primeiro para estudar Cinema em Nova Iorque, ao passo que a segunda estabeleceu-se em Massachussets visando cursar Gestão Empresarial. Despedir-se dos dois só intensificou a constante sensação de solidão, afinal, todos os seus conhecidos não estavam próximos de si ou aceitando conviver consigo.

Recompondo-se, ela caminhou para o quarto, adentrou-o, trancou a porta, embora soubesse que ninguém entraria ali, e foi de encontro à cama localizada no centro do cômodo. Pegou os papéis espalhados pela mesma deixados durante a madrugada em mais um dos característicos ápices de inspiração, logo se aproximando do teclado no canto esquerdo a fim de criar melodias para aquelas composições aleatórias, as quais, mesmo não estando excelentes, têm um prazo de entrega até quarta-feira, data que a banda Humanoids, freguesa de suas letras, pediu.

Enquanto dedilhava as teclas e cantava os versos procurando por uma boa mescla dos sons, horas foram passando até o relógio digital posicionado no criado mudo marcar 15:46h, o que batia com o horário de Austin para conversar nos domingos permitido durante período de treinamento, o qual mostrou sua veracidade através da notificação de uma chamada de vídeo no notebook da garota.

Allycia no mesmo segundo parou de tocar, pois, acima da atenção direcionada para a composição, estava a ânsia por aquele barulho. Virou a cabeça em direção ao eletrônico só a fim de confirmar que era o namorado, abriu um enorme sorriso e, sentindo-se aliviada, massageou a barriga, seguidamente sussurrando para seu bebê, apesar de desconfiar se ele poderia ouvir:

“Papai quer conversar com a gente, meu amor.”

Velozmente, foi para perto do computador disposto em uma escrivaninha no lado oposto e aceitou o convite não conseguindo disfarçar a alegria por ver o rosto conhecido, marcado pelos brilhantes olhos castanhos, lábios razoavelmente finos curvados para cima conciliados com a visão dos cabelos raspados que Ally ainda não se acostumou. Simplesmente sentia falta dos fios loiros os quais adorava infiltrar os dedos no passado.

“Oi oi, amor” Cumprimentou, sem deixar de continuar a analisar a feição do outro e se embebedar na saudade sentida.

“Hey, baby” Fez um aceno com a mão esquerda “Desculpa ter perdido alguns minutos de conversa nossa, porque, caramba, acredite, sei como são sagrados, mas é que deixei Carter conversar mais um pouquinho com a esposa. Esses dias ela passou mal e ele estava doido de preocupação.”

“Tudo bem, é adorável da sua parte ter feito isso” A pele na região de seu nariz chegou a franzir por conta do riso de admiração “Nós ainda temos...” Olhou para o relógio do computador e calculou “Doze minutos.”

“Vamos ter que fazer render, então...” Começou a enumerar as próximas perguntas nos dedos “Como você tá’? O pequeno Tommy está dando algum trabalho? Seu dia foi bom? Conseguiu terminar as músicas? Comeu hoje? Aliás, me parece um pouco pálida. Allycia Dawson, se não estiver comendo direito...”

A garota revirou os olhos disfarçando as típicas borbulhas no estômago geradas quando Austin apresentava tanto cuidado direcionado para si. Moon não poderia saber o quanto adorava ser levemente mimada por ele.

“Vamos nos acalmar, por favor. Primeiro, estou bem, se você desconsiderar as dores e inchaços. Segundo, como pode afirmar que é um menino e ainda por cima decidir o nome sem qualquer discussão? Enfim, está tudo nos conformes” Instintivamente, acariciou a barriga e deixou a mão repousar por ali “Depois, meu dia foi incrivelmente monótono. O de sempre, sabe? Acordar cedo, servir alguns cafés, voltar para casa e tentar compor. Sobre se alimentar...”

“Ally...” Austin ergueu as sobrancelhas em sinal claro de reprovação.

“Me desculpa. Você sabe que não gosto de ficar perto do meu pai enquanto ele só fica lá, me observando com aqueles olhos decepcionados. Aliás, comi um croissant na Starbucks mais cedo.”

“Não pode continuar assim, baby. Vai fazer mal para você e nosso bebê. Eu andei lendo nas horas vagas que ele precisa de vários nutrientes durante a gestação, senão pode ter danos futuros.”

“Eu sei, acha que não? Minha médica vive reclamando disso para mim, tanto que estou com algumas vitaminas receitadas. Elas tomo corretamente, pois ficam no meu quarto.”

“Você tem que parar de fugir dos problemas” A viu abrir a boca a fim de contestar, entretanto logo continuou “Por exemplo, não me contou da gravidez até o último segundo, tudo bem, porque a gente superou isso, mas agora é mais perigoso, amor. Quer que eu peça para meus pais conversar com o teu e ver se entra alguma coisa naquela cabeça?” Ally negou e ele apertou fortemente os olhos, em seguida, vincos surgiram na sua testa “Droga, fico me sentindo impotente em não poder estar aí, te apoiando.”

Instantes de silêncio aconteceram, afinal, ambos sentiram a fala atingir na ferida permanentemente aberta. Ainda era difícil lidar com a questão distância e a saudade eterna corroendo de dentro para fora. Só conseguiam se afastar do buraco negro de sentimentos depressivos se mantendo focados nas demais atividades que tinham a encarar, contudo, quando recordados de suas situações, tornava-se insuportável.

“Ok... Nós temos alguns minutos, né?” Austin comentou, procurando superar o clima tenso instalado “Falando neles, meus pais estão te ajudando?”

Ally soltou um riso pelas narinas ao lembrar-se do quão surpreendente estava sendo a relação com os sogros. Logo após ter se resolvido com o namorado, já que este ficou nervoso por não ter sabido da gravidez antes, os dois contaram juntos a novidade em uma bagunçada chamada de vídeo com a Mimi e o Mike. Diferentemente de Lester, o casal ficou alegre de terem um herdeiro a caminho, apresentando semblantes emocionados e prometendo dar todo apoio para ela – Todavia os jovens não fugiram dos sermões sobre responsabilidade.

“Sexta-feira irão me arrastar ao shopping para, citando sua mãe, comprar o enxoval unissex mais lindo já visto. Eles estão sendo bons para mim. Inédito depois de tudo que te obrigaram a fazer só por não me aceitar, sabe?”

“Amor, não guarde rancor deles. Na verdade, Mimi sempre te achou uma menina simpática, apenas meu pai que não gostava, talvez nem mesmo agora goste e provavelmente continua um ódio recíproco” A namorada fez uma feição de tédio “Isso foi uma confirmação, obrigado.”

“Para sua informação, não joguei fora o plano de empurrá-lo na frente de algum carro, porém agora nos suportamos por causa do bebê. Ele parece realmente animado por isso” Ally checou a parte inferior do visor e constatou estar acabando o tempo “Acho que vamos ter de nos despedir.”

“Infelizmente, sim. O pior momento chegou” Lamentou-se, demonstrando a angústia interior “Eu te amo muito, lembre sempre.”

“Eu também te amo, Austin. Mesmo, mesmo” Começou a sentir um ardor no nariz e os olhos marejarem “Espero que você tenha uma ótima semana, amor.”

“Ah, falando nisso, essa é minha última semana no Treinamento Básico de Combate. Yeah!” Balança as mãos no ar em comemoração “Nós vamos ter aula sobre o uso da mina terrestre. Será incrível.”

“Certo, vou tentar não me preocupar com sua aula e parabéns. Parece que você não é mais um novato no exército.” Allycia sorriu com carinho enquanto fitava os olhos de Moon na tela “Você precisa ir.”

“Antes de desligar quero lhe desejar tudo de bom no decorrer da semana, que seu pai milagrosamente caia em si e perceba o quanto está magoando o ser mais precioso do mundo, bom, pelo menos do meu ele com certeza é” Riu bobamente, controlando a vontade de chorar “E, mais uma vez, porque não parece suficiente nunca: Eu amo você. Não, calma, vocês.”

“Seria esperar um milagre muito grande, Austin. E, incorporando uma personagem melosa dos filmes românticos, vou repetir que te amo muito, muito, muito quantas vezes necessárias, pois minha pessoa favorita no mundo precisa saber a verdade. O bebê sente o mesmo, aposto” A garota colocou a mão que não estava apoiada na barriga na tela do computador, esperando o outro fazer igual como sempre nas suas despedidas “Vou morrer de saudade, até mesmo do seu cabelo raspado” Ambos riram “Se cuida, por favor.”

“Você nunca vai superar o cabelo, Allycia. Sempre achei que tinha uma queda por caras de cabelo raspado, então tentei o corte. Fui trouxa.” Tentou agarrar a mão da namorada no instinto, todavia só arranhou o vidro “Sentirei sua falta e se cuida também. Coma direito, eu e Tommy iremos agradecer.”

“Prometo tentar. Beijos” Mandou um selinho para ele, recebeu um de volta e logo a chamada ficou uma tela preta.

A menina ficou certos segundos assistindo o próprio reflexo no visor enquanto ainda sentia seu âmago agitar-se na mescla de amor, felicidade, tristeza e saudade. Sempre seria assim quando desconectasse com o amado, afinal, só o “veria” no domingo. Mensagens no decorrer da semana eram raras, além de muitas vezes machucarem por impulsionar o desejo de estar ao lado do outro, passando as mãos pela epiderme pálida, sentir o cheiro característico, se aconchegar no pescoço alheio a fim de fugir do universo e ter a sensação de que finalmente os planetas se alinharam, nada mais estando errado.

“Somos eu e você de novo” Murmurou para seu filho, mantendo o olhar distante, contudo, ao continuar a falar, observou o ventre “Desculpa não estar me alimentando direito, bebê. Isso afeta te de alguma forma” Riu de maneira melancólica “Cômico, mal nasceu e já sou uma péssima mãe. Porém vou mudar, serei forte em seu prol, tudo bem?”

Com esforço, abandonou a letargia e guardou suas emoções numa caixinha na mente para mais a noite quando as ações não estivessem afetando outrem. Determinada a enfrentar o que fosse para atentar-se melhor a gravidez, saiu do quarto rumando para a cozinha. Comeria alguma bobagem, a qual o estômago praticamente implorava.

Buscou realizar o menor barulho possível durante a passagem pela sala, no entanto, notou ter sido insuficiente quando inesperadamente ouviu a voz de Lester depois de tanto tempo:

“Sabe, passei o dia inteiro aqui, vendo esses álbuns, folheando, recordando, cheguei até a esquecer de almoçar, o que, te vendo agora, me deu uma grande ideia” O homem depositou o exemplar contendo fotografias de Ally quando criança no chão, levantou-se, rapidamente virando-se em direção à filha “Você não gostaria que eu fizesse uma macarronada para a gente e, quem sabe, durante o preparo escutar o pedido de desculpas de um velho estúpido?”