Capítulo 19

(Seis meses depois)

O ruído desajeitado do pequeno coração batendo preencheu a sala e logo alcançou os ouvidos de Rin. Pra ela, não era o som de uma máquina, mas sim a mais bela sinfonia. Era incrível como a vida podia se manifestar das formas mais estranhas e simples do mundo – uma delas certamente era o eco robótico de um aparelho de ultrassom reproduzindo o batimento vigoroso do coração do bebê que Rin carregava. Sesshoumaru buscou sua mão e prendeu os dedos em volta da palma dela com firmeza, abrindo uma linha de sorriso. Quase não foi possível captar aquele genuíno sinal de felicidade, porque as lágrimas nos olhos castanhos deixavam a visão dela turva.

— Está tudo ótimo por aqui. – A doutora Sue ergueu o queixo, olhando o monitor do ultrassom pela lente dos óculos. – Tudo perfeitamente formado, peso ótimo, tamanho ótimo, ossos dentro do padrão. – Conforme ela ia selecionando pedaços da imagem, a tela ficava repleta de informações.

Sesshoumaru olhava atentamente o monitor, enxergando naquelas formas o pequeno ser que em pouco menos de dois meses estaria em seus braços.

— Parece que o danadinho vai finalmente nos deixar saber o sexo. – A mulher de meia idade sorriu, deslizando o aparelho viscoso pela pele da barriga de Rin. – Vocês querem saber?

— Sim. – Ela confirmou de imediato.

— Bem... não é o danadinho. É a danadinha. – Sue riu, pausando a imagem na tela. – Parabéns, é uma garotinha.

Rin sentiu como se seus músculos da boca tivessem se entrelaçado, deixando a garganta amarrada. Era óbvio que ela continuava feliz com o bebê, mas não podia acreditar que seu instinto estava errado. Nos últimos meses, ela imaginou-se tendo um menino. Sonhou com a correria do garotinho pela sala, com as brincadeiras no gramado da casa, e até imaginou como seria descobrir o incrível mundo de carrinhos e soldadinhos. Estava tão convicta com a ideia de que teria um menino, que sequer preparou-se para a hipótese contrária. Aquele sentimento era estranho porque, pensando de forma racional, seria muito mais seguro ter outra menina. Ter criado Melissa a preparou para criar outra garotinha para o mundo – era uma tarefa em que já tinha experiência. Então por que estava se sentindo traída pelo próprio instinto?

Não ter uma resposta para aquela pergunta fez com que a culpa também preenchesse seu peito.

— Está tudo bem? - Sue quis saber, alarmada pela expressão aflita de Rin.

— Está, é bobagem minha. – Ela mexeu o rosto negativamente, tentando forçar um sorriso. – Eu só... Eu tinha certeza que era um menino.

Sesshoumaru passou o polegar pelas costas da mão de Rin, sabendo o quanto ela havia alimentado aquele sentimento intuitivo nos últimos tempos.

— Oh... – A médica ergueu as sobrancelhas, surpresa. – Bem, mães sabem o que sentem. Quem sabe na próxima gravidez, não é? Por enquanto, Melissa vai ganhar uma amiga, e eu tenho certeza que elas vão brincar muito juntas.

Rin acenou, sabendo que o certo era concordar com aquilo, mas sem ser capaz de se desvencilhar da culpa. Na verdade, a frustração e a culpa se alimentavam, como em um ciclo vicioso. Quanto mais tentava sufocar o pesar sem razão, mais culpada se sentia. Estava sentindo-se uma péssima mãe por ter recebido mal a notícia sobre o sexo do bebê. Quer dizer: que tipo de mãe se frustra por isso? Não é como se ela tivesse desejado um menino, porque do fundo do coração, ela não tinha.

Aqueles sentimentos a acompanharam durante o dia todo. Embora estivesse na cama, pronta para dormir, o sono não vinha. Rin encarava o teto na completa penumbra do quarto. Em certo ponto, ela não conseguiu mais segurar e as lágrimas quentes escorreram pelo rosto.

Sesshoumaru abriu a porta do quarto, fazendo com que Rin se virasse para o sentido oposto, fechando os olhos. Chorar só potencializava o seu sentimento de culpa e a fazia se sentir uma mãe pior. Ela não era como aqueles pais que torciam para que a criança tivesse um sexo ou outro, porque não esperava nada, afinal de contas. Aquele bebê havia vindo de forma inesperada, e Rin o havia abraçado e amado exatamente daquela forma. Não entendia, então, por que aquilo era uma questão. Não era como se tivesse desgostado do fato de esperar uma menina – nem fazia sentido que fosse assim.

Sesshoumaru sabia que a esposa estava acordada e, embora ela estivesse em completo silêncio, sabia também que Rin chorava. Ele deitou-se e a envolveu, cruzando os dois braços frente ao peito dela. Dentro do abraço dele Rin sentiu-se livre para chorar, ainda que aquilo só aumentasse sua culpa.

Ele tentou evitar aquelas memórias, mas Sesshoumaru lembrava-se de quando Rebeca sofria por não conseguir engravidar. Não sabia exatamente o motivo para a memória vir à sua mente naquela situação – talvez fosse porque nos dois casos havia uma mulher de coração partido por ter as expectativas frustradas. Claro que a motivação de Rin era diferente. Rebeca sofria por não poder gerar uma criança e por não se conformar com as outras possibilidades. Já Rin estava sentindo-se culpada por ter ansiado tanto algo que não fazia diferença, no final das contas.

— Eu estou feliz por ser uma menina. – Ela murmurou. – Mas... eu me sinto traída pela minha própria intuição.

— Você não deve se sentir culpada. – Ele beijou o ombro dela, encaixando o rosto na curva do pescoço de Rin. – Sua intuição pode não estar errada. Ela só pode ter errado o timing.

— Outra gravidez? - Rin encolheu-se nos braços dele.

— Se assim você quiser... – Sesshoumaru acariciou a barriga dela, eliminando qualquer centímetro de distância entre os dois corpos. – Estaremos encrencados se os três decidirem ir para Yale ou para Harvard, mas tenho certeza que vamos dar um jeito.

Rin abriu uma linha de sorriso, percebendo que ele tentava animá-la. Não queria pensar em um terceiro filho, ainda mais antes sequer de ter o segundo. Mas ver Sesshoumaru disposto a embarcar nos sonhos dela fez com que o coração de Rin se enchesse de alegria.

Ela jamais poderia imaginar aquilo, ainda mais nos anos em que ele se manteve distante de Melissa, mas Sesshoumaru parecia ter uma missão especial com a paternidade. Não era a primeira vez que aquele pensamento a ocorria, e nem era a primeira vez que ela era levada para uma incômoda dúvida sequente. Resolveu finalmente dar voz a aquele pensamento.

— Sua... – Rin respirou fundo, como se estivesse tentando reunir coragem. – Sua ex-mulher não queria ter filhos?

A verdade era que ele havia passado cinco anos casado com aquela mulher, além dos anos anteriores de relacionamento. Era tempo suficiente para ao menos tomar alguma decisão sobre ter filhos ou não, Rin imaginava.

Sesshoumaru sentiu a garganta secar. Não esperava ser confrontado com aquele assunto incômodo, porque o havia enterrado em definitivo quando desistiu do plano de levar Melissa para Nova York. Mas aparentemente algumas coisas tinham ficado em covas rasas demais para nunca serem descobertas.

— Sim. – Ele decidiu que a melhor forma de enterrar aquilo de vez era contando a verdade. Não toda a verdade, mas sim a verdade possível. – Mas ela não podia ter filhos.

Rin virou-se para olhá-lo. Embora guardasse um enorme ressentimento por aquela mulher, ela sentiu compaixão. A pequena dose de frustração de expectativas experimentada por ela naquele dia fez Rin imaginar quão duro era desejar ser mãe e não poder.

Seu lado racional resgatava a angústia de cogitar Sesshoumaru tendo qualquer outra família que não a sua, mas ela não conseguia se sentir aliviada por a ex-mulher dele não ter sido capaz de ter filhos. Rin não era capaz de alegrar-se por um caminho que a fez feliz às custas do sofrimento de outra pessoa.

No fim, tinha somente que pensar que tudo havia acontecido por um motivo que estava além de sua compreensão. Ela concluiu que se sua intuição a tinha convencido que esperava um menino, ainda que nunca tivesse desejado aquilo intencionalmente, era por alguma razão. Deus trabalha de forma misteriosa, já bem dizia seu pai. Tentar entender os planos divinos era um caminho certo para a frustração, então ela resolveu fazer um bom esforço para deixar aquilo de lado.

— Eu te amo. – Ela declarou-se, com o olhar fixo nos olhos dourados.

A forma com que ele a beijou em seguida dispensou a necessidade de resposta. Era claro que ele a amava, e a amava de uma forma que ele imaginou jamais ser possível.

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O vento fazia com que as folhas das árvores fossem jogadas com força contra a janela, como se fossem pequenas pedras se chocando contra o vidro. O som repetido fez Rin acordar em um sobressalto, com o coração na ponta da garganta. Ela ergueu o tronco, colocando-se sobre os cotovelos. Por um instante sentiu-se sozinha, como nas noites em que acordava assustada durante as tempestades na fazenda. Naquela noite ela estava na fazenda e parecia haver uma tempestade a caminho, mas não estava mais sozinha. Olhou para o lado e encontrou Sesshoumaru dormindo pacificamente.

Alertada pelo som da respiração acelerada de Rin, Maia ergueu as orelhas. A filhote de pastor australiano havia crescido e, embora ainda não fosse um cão adulto, havia aprendido rápido a ser um cão de guarda. Além disso, por acompanhar Rin diariamente na fazenda, Maia estava sempre atenta ao que a dona estava fazendo ou sentindo.

Rin levantou-se da cama e afagou entre as orelhas da pastora, fazendo com que Maia voltasse à posição relaxada. A morena caminhou até a janela do quarto, notando que a ventania havia se intensificado, arrancando parte das folhas e dos galhos das árvores de frente para a casa. A linha do horizonte estava imersa em completa penumbra, mas Rin já começava a imaginar o estrago que estava sendo feito na plantação. Naquela noite, ela havia decidido dormir na fazenda, embora não soubesse que uma tempestade estava por vir quando tomou aquela decisão.

Seu coração estava estranhamente aflito - o que ela atribuiu, a princípio, pelo medo que tinha de passar por tempestades na antiga casa. Mas aquele era um sentimento que havia de fato desaparecido desde que Sesshoumaru havia voltado. Talvez fosse porque o verão estava próximo, o que significava que estava chegando a época do clima úmido e repleto de tempestades de fim de tarde.

O som do celular vibrando sobre a cômoda alertou Rin. Ela virou para encarar a tela do smartphone, percebendo, primeiro, que os músculos de sua nuca estavam rígidos como pedra, e, segundo, que eram 5h13 da manhã. Outra mensagem piscou na tela, fazendo com que ela pegasse o celular entre os dedos.

Eram duas mensagens do serviço municipal de alerta avisando sobre uma frente fria que traria uma forte tempestade na tarde daquele dia. O coração de Rin pulou uma batida. Se uma forte chuva caísse, era possível que o trigo estragasse antes da colheita, e isso não podia acontecer.

Aquele era um dos anos difíceis, como poucos que ela havia visto em toda a vida. Os preços da saca do trigo haviam despencado, em razão da boa oferta na região. Para tentar preservar um pouco da margem do plantio, Rin havia decidido postergar a colheita, procurando o momento em que fosse possível coletar o máximo possível. Ela temia que aquela tivesse sido uma decisão capaz de colocá-la em apuros.

Com os preços do trigo em baixa, perder parte da plantação significaria ir à falência. Rin sabia que não tinha tempo de pensar naquilo, mas já imaginava-se sendo obrigada a se desfazer de alguma dos bens para pagar as dívidas com os fornecedores da última safra. Um bolo se formou em sua garganta ao mesmo tempo em que ela sentiu um chute na parte baixa da barriga, como se sua filha estivesse reclamando pela aflição que ambas sentiam.

Ela balançou o rosto, tentando afastar os sentimentos ruins, mas tudo que conseguiu foi que sua cabeça e sua nuca martelassem. Rin abriu o aplicativo de mensagens e escreveu brevemente para Kohako, perguntando se ele estava acordado. Não demorou meio instante para que a tela exibisse a informação de que ele estava digitando de volta.

Desde o casamento, a relação com Kohako havia melhorado consideravelmente. Não que ele tivesse voltado a ser o seu amigo de infância, mas ao menos ele parecia não querer repeli-la a todo momento. Essa mudança foi essencial para que Kohako voltasse a trabalhar na fazenda e para que ele começasse a tentar recompor a própria vida.

Ainda dá tempo de tentarmos colher algo. Chego aí em meia hora.

Rin sentiu-se aliviada ao ler aquilo. Era um plano maluco tentar colher em metade de um dia o que levaria semanas para ser tirado do campo, mas ela precisava tentar salvar alguma coisa. Já havia visto diversas vezes fazendeiros que perderam uma safra e acabaram tendo que se desfazer de suas terras. Aquela lembrança fazia com que Rin se sentisse incompetente, como se estivesse destruindo tudo que seu pai havia construído duramente por décadas.

Talvez levasse mais meia hora para que o sol nascesse, então ela precisava aprontar-se. Deixou o celular de lado e andou pela penumbra do quarto. Guiada apenas por um feixe de luz que vinha do jardim, ela apanhou uma roupa no armário e vestiu-se. Assim que o tecido da camiseta cobriu a barriga redonda, sua filha chutou outra vez, o que fez com que Rin sorrisse. A menina parecia tê-la perdoado por toda a culpa e frustração da noite anterior.

Ela olhou Sesshoumaru por cima dos ombros, percebendo que ele ainda dormia. Sentia que talvez devesse acordá-lo para contar sua ideia maluca ou para compartilhar seu medo de perder todo o plantio para a chuva. Mas a verdade era que ela sabia que ele não a apoiaria como ela desejava. Lembrava-se da conversa que tiveram meses antes sobre a reta final da gravidez e o trabalho na fazenda. Detestava admitir, mas talvez aquele dia provasse que seu marido estava certo. Seja como for, não era mais tempo de voltar atrás. Rin precisava agir logo.

Resolveu deixar um bilhete para ele, dizendo apenas que precisava organizar o começo do plantio e pedindo que Sesshoumaru deixasse Melissa na escola. Saiu pela porta do quarto e desceu as escadas silenciosamente, sendo seguida por Maia. Preparou um café da manhã simples, mas que ainda era suficiente para mantê-la firme pelas próximas horas. Tomou seus remédios habituais da gravidez, esperando que aquilo ajudasse a aliviar a dor de cabeça que sentia.

Assim que Rin colocou a mão na maçaneta, Maia latiu uma única vez, como se estivesse reclamando por ser deixada para trás.

— Sinto muito, menina. Você vai ter que ficar. – Ela afagou as orelhas da pastora, fazendo com que Maia tombasse a cabeça de forma confusa.

Rin saiu pela porta, vendo a caminhonete de Kohako na entrada da fazenda. Ele encostou em frente à varanda, destravando as portas para que ela entrasse. Assim que os dois partiram, Sesshoumaru abriu a porta da frente, encarando as lanternas da picape se afastando no horizonte escuro.

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Não era difícil notar que Sesshoumaru estava com um humor sombrio naquela manhã. Ele fazia o melhor para não transparecer para Melissa, mas a menina sabia que o pai estava aturdido - embora não entendesse o motivo. Eles percorreram os últimos metros até a porta da escola e Sesshoumaru despediu-se, entregando a filha para uma das inspetoras que ficava na entrada.

Tinha uma série de reuniões com clientes naquele dia, mas sua mente não conseguia focar em nada relacionado ao trabalho. Tudo que pensava era em Rin. Sabia que ela havia deixado o bilhete propositalmente, para que não precisasse debater sobre a decisão de voltar ao trabalho pesado da fazenda. Imaginava que aquilo tudo tivesse a ver com um aviso de tempestade distribuído para os moradores região, e que ela estava preocupada com os efeitos daquilo para a plantação. No entanto, expor-se ao trabalho intenso da colheita, à tempestade que estava por vir e a todos os outros riscos beirava a irresponsabilidade.

Ele não entendia. Não era como se Rin fosse inconsequente, mas as responsabilidades da fazenda pesavam como uma pedra em seus ombros. Ela sentia-se constantemente pressionada a preservar e prosperar o que o pai a havia deixado, ainda que aquilo envolvesse colocar-se em risco, como agora.

Sesshoumaru queria ir até lá e dizer para ela deixar aquela ideia idiota de lado, mas a verdade era que ele precisava dar um voto de confiança para Rin. Precisava acreditar que se ela estava fazendo aquilo, era porque havia alguma chance de dar certo.

Embalado pelos pensamentos confusos, ele só percebeu que chegou ao seu destino – o escritório em Salina – quando sua mente se desligou da tarefa de dirigir no modo automático. Sesshoumaru apanhou o paletó no banco do passageiro e desceu do carro, percebendo que a ventania de mais cedo parecia não cessar. O céu parecia cada vez mais carregado, embora não estivesse chovendo.

Ele e Miroku seguiram para a primeira reunião em uma propriedade de soja perto da cidade. Assim que chegaram, perceberam que havia um fluxo intenso de colheitadeiras e máquinas sendo recolhidas para um enorme armazém na entrada da propriedade.

A reunião aconteceu na imponente sede da fazenda e durou quase o resto da manhã, o que deixava Sesshoumaru cada vez mais inquieto. Ele tentava prestar atenção nas observações do homem de meia idade sobre a próxima safra e o período correto para mandar os grãos por trem para o porto mais próximo, mas sua mente continuava fixa em Rin.

— Bem, acho que isso é tudo. – Miroku pareceu finalmente capaz de colocar um ponto final nas intermináveis recomendações do homem.

Eles levantaram-se e ao abrir a porta, voltando para a sala, perceberam que a enorme janela do cômodo não era suficiente para trazer luz para o ambiente, embora faltassem poucos minutos para o meio-dia. O homem aproximou-se do vidro transparente, encarando as nuvens pesadas que tinham transformado o dia em noite.

— Parece que esse vai ser dos grandes... – Ele comentou.

— O quê? - Sesshoumaru quis saber.

— Meu avô dizia que quando o céu fica pesado assim e a chuva não cai significa que tem um dos monstros a caminho. Ele nunca errou. – O homem comentou de forma despretensiosa, como se estivesse noticiando o fato mais comum do mundo. – Ei, Steve, peça para os rapazes cobrirem as janelas e portas do armazém. – Ele pediu a um dos rapazes que estava à entrada do cômodo.

Sesshoumaru olhou para Miroku e a expressão no rosto do rapaz o alarmou. Do que, afinal, aquele homem falava? Ele preferiu esperar que saíssem da casa para perguntar por que Miroku parecia pálido, mas não houve tempo. Assim que eles colocaram o pé na enorme varanda repleta de pilastras, os celulares de Sesshoumaru e Miroku vibraram ao mesmo tempo. Ele mergulhou a mão no paletó, percebendo que se tratava de outra mensagem do serviço municipal de alerta. Dessa vez, a palavra tornado aparecia destacada na tela.

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O vento varria o cascalho da estrada de terra, espalhando poeira pela linha do horizonte. Sesshoumaru tinha acabado de falar com a escola de Melissa, que havia avisado que em breve liberariam os alunos para que fossem buscados. Antes de desligar, a jovem da secretaria comentou que ligou para ele depois de tentar insistentemente falar com Rin, mas que não havia conseguido contato pelo celular dela. Aquela informação o havia alarmado a ponto de ele decidir ir até a fazenda antes de passar para pegar Melissa.

Precisava saber o que estava acontecendo. Havia tentado ligar para o celular da esposa, mas a ligação caía direto na caixa postal. Os ventos intensos estavam provavelmente derrubando as torres de celulares, pois seu sinal parecia cada vez mais instável. A falta de contato de Rin o fazia acreditar que ela sequer havia recebido o alerta de risco de tornado nas próximas horas. Era isso ou algo ruim havia acontecido.

Assim que ele chegou na fazenda, viu um intenso movimento de máquinas, mas ao contrário do que presenciou mais cedo na outra propriedade, as colheitadeiras não estavam sendo recolhidas, e sim trabalhavam a todo vapor na plantação. Ele estacionou o carro mais próximo possível, vendo Rin descer de uma das máquinas assim que avistou o sedan prata.

Ela tinha a testa molhada pelo suor e a roupa respingada da terra levantada pelas máquinas e pela ventania.

— Por que você está aqui? - Ele quis saber, não conseguindo esconder o tom de irritação da voz.

— Estamos tentando colher o que for possível antes da chuva. – Rin passou o antebraço pelo rosto, afastando alguns fios de cabelo da área ao redor dos olhos.

— Não é chuva. – Sesshoumaru a interrompeu imediatamente. – Tem um tornado a caminho.

A expressão de choque no rosto dela durou alguns instantes, e logo depois foi substituída por um completo desamparo. Rin olhou para o céu, para as máquinas e para a dúzia de homens que trabalhava no campo. As memórias dos dois terríveis tornados que havia enfrentado em sua vida voltaram à sua mente. Por ter passado por isso, sabia que a essa altura, era tarde demais para tentar qualquer coisa. Naquele instante Rin percebeu que seu esforço havia sido em vão e que não havia mais nada a ser feito. Era hora de desistir e de mandar que todos se protegessem.

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Os primeiros pingos de chuva já caíam, mas o céu escurecido comprovava que o pior ainda estava por vir. Sesshoumaru encostou o carro em frente à escola, percebendo que o vai-e-vem tradicional de pais e alunos não estava presente mais. Ele olhou as horas no painel da caminhonete, percebendo que estavam alguns bons minutos atrasados para o horário estipulado para buscar a filha. Desceram rapidamente do carro, tocando a campainha ao lado da porta dupla de entrada. Levou alguns minutos para que a inspetora aparecesse.

— Desculpe pelo atraso. – Rin desculpou-se prontamente, não escondendo o tom ansioso da voz. – Onde está Lissy?

O olhar confuso da inspetora foi o prenúncio de que algo não estava bem. – Bem, a tia de Lissy já passou para pegá-la. Tentei avisar vocês, mas os celulares não estão funcionando.

— Sango esteve aqui? - Rin torceu as sobrancelhas. A aflição crescia no rosto dela aos poucos.

— Não, a tia dela. – A mulher de meia idade repetiu. – A irmã de Sesshoumaru.

Rin olhou para trás imediatamente, vendo a confusão surgir no rosto dele. – Mas... Sesshoumaru não tem uma irmã. Talvez seja de Kagome que ela esteja falando... - A mente dela trabalhava em um ritmo acelerado, tentando compreender aquela situação, mas a dor que surgia em seu peito indicava que havia algo muito errado.

— O que está acontecendo? - Sesshoumaru exigiu, olhando a mulher, que a essa altura já parecia apavorada. – Eu não tenho nenhuma irmã. E a mulher de meu irmão está a milhares de quilômetros daqui.

— Não, eu... – A mulher gaguejou, tateando os bolsos como se estivesse procurando algo. – Uma mulher veio... ela era alta, loira... – As mãos trêmulas indicavam que ela também já tinha notado que algo errado havia acontecido. – Ela apresentou-se como sua irmã e tinha seu sobrenome...

— Vocês entregaram Melissa a uma desconhecida? - A voz fria dele era capaz de cortar o ambiente em dois.

Rin deu um passo para trás, sentindo as pernas perdendo a força. Aquilo não podia estar acontecendo.

— Lissy disse que a conhecia, que já a havia visto antes. Além disso, ela... a mulher tinha um documento. – Ao mergulhar a mão no bolso do avental do uniforme usado pelos funcionários da escola, a mulher finalmente pareceu ter encontrado o que queria. Ela desdobrou o papel e entregou-o nas mãos de Sesshoumaru. – Ela tinha essa procuração, assinada pelo senhor. Nós conferimos a assinatura.

Ao ver as letras impressas naquele papel, Sesshoumaru sentiu como se tivesse sido atingido por um raio. Ele lembrava-se muito bem que documento era aquele – embora aquele pedaço de papel fizesse parte de um passado que ele tentou a todo custo apagar e que, agora, havia voltado para assombrá-lo.

Sesshoumaru prometeu a si mesmo que todas as vezes em que aquele lugar o sufocasse, ligaria para Rebeca para que ela o lembrasse o motivo de estar ali. Lembrar-se-ia da procuração que deixou com a esposa, permitindo que ela entrasse, eventualmente, com um processo de requerimento da guarda da menina, ou ainda que tivesse os mesmos direitos que ele sobre ela.

Tomou a folha em mãos, confirmando aquilo que temia: aquela era a procuração que ele havia, de fato, assinado um ano antes, quando saiu de Nova York com a missão de retornar com Melissa. O documento nomeava Rebeca Taisho como detentora da guarda da menina caso Sesshoumaru se ausentasse. Aquela procuração havia perdido a validade no momento em que eles se divorciavam, mas o papel em suas mãos era prova de que nada era tão simples quanto ele desejava.

Lembrou-se também do dia em que, sob uma árvore no parque, Melissa havia visto uma foto dele com Rebeca.

Em uma das fotos de uma viagem pela Itália, a terra do astrônomo Galileu Galilei, ele apareceu abraçado a Rebeca. Tentou mudar a foto da tela do celular, mas, obviamente, os olhos de Lissy foram mais rápidos.

— Quem é essa? - A menina perguntou, levando o dedo à tela do smartphone para arrastá-lo de volta à imagem.

— É uma amiga... – Sesshoumaru respondeu com a primeira coisa que veio à mente, sem pensar bem nas consequências.

— Ela é bonita. – Lissy sorriu.

Tudo aquilo também havia acontecido antes de ele decidir se divorciar para ficar com sua família, mas estranhamente a filha parecia ter guardado a fisionomia da ex-mulher de Sesshoumaru em sua mente. Embora aquela história tivesse muitas pontas soltas, os fatos se encaixavam o suficiente para aparentar algo normal.

Rin virou-se, encontrando uma expressão sombria no rosto de Sesshoumaru. Era um misto de raiva, decepção e ressentimento, embora ela não entendesse bem o porquê. Já que não eram capazes ler o marido, os olhos dela tentavam compreender o que dizia o papel que ele tinha em mãos, mas a visão turva e a mente atordoada impediam que aquelas palavras fizessem algum sentido.

— Por favor, diga que você não entregou a minha menina... por favor, isso não pode estar acontecendo. – As lágrimas faziam com que os olhos de Rin brilhassem. Ela apoiou-se no batente da porta, tentando recuperar o fôlego.

A mulher colocou o rosto para dentro da porta, falando com alguém que não podia ser visto pelos dois. – Ligue para a polícia, por favor.

— Quanto tempo faz? - Sesshoumaru inquiriu, fazendo com que a atenção da inspetora voltasse para ele.

— Talvez uns vinte ou trinta minutos. – Ela gaguejava de forma nervosa. – Eu sinto muito, eu acreditei que a vinda dessa mulher era algo excepcional, em razão do aviso de tornado. Tentei ligar muitas vezes, mas como ninguém atendia eu achei que vocês tivessem ficado presos em algum lugar... eu jamais poderia imaginar que alguém falsificaria um documento para levar Melissa.

Ele travou as mandíbulas, sentindo a culpa rasgando seu corpo ao meio. Era óbvio que uma escola no meio do Kansas, em uma cidade em que um crime acontecia a cada meia dúzia de anos, não desconfiaria daquela situação, mesmo com as pontas soltas. E no final das contas, o documento não era falsificado, porque era mesmo a assinatura dele ali.

Quanto mais pensava, mais Sesshoumaru concluía que se havia alguém capaz de evitar aquilo, esse alguém era ele mesmo. Mas precisava confessar que jamais imaginou que sua ex-mulher seria capaz de levar Melissa.

Uma jovem de dentro do balcão da recepção da escola chamou a inspetora pelo nome, segurando o telefone em mãos. Ela anunciou que estava com a polícia em linha. A mulher pediu licença por um instante e entrou pela porta.

— O que diz esse papel? - Rin perguntou, fazendo com que outro choque passasse pelo corpo de Sesshoumaru. Ele ergueu os olhos, encontrando o olhar fixo e cortante dela. Pensava no que dizer, mas nada vinha à sua boca. A garganta havia secado a ponto de arder.

O silêncio dele fez com que a aflição crescesse no peito dela. Havia algo muito errado naquela reação. Sesshoumaru parecia paralisado, mas ele não era do tipo que congelava diante do medo. Rin sabia disso porque meses atrás, quando Melissa fugiu de casa em uma noite de tempestade, ele havia reunido coragem e força para encontrá-la em meio às arvores e à chuva pesada que caía. Naquela noite, Sesshoumaru havia prometido que traria Melissa para casa. Então por que ele não parecia disposto a fazer o mesmo agora? O que aquele papel poderia dizer para deixá-lo tão atordoado?

Rin lembrou-se daquela mesma noite, quando ela viu o casaco de Melissa preso em uma pedra, no meio do rio. O horror de imaginar que sua filha havia se afogado a havia paralisado, mas Sesshoumaru mergulhou na água gelada e revolta para certificar-se de que aquela não era sua menina. Então por que ele não fazia o mesmo agora?

Rin sentiu um calafrio atravessar seu corpo, como se estivesse ardendo em febre. As frases de poucos instantes atrás rodeavam sua mente. Mulher alta... loira... mesmo sobrenome que Sesshoumaru.

— Sesshoumaru... – A voz custou a sair da garganta dela. – Você sabe quem levou Melissa, não sabe? - Rin finalmente reuniu forças para perguntar, embora seu coração estivesse resistindo a acreditar que aquilo era verdade.

Outra vez o silêncio, e ela sentiu como se fosse desmaiar. Ele a olhava com uma expressão conturbada, com os dentes trancados como se fossem pedras. Aquilo, por si só, já era a resposta que Rin queria, mas ela precisava ver com os próprios olhos.

As mãos nervosas tomaram o papel das mãos dele. As palavras confusas encontraram ordem na mente de Rin e o horror que ela sentiu ao ler aquilo era comparável ao que a paralisou quando ela acreditou que tivesse perdido Melissa para sempre, naquele rio. Talvez o sentimento fosse o mesmo porque ao ler aquela procuração, que tinha mesmo a assinatura de Sesshoumaru, Rin sentiu de novo que nunca mais veria Melissa.

Ela achou que perderia as forças, mas ao invés de ceder, suas pernas começaram a se mover. Rin entrou na caminhonete, girando a chave na ignição para fazer o velho motor roncar. Antes que ela pudesse fechar a porta do motorista para sair, ela sentiu as mãos de Sesshoumaru a impedindo.

— Você precisa ir para um lugar seguro. – Ele buscou a chave na ignição, mas antes que ele alcançasse, Rin o empurrou.

Ela ofegava com tanta intensidade, que a barriga volumosa chegava a tocar o volante largo da caminhonete. – Eu vou encontrar Melissa.

— A tempestade vai chegar a qualquer momento, você precisa ir para um lugar seguro. – Sesshoumaru repetiu, segurando as mãos agitadas dela.

Minha filha foi levada sabe-se Deus para onde e você sugere que eu espere pacientemente? - Ela falava entre os dentes, com a raiva sendo projetada do fundo da garganta.

Sesshoumaru tentou ignorar o sentimento de dor que surgiu ao ouvir Rin chamando Melissa de minha filha, mas não foi possível. - Eu vou procurá-la, e você vai para o abrigo. – A voz tinha um tom sombrio, mas ainda era perfeitamente linear, o que estava prestes a enlouquecer Rin.

— Não. – Ela negou prontamente, tentando fechar a porta da caminhonete. – Eu não vou cruzar meus braços e esperar.

Percebendo que não poderia ganhar a batalha e que perder tempo com aquela discussão era algo estúpido a se fazer quando havia um tornado a caminho, Sesshoumaru fechou a porta do motorista. Como um raio, ele deu a volta pela lataria e entrou pela porta do passageiro. Rin deu partida e saiu cantando pneus.

Os pingos pesados da chuva começaram a bater contra o para-brisa e os limpadores trabalhavam repetidamente para abrir a linha do horizonte. A caminhonete devorava os metros de estrada à frente de forma ávida, embora o vento fizesse a cabine balançar.

A mente de Sesshoumaru trabalhava de forma intensa, tentando resgatar a racionalidade sufocada pela montanha de raiva e culpa que sentia. Se Rebeca havia buscado Melissa há minutos, ela não podia estar longe. Com os possíveis bloqueios nas estradas e com os aeroportos fechados, em razão do alerta de tornado, ela também não poderia ir muito longe. Sabia que a ex-mulher havia aproveitado a confusão causada pela tempestade para levar Melissa, mas aquilo também seria uma desvantagem. Provavelmente Rebeca esperaria o tornado passar para levar a menina para outro lugar, se é que aquele realmente era seu plano.

Sesshoumaru queria acreditar que a ex-mulher havia feito aquilo para castigá-lo ou para chamar a atenção dele de alguma forma, mas a verdade era que Rebeca estava tão obcecada com a ideia de se tornar mãe, que não era impossível que seu objetivo fosse realmente o de desaparecer com Melissa. Ele sabia que ela tinha dinheiro e recursos de sobra para levar a menina para outro país, e que com a influência de seu ex-sogro não seria difícil conseguir uma nova identidade para as duas. Aquele pensamento fazia com que o estômago de Sesshoumaru revirasse. Ele sabia que tinha pouco tempo para encontrar a filha e que sua corrida agora não era somente contra o enorme tornado que estava a caminho de Lovebelt, mas era principalmente contra o relógio.

Rin parou a caminhonete em frente à casa de Sango e desceu rapidamente. Sesshoumaru a seguiu. Ela tocou a campainha e bateu à porta de forma repetida até que Miroku viesse atender à porta. Assim que ele abriu, Rin entrou pela sala.

— Melissa desapareceu. – Ela anunciou de uma só vez, fazendo com que Sango aparecesse por trás da bancada da cozinha.

— Como assim? - A outra morena exigiu.

Passos pesados soaram na escada e Kohako apareceu em apenas um instante. Assim que o viu, Rin não conseguiu conter as lágrimas. Ela lembrava-se de quantas vezes Kohako a havia alertado sobre a presença destrutiva do passado de Sesshoumaru, e o pesadelo que ela vivia agora era uma prova de que ele tinha razão. Kohako desceu os últimos degraus e foi na direção de Rin, abraçando-a com força. Ela apertou o tecido da camisa dele entre os dedos, fechando os olhos.

Ao ver aquela cena, Sesshoumaru sentiu a raiva e a culpa crescerem ainda mais dentro de si. Ele dirigiu-se a Miroku, que parecia congelado à porta com a mesma expressão assustada de antes. – Preciso da sua ajuda. Venha. – Ele chamou, dirigindo-se ao lado de fora.

Os ventos sopravam de forma intensa e em diversas direções, o que espalhava a pesada chuva por toda a varanda da casa. Miroku fechou a porta atrás de si, parecendo sair do transe.

— Como assim Melissa desapareceu? - Ele perguntou.

— Rebeca a levou. – Sesshoumaru sabia que não tinha tempo para rodeios, e por isso anunciou de pronto. O choque apareceu no rosto do outro.

— Sua ex-mulher? - Miroku tentou confirmar, embora soubesse que só havia uma pessoa com aquele nome capaz de fazer aquilo. – Como ela fez isso? Melissa estava na escola.

— Ela tinha uma procuração. – Ele massageou a área entre os olhos, sentindo um gosto amargo na boca. – De quando ainda éramos casados.

— Uma procuração? - O rapaz buscou confirmação outra vez e foi cortado por um olhar gélido do outro. – Bem, de qualquer forma... um documento assim perdeu validade quando vocês se divorciaram.

Eu sei. — Sesshoumaru falou pausadamente, embora seu tom de voz denunciasse a urgência de seguir para a parte importante da conversa. – Mesmo assim, ela conseguiu levá-la, e eu preciso de sua ajuda para encontrar as duas.

— Elas não podem ter ido longe. Com o tornado, as estradas foram fechadas e os voos comerciais não estão decolando. – Miroku seguiu a lógica, tentando ajudar.

— Isso significa que tenho pouco tempo. Quando o tornado passar, Rebeca pode levá-la para qualquer lugar.

— Tecnicamente, ela não conseguiria levar Melissa muito longe com esse documento. – Ele coçou o queixo, tentando raciocinar.

— Rebeca tem dinheiro suficiente para levá-la para qualquer lugar. Pode ser um voo fretado, identidades falsificadas... ou tudo isso.

A realidade pareceu cair como uma pedra sobre Miroku, que finalmente entendeu a gravidade do que estava acontecendo. – Você acha que ela seria capaz de fazer isso?

Sesshoumaru ficou em silêncio, com as mandíbulas travadas. A expressão assustada de Miroku indicou que ele já havia tido resposta para sua pergunta.

— Ainda tenho contatos em Washington. Posso pedir que um alerta seja enviado para as alfândegas, para que Rebeca não consiga embarcar em nenhum voo comercial e nem consiga passar pelas fronteiras. – Ele buscou o celular no fundo do bolso, deslizando a tela para desbloquear o aparelho. – Droga, o sinal está ruim.

— Faça o que for possível, Houshi. – Ele pediu. – E eu preciso que você leve Rin para um lugar seguro.

— Pra onde você vai? - Miroku tirou os olhos da tela do celular, voltando a encarar Sesshoumaru. – Você não está pensando em procurá-la em meio a um tornado, certo?

— Se Rebeca entrar com Melissa em um avião, posso nunca mais ver minha filha. – Antes que pudesse perceber, Sesshoumaru havia vocalizado o pensamento que tanto o assombrava. Se Rebeca conseguisse tirar Melissa de Lovebelt, então elas poderiam ir para qualquer cidade no mundo. Seria como procurar uma agulha em um palheiro.

— Não é possível que só eu esteja entendendo o que está acontecendo aqui. – A voz alterada de Kohako chamou a atenção dos dois, e a confusão ficou mais próxima quando ele abriu a porta de forma abrupta.

— Kohako... – Sango implorou, levantando-se do sofá onde Rin estava sentada.

— Esse cara fez isso. – Kohako apontou para Sesshoumaru de forma raivosa.

Sesshoumaru entrou pela porta, fazendo com que os pingos de chuva deixassem de alcançá-lo. Estava, agora, a poucos passos do outro rapaz, que continuava a encará-lo com os olhos fervilhando de raiva. O assovio do vento misturava-se com as vozes no ambiente de forma confusa, fazendo com que a cabeça de Rin latejasse.

— Ele assinou esse documento dias antes de aparecer na cidade outra vez. É a data que está aqui. – Kohako apontou para a procuração, que agora estava entre seus dedos. – Aquela história de que ele queria conquistar o amor de Melissa era mentira.

— Sesshoumaru. – Rin colocou-se de pé, apoiando as mãos nos joelhos. Embora estivesse sentada no instante anterior, agora ela se curvava e respirava de forma pesada como se tivesse corrido uma maratona. – Por que você voltou, um ano atrás? Foi essa mulher que mandou que você viesse? - As palavras espaçadas indicavam o quão nervosa ela estava.

Ele ficou em silêncio outra vez. Aquelas eram as perguntas que ele tanto temeu ter que responder. Sabia que precisava dizer a verdade, mas ver Rin naquele estado partia seu peito ao meio.

— Responda. – Ela exigiu, aumentando o tom de voz.

— Sim. – Ele concordou. – Mas o que eu fiz depois disso ou o que sinto não são parte do que Rebeca queria.

— Você me disse que ela não podia ter filhos... - Rin apoiou uma das mãos na base das costas, ofegante. – Ela queria ter a guarda de Melissa, não queria?

— Queria. – Sesshoumaru resolveu dizer a verdade outra vez, embora tivesse consciência de que a honestidade teria um preço muito alto. – Mas nada disso importa mais.

— Você concordou! – Rin o acusou, deixando que as lágrimas escorressem livremente pelo rosto. – Não só concordou como assinou isto. – Ela tomou o odioso papel das mãos de Kohako, balançando-o no ar. – Melissa não foi sequestrada. Aquela mulher a levou com a sua permissão.

As palavras dela feriam o peito de Sesshoumaru, mas seu lado racional o lembrava constantemente que não havia tempo para aquilo. O relógio continuava a correr contra eles.

— Você precisa se acalmar – Ele avançou um passo e Rin recuou outro.

— Não chega perto de mim. – Ela o repeliu, sendo amparada por Kohako, que se colocou entre os dois.

Sesshoumaru plantou os dois pés no mesmo lugar, sentindo a raiva turvar sua visão. Nunca havia sentido as emoções à flor da pele como sentia agora. Não bastasse a culpa por saber que Melissa poderia desaparecer de uma vez por todas e por saber que Rin tinha razão em tudo que havia apontado até ali, ainda havia a aflição de vê-la naquele estado. A situação havia fugido de controle de forma irremediável.

— As coisas mudaram quando eu passei mais tempo aqui. Eu desisti de qualquer plano de voltar para Nova York. – Ele travou a mandíbula, deixando que as palavras escapassem entre os dentes.

Sua mulher parece não ter notado que os planos mudaram. – Kohako falou de forma sarcástica, fazendo com que os olhos dourados se fixassem nele. Agora sua mulher era Rin, mas Sesshoumaru sabia que Kohako se referia a Rebeca, o que aumentou o ódio dentro de seu peito. – Se é que tudo isso também não faz parte do que vocês dois pensaram em fazer...

Sesshoumaru sentiu como se sua mente tivesse se desconectado do corpo por um instante, conforme sua visão se tornou um borrão. Só percebeu que havia acertado o rosto de Kohako com um soco quando Sango gritou seu nome e quando Miroku o puxou de volta, para separá-los. Maia começou a latir repetidamente e o assovio do vento ficou mais intenso, misturando-se ao zumbido que preenchia os ouvidos dele.

O que se seguiu depois foi uma sequência de fatos que pareceram ter rasgado o tecido temporal. Maia continuou latindo de forma repetida em direção a Rin, o que fez com que Sesshoumaru pousasse os olhos sobre a morena. Ela tinha as sobrancelhas torcidas, os olhos fechados, e o corpo pendia de um lado para o outro, como se buscasse equilibrar-se. As pernas dela dobraram-se em um instante e acabaram por ceder. Sesshoumaru soltou-se das mãos de Miroku e avançou um passo longo, amparando o rosto de Rin antes que ele se chocasse contra o chão.

Os latidos de Maia e o assovio do vento ganharam a companhia dos gritos caóticos de Sango e Kohako chamando por Rin. Ao invés de cair inerte, o corpo dela se contorcia de forma repetida, trazendo um sentimento de puro pavor para o peito dele.

Resgatado por um lapso de racionalidade, Sesshoumaru apanhou as almofadas do sofá e amparou o corpo dela, evitando que ela se ferisse durante o episódio de convulsão.

— Chama uma ambulância. – Sango gritou para Miroku, que mergulhou a mão no bolso para pegar o celular outra vez.

No instante em que o corpo de Rin parou de se mover, Sesshoumaru a pegou entre os braços. Os braços e pernas inertes indicavam que ela estava desacordada. Não havia tempo para esperar por uma ambulância, ainda mais em meio a uma tempestade como a que se aproximava. Ele saiu pela porta como um raio, sendo seguido por Kohako. O rapaz ligou a caminhonete preta, que estava em frente à garagem, e deu a partida assim que Sesshoumaru entrou, com Rin ainda nos braços.

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