Para Sesshoumaru, o tempo parecia permanecer fora de ordem, como se a regra sequencial de segundos, minutos e horas tivesse se perdido em algum ponto dos últimos acontecimentos. Ele ajudava os enfermeiros a empurrarem a maca de Rin pelo longo corredor caótico que levava do pronto-socorro para a ala de internação do hospital de Salina. Embora ela ainda estivesse desacordada, ele segurava a mão da esposa com firmeza. Conforme andavam, os enfermeiros começavam a paramentar o leito improvisado, instalando um balão de oxigênio e um acesso venoso no braço de Rin.

Quando chegaram ao elevador que os levaria para a ala semi-intensiva, Rin abriu os olhos. Ela vasculhou o ambiente, tentando desfazer a confusão de sua mente. Quando se viu rodeada por médicos, Rin tentou reagir. Seu primeiro reflexo foi o de tentar colocar-se sentada, mas uma enfermeira colocou a mão espalmada sobre seu peito, impedindo que ela fizesse aquilo.

— O que está acontecendo? -- Rin perguntou, ainda tentando entender onde estava.

— Você teve uma convulsão. – Sesshoumaru explicou, fazendo com que ela finalmente o olhasse. Assim que os olhos castanhos repousaram sobre ele, o ressentimento e a aflição voltaram a estampar o rosto dela.

— Quanto tempo eu fiquei apagada? -- Ela afastou a mão da dele de imediato, como se tivesse levado um choque.

— Você vai ficar bem. A Doutora Sue está a caminho. – A enfermeira forçou um sorriso para Rin e sacou um estetoscópio, auscultando a barriga dela.

— Alguma notícia de Melissa? -- Rin exigiu, afastando o balão de oxigênio do rosto para poder falar.

— A polícia já está fazendo buscas. – Sesshoumaru curvou-se sobre a maca para olhá-la diretamente. Embora soubesse que encontraria uma expressão dura, ele precisava olhar para Rin. O desespero de tê-la desacordada nos seus braços pelos últimos minutos fizeram com que ele temesse que jamais fosse ver os olhos castanhos outra vez.

— Não, você precisa ir. – Ela repeliu a enfermeira que tentou levar o aparelho de oxigênio ao seu rosto. – Você precisa encontrar Melissa.

— Rin... – Ele engoliu seco, sentindo a dor da culpa voltar. – Não posso deixar você sozinha.

— Eu vou ficar bem. – Ela rebateu com raiva, e os olhos começaram a transbordar de lágrimas outra vez. – Se minha filha não voltar para casa hoje, eu sei que não vou vê-la outra vez. Eu sei. – Repetiu. – Você a encontrou naquela noite, na floresta. Por favor, traga-a de volta agora... – A voz dela sumiu progressivamente, conforme o choro tomou conta dos lábios de Rin.

Sesshoumaru sentiu uma dor no peito que foi capaz de arrancar seu fôlego, como se seus pulmões tivessem sido esmagados. A porta do elevador se abriu e os enfermeiros avisaram que ali era o limite e que ele não poderia subir para a área semi-intensiva com Rin. Ele acenou positivamente, certificando-se que ela havia entendido que aquela era uma promessa: Sesshoumaru traria Melissa de volta.

Menos de cinco minutos depois – o tempo que levou para que Sesshoumaru preenchesse a ficha de entrada no hospital – a doutora Sue chegou. A médica de meia idade que os atendeu nos últimos meses surgiu no fim do corredor, caminhando apressadamente na direção do elevador. Ele sabia que a presença da obstetra ali era um mau sinal. Uma crise convulsiva, como a que Rin havia tido hoje, tinha desencadeado o parto prematuro de Melissa. Tudo que ele temia parecia estar acontecendo de novo, em uma sequência surreal de acontecimentos negativos. Sesshoumaru alongou os passos, acompanhando a caminhada da médica até o elevador.

— O que está acontecendo com ela? -- Ele inquiriu de uma vez.

— A pressão de Rin está muito alta, e isso acabou desencadeando uma convulsão. Vamos administrar alguns medicamentos para tentar reduzir a pressão arterial e para impedir que outra convulsão aconteça. – Sue explicou, apertando o botão do painel.

Sesshoumaru a acompanhou. – E quanto ao bebê?

— Vamos monitorar os batimentos cardíacos e o líquido amniótico...

— E se houver qualquer problema? -- Ele a interrompeu, parando em frente à porta dupla de metal.

— Se não pudermos controlar a pressão arterial da mãe ou se o bebê der qualquer sinal de sofrimento fetal, vamos ter que fazer o parto. – Ela inclinou o rosto, adotando uma expressão consternada.

— São só 32 semanas... – Ele murmurou para si mesmo, fazendo contas mentalmente.

— Vamos observá-las nas próximas horas. Vai ficar tudo bem. – Sue tocou brevemente o ombro de Sesshoumaru, entrando no elevador em seguida. – Vou pedir que te mantenham informado.

Assim que o elevador fechou, ele deu as costas e voltou para a recepção, encontrando Kohako andando de um lado para o outro. Ignorou completamente a presença do outro e saiu pela porta, percebendo que a chuva havia ficado pior ainda. Pequenos granizos caíam pela rua e o vento balançava os fios elétricos e pedaços das fachadas dos imóveis do entorno. Seu tempo estava acabando.

Sentiu o celular vibrando no bolso e viu que se tratava de uma ligação de Miroku. Atendeu imediatamente.

— Como Rin está? -- O rapaz perguntou pelo outro lado da linha.

— Estável. Vão monitorá-las.

— Consegui uma pista sobre Rebeca. – O chiado na ligação quase impediu Sesshoumaru de ouvir as palavras, e ele voltou para dentro da recepção, para que o barulho da chuva deixasse de atrapalhar. – Pedi para um velho amigo da Casa Branca para rastrear o sinal do celular dela.

— Onde Rebeca está? -- A adrenalina disparou nas veias de Sesshoumaru.

— O último sinal foi em um ponto na rodovia entre Ellsworth e Lovebelt, perto da entrada para a fazenda dos Braxton. Pode ser que ela tenha parado ou que o celular tenha deixado de funcionar. – O som das buzinas de carros cobriu parte da voz de Miroku, e ele praguejou. – Droga. A estrada está cheia de bloqueios. Estamos presos no caminho para Salina.

— Preciso que você e Sango fiquem com Rin. Eu vou até lá. – Sesshoumaru avisou.

— As coisas estão muito feias por aqui. Lovebelt está no caminho da tempestade. – Ele advertiu.

Se Lovebelt estava no caminho do possível tornado, isso significava que Melissa e Rebeca também estavam. Sesshoumaru desligou o celular, dirigindo-se de novo para o lado de fora. Ele olhou para uma direção e para a outra, não conseguindo enxergar nada além dos ventos intensos que carregavam pingos pesados de chuva e que cobriam completamente a visão da rua. Precisava arrumar um carro imediatamente.

— Vamos logo. – Kohako chamou, passando por ele.

Sesshoumaru o encarou com um olhar capaz de parti-lo ao meio. Não bastasse a angústia em seu peito por tudo que estava acontecendo com Rin e Melissa, ainda tinha que lidar com a raiva que sentia daquele homem.

— Você vai procurar por Melissa ou não? -- Kohako insistiu, parando ao lado da caminhonete preta. Os pingos de chuva batiam furiosamente contra o corpo dele, e o barulho fazia com que ele gritasse para ser ouvido.

O ódio queimava como fogo dentro do peito de Sesshoumaru. Aquele sentimento tão impulsivo era inédito para ele, que nunca havia permitido que a raiva tomasse conta de seus sentimentos e muito menos de suas atitudes. A verdade era que sua mente gritava para que ele partisse para cima de Kohako outra vez e que distribuísse todos os socos que aquele homem merecia. Mas o destino, com toda sua típica ironia, havia feito com que o homem que Sesshoumaru mais odiava naquele momento fosse sua única chance de procurar por Melissa.

Superando o ímpeto da vingança imediata, Sesshoumaru engoliu a própria raiva e entrou pela porta do passageiro da caminhonete.

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Por conhecer bem a região, Kohako havia conseguido fugir dos bloqueios na saída da cidade. Não levou muito tempo para que eles caíssem na estrada que levava até Ellsworth – e depois, até Lovebelt. Quanto mais avançavam em direção das cidades menores, pior o tempo ficava. O vento era tão intenso, que havia se tornado impossível enxergar um palmo sequer à frente da estrada. Em razão dos bloqueios, não havia nenhum veículo trafegando na direção contrária. A linha do horizonte era apenas um borrão cinza.

Quando conseguiram passar por Ellsworth e entraram no caminho para Lovebelt, a chuva diminuiu, mas o céu tornou-se assustadoramente escuro. O cinza era predominante, mas algumas nuvens altas tinham um tom esverdeado, como se parte do céu tivesse sido tomado pela noite.

— Isso não é bom. – Kohako murmurou para si mesmo.

Sesshoumaru não sabia se ele falava do céu, que claramente denunciava a formação de uma tempestade, ou se ele se referia ao fato de que a entrada para a fazenda dos Braxton estava próxima, mas não havia sinal algum de Rebeca. O vento era intenso e carregava parte da vegetação e da terra para a pista. A caminhonete de Kohako vencia bravamente os obstáculos por ser um veículo robusto, mas o vento fazia a cabine pender para um lado e para o outro.

Na linha do horizonte, uma camada das nuvens parecia se aproximar do solo com rapidez. Sesshoumaru nunca havia visto um tornado antes, mas sabia que aquele era um sinal de que estava prestes a ver um.

— Olha! – Kohako chamou a atenção para um ponto na beira da estrada, onde havia um Mercedes 180 cinza chumbo estacionado. A lataria do carro se confundia com o horizonte escuro, mas era possível ver uma silhueta abaixada ao lado do veículo. Os cabelos loiros, embora presos, eram inconfundíveis para Sesshoumaru.

— Pare o carro. – Ele mandou, arrancando o cinto de segurança.

Assim que Kohako estacionou a poucos metros do sedan, Sesshoumaru desceu pela porta do passageiro. Rebeca tentava trocar o pneu do carro, que havia sido rasgado por um pedaço de cerca jogado no meio da estrada, mas obviamente não tinha a menor habilidade para aquilo. Assim que percebeu que alguém havia estacionado logo atrás, ela levantou-se. Os olhos azuis e dourados se cruzaram e Rebeca pareceu congelar no lugar, apoiando-se na lataria do carro.

— Papai! – Melissa gritou, aparecendo por detrás do vidro traseiro do carro.

Sesshoumaru mal sentia o asfalto sob seus pés, conforme suas passadas largas o aproximavam do carro. Ele passou por Rebeca, que ainda parecia estar atônita, e abriu a porta de trás do Mercedes. Melissa saltou nos braços do pai, afundando o rosto contra o ombro largo dele.

— Papai, vamos embora. – A menina implorou.

— Você está bem? -- Ele afastou o rosto para olhá-la, afagando os cabelos castanho-claro. Lissy acenou positivamente em resposta.

— Eu não faria mal a ela. – Rebeca disse. A loira vestia uma calça flare creme que, a essa altura, estava suja de terra na altura dos joelhos e na barra. A camisa perfeitamente branca também havia sido suja, e a pashmina cáqui jogada sobre os ombros estava desalinhada. Ela estava apoiada contra o carro, em uma postura acuada, mas como se estivesse pronta para revidar um ataque.

— Você enlouqueceu, Rebeca. – Sesshoumaru acusou, entre os dentes. – Você sequestrou a minha filha.

— Você não podia ter feito o que fez comigo. – Ela gritou de volta, com as lágrimas começando a preencher os olhos.

O rugido do vento tornou-se mais alto, e Sesshoumaru percebeu que as nuvens baixas haviam se tornado uma tempestade bem definida, com um funil que se esticava em direção ao chão. A cena estava assustadoramente perto.

— Vamos embora. – Kohako gritou, descendo do carro.

— Entra na caminhonete. – A voz fria dele determinou, vendo-a recusar mais um passo.

— Eu não vou a lugar algum.

— Eu não estou brincando, Rebeca.

— Papai! – Melissa chamou, apertando os braços em volta do pescoço de Sesshoumaru.

— Eu não quero ir. Não quero viver assim. – A loira gritou de volta, encolhendo-se contra o sedan.

— Por Deus, Rebeca, entra logo na porcaria do carro. – Ele também aumentou o tom de voz, fazendo com que ela tremesse.

— EU NÃO VOU! – Ela encheu o pulmão de ar antes de revidar. Embora tivesse gritado a plenos pulmões, o assovio do vento cobria a voz dela.

A tempestade jogava pedaços da vegetação e do guardrail da lateral da estrada pelo ar, atingindo a lataria do Mercedes. A velocidade da ventania tornava difícil para Sesshoumaru equilibrar-se, ainda mais com Melissa escalando seu pescoço de forma aflita.

— A dona vai ter que decidir sobre isso outro dia. – Impaciente, Kohako deu passos largos até Rebeca e envolveu o corpo dela com os dois braços, arrancando-a do chão. Ela debateu-se e gritou, esforço que se mostrou inútil diante da força dele.

Sesshoumaru correu até a caminhonete e entrou pela porta do motorista, colocando Melissa no banco do passageiro. Kohako empurrou Rebeca, que ainda gritava, pela porta traseira e entrou, gritando para que Sessoumaru desse partida logo – e assim ele fez.

Pingos pesados de chuva voltaram a cair, cobrindo a visão do vidro da caminhonete. Ele deu a volta e colocou o carro na direção contrária, contra o vento, o que tornou a condução ainda mais instável. Não bastasse isso, o ambiente dentro da cabine era caótico, com os gritos de Rebeca e o choro alto de Melissa.

O funil que parecia invisível agora havia se tornado uma massa de vento em círculos, que varria a plantação de forma ávida, carregando a terra para o alto. Conforme o tornado se agigantava bem em frente aos olhos deles, o dia ia ganhando proporção de noite.

— Por que ele não está se movendo? -- Sesshoumaru perguntou, referindo-se ao funil que só crescia.

— Ele está se movendo. – Kohako rebateu, ainda tentando conter Rebeca na lateral do banco. – Está vindo na nossa direção.

Quanto mais ele afundava o pé no pedal do acelerador, mais o vento tentava arrancar a caminhonete da estrada. A cabine movia-se de um lado para o outro e os pneus dançavam sobre o asfalto molhado. O medo passava de um extremo ao outro no corpo de Sesshoumaru, e ele começava a considerar que aquele era o fim da linha. A adrenalina não permitia que ele racionalizasse bem a situação, mas Sesshoumaru não conseguia deixar de pensar em Rin. As imagens daquele dia se misturavam com lembranças felizes dos últimos anos: quando ele a conheceu, o primeiro beijo, os momentos com Melissa, o casamento... Era como se sua mente estivesse dando motivos para que ele lutasse, para que de alguma forma ele cumprisse sua promessa e voltasse para casa com a filha.

— Sesshoumaru. – Kohako gritou, despertando-o das lembranças. – Não vai dar tempo. Precisamos ir para a fazenda.

A estrada que levava para a fazenda de Rin tinha uma entrada a poucos metros, mas o pequeno desvio de rota os colocaria de frente para o monstro que a cada instante crescia. Ele entrou pela rotatória larga e viu-se de frente a uma nuvem escura, que encobria uma massa de poeira e milhares de pedaços de construções destruídas. Olhando-o frente a frente, ele era ainda mais assustador. Sesshoumaru prendeu a respiração.

Conforme ele avançava, mais fragmentos batiam contra a carroceria da caminhonete e mais difícil a tarefa de avançar se tornava. Quando alcançaram o armazém da fazenda, onde meses antes Sesshoumaru havia vivido um dos dias mais felizes da sua vida, a tempestade estava prestes a engoli-los.

Desceram do carro, encontrando uma ventania que os empurrava para todos os lados. Sesshoumaru apertou Melissa contra si e Kohako tirou Rebeca do carro, conduzindo os quatro para uma porta dupla fincada no chão, ao lado do enorme galpão. Os pedaços de madeira da fachada do galpão chocavam-se contra a rede elétrica, fazendo com que clarões explodissem no horizonte escuro como a noite. Sesshoumaru olhou para trás e viu a casa que Rin tanto gostava sendo varrida pelo vento – primeiro o telhado e depois parte da estrutura do segundo andar.

Kohako abriu as portas do abrigo no solo e todos entraram, mergulhando em uma absoluta escuridão e ouvindo o rugido do tornado varrendo tudo que encontrava logo acima deles.

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Rin olhava pela janela do quarto para onde havia sido levada minutos antes, encarando os pingos grossos da chuva batendo contra o vidro. Os remédios dados a ela pareciam ter drenado toda a força de seu corpo, mas seu coração continuava a bater fora de compasso e sua mente não parava por um único instante. Continuava a pensar em Melissa, imaginando onde ela poderia estar naquele momento. Será que Sesshoumaru já havia cumprido sua promessa e a encontrado? E o mais importante: estariam eles a salvo?

Ela não conseguia esquecer das palavras escritas naquela procuração, e nem o que elas significavam. Pensando friamente e sob a atual perspectiva, Rin não conseguia acreditar que havia deixado de questionar as razões para Sesshoumaru ter mudado de ideia. Como havia sido tola a ponto de imaginar que ele havia decidido, por livre e espontânea vontade, ter contato com a filha que não procurou durante os seus primeiros cinco anos de vida? Como havia acreditado na história de que de repente – e não mais do que de repente – ele havia percebido que precisava ser pai de Melissa, sem nunca antes ter dado sequer um telefonema para ela? Era óbvio que o passado dele tinha alguma influência sobre aquela decisão, ou jamais ele teria sequer saído de Nova York.

Pensar que nada do que aconteceu havia sido por vontade dele fazia com que o coração dela sofresse. A reviravolta em sua vida -- a mesma reviravolta que trouxe Sesshoumaru de volta, que fez com que ele desistisse de tudo, com que se casasse com ela e com que eles tivessem mais uma filha – tinha começado no desejo da ex-mulher dele de conseguir a guarda de Melissa. No início, o plano de Sesshoumaru não era voltar para elas, e sim de tirar de Rin a sua amada filha, a pessoa mais importante do mundo, a única família que havia restado para ela depois da morte de seu pai. Saber que ele foi capaz, um dia, de concordar com aquilo era doloroso demais.

Mas o ressentimento também não era suficiente para sufocar a aflição que Rin sentia ao lembrar que ela havia pedido que Sesshoumaru fosse procurar Melissa no meio da tempestade. Sango estava tentando mantê-la distante das notícias, mas Rin havia ouvido pelo burburinho das enfermeiras que a situação era muito ruim. Salina estava fora do caminho da tempestade, e mesmo assim havia um clima de pânico no hospital. O alerta de mais cedo havia se transformado em algo grande, e não parecia ser um dos tornados que passavam pelo Kansas com frequência. Ela não tinha certeza da extensão da tempestade que havia chegado à região, mas algo dizia que ela estava prestes a ver tudo aquilo que viu duas vezes na vida, quando dois tornados de classe 5 varreram boa parte da cidade.

O aparelho que acompanhava os sinais vitais de Rin e do bebê começou a apitar. Sango saltou do sofá e abriu a porta do quarto, chamando por uma das enfermeiras. Assim que entrou no ambiente, a enfermeira pediu para que a doutora Sue fosse chamada.

Não levou mais do que alguns instantes para que a médica de meia idade entrasse pela porta, carregando o prontuário nas mãos. Ela conferiu a pressão arterial de Rin e observou o papel extenso que saía da máquina que acompanhava os batimentos cardíacos do bebê. Assim que os olhos varreram todos os exames, ela virou-se para a enfermeira e pediu que fossem administrados corticoides para preparar o pulmão do bebê para o parto.

— Não. – Rin negou, puxando para si o acesso venoso pendurado ao seu lado. – Ainda é muito cedo. Eu-eu posso repousar por mais um tempo.

— O coração do bebê está batendo devagar. Se não fizermos isso agora, podemos perder vocês duas. – A médica fez um sinal para que a enfermeira não continuasse.

— Não está na hora. – Rin chorou. – Nós... nós nem escolhemos um nome para ela.

— Vai ficar tudo bem. – Sue colocou a mão sobre a dela.

— Ela é ainda mais prematura do que Melissa. E se ela não sobreviver?

— O remédio vai preparar os pulmões, para que ela consiga respirar aqui fora. O peso do bebê está bom, ela vai conseguir se recuperar. – A médica explicou pacientemente, tentando acalmá-la.

Com os olhos inundados de lágrimas, Rin entregou de volta o longo fio que levava a medicação até suas veias, permitindo que a enfermeira aplicasse a dose do remédio.

— Você conseguiu falar com Sesshoumaru? -- Sue murmurou para Sango, que moveu o rosto em sinal negativo. – Nós vamos monitorar por mais alguns minutos. Se os batimentos não melhorarem, vou pedir que preparem a sala para o parto.

Quando a médica saiu do quarto, Rin cobriu o rosto com as mãos, desmoronando. O choro desamparado fez com que os olhos de Sango também se enchessem de lágrimas, e ela abraçou a amiga com força, sussurrando que tudo ficaria bem.

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O ambiente do subterrâneo estava completamente escuro. O porão, que tinha um pé direito de apenas um metro e meio, estava vazio, mas era claustrofóbico. Sesshoumaru estava sentado em um canto, com Melissa deitada em seus braços. Ele ouvia somente a respiração da menina contra o próprio peito e o assovio intenso do vento logo acima deles. Vez ou outra o rosto de Kohako era iluminado pela tela do celular, e a expressão frustrada mostrava que ele continuava sem sinal para ligação ou para enviar uma mensagem. Lissy havia se acalmado, depois de minutos de pânico, mas continuava aterrorizada com o som da destruição causado pela tempestade.

Rebeca estava sentada no outro extremo do pequeno ambiente e chorava silenciosamente. Quando a tela do celular de Kohako acendeu, iluminando o ambiente, Sesshoumaru reparou que a mulher o olhava.

— Essa porcaria não tem sinal. – Kohako resmungou, jogando o celular ao lado do corpo.

— Continue tentando. – A voz fria de Sesshoumaru preencheu o ambiente.

— Minutos atrás, consegui receber uma mensagem de Sango. Ela está no hospital com Rin. – Ele pressionou a região entre os olhos. – Mas não dá para responder.

— Mamãe está doente? -- Melissa ficou alerta imediatamente.

— Está tudo bem. Estão cuidando dela e da sua irmã. – Sesshoumaru murmurou para a menina, que acenou positivamente.

Instantes de silêncio se sucederam antes que Rebeca perguntasse. – Ela está esperando uma criança?

Ele ficou calado, sentindo a raiva tomar conta de seus sentidos outra vez. Depois de tudo que havia feito, Rebeca ainda acreditava que merecia uma resposta para aquela pergunta?

— Então é verdade o que meu pai disse. – Ela aumentou o tom, fazendo com que o pequeno cômodo fosse preenchido com a sua voz. – Como você pôde?

— Do que você está falando? -- Sesshoumaru, ao contrário, diminuiu a voz, chegando a um tom capaz de dar calafrios em qualquer um.

— Meu pai descobriu tudo. – A loira reagiu. – Você nunca tentou ter filhos. Ele soube que você pagou a clínica para que eles não fizessem os procedimentos.

— Eu nunca faria isso. – Ele rebateu prontamente. Embora soubesse que aquele assunto era altamente inadequado para ser discutido na frente de Melissa e de Kohako, as acusações dela eram revoltantes.

— Mentira! – Ela gritou, ferindo os ouvidos dele.

— Seu pai está te manipulando, como sempre fez. – Sesshoumaru travou os dentes, sentindo Melissa encolher-se contra seu peito.

— Por que ele faria isso?

— Porque ele nunca quis que você adotasse uma criança. Ele achava que isso macularia a imagem da família dele.

— Isso não é... – Rebeca parou de repente, como se estivesse assimilando algo. Aquela história havia surgido quando ela comunicou ao pai a decisão de adotar uma criança. Leonard a convenceu que Sesshoumaru a havia enganado, e que ela deveria continuar tentando engravidar.

— Você não pode ter filhos, Rebeca. – Ele desceu o tom, voltando à habitual voz linear e fria. – E seu pai prefere não ter netos a ter um que não tenha o sangue dele.

A escuridão não permitiu que Sesshoumaru visse, mas os olhos e os lábios dela tremulavam. Rebeca tentava organizar a confusão dos últimos acontecimentos em sua mente. O desejo de ser mãe a havia movido nos últimos anos, e ouvir que Sesshoumaru havia roubado isso dela tinha alimentado uma raiva nunca sentida. Rebeca quis vingar-se, quis magoá-lo, e por isso decidiu levar Melissa sem dizer nada a ninguém – até mesmo a Leonard. Embora o sonho de ser mãe da menina tivesse crescido naquela tarde em que a viu na cafeteria, ela não tinha tido estômago para pensar no que faria depois daquilo. Seu desejo de ser mãe era intenso, beirava a irracionalidade, mas ela não tinha a frieza para desaparecer para sempre com uma criança.

— Quando eu soube que aquela mulher esperava uma criança, eu perdi a cabeça. – Rebeca admitiu, recebendo o completo silêncio como resposta.

O silêncio pesado foi interrompido por um bipe do celular de Kohako. Ele inclinou-se sobre o cimento frio e apanhou o aparelho, fazendo com que a luz da tela voltasse a iluminar o ambiente. Assim que leu o que estava escrito ali, uma expressão de angústia tomou conta do rosto dele.

— O que é? -- Sesshoumaru perguntou, impaciente.

— O bebê vai nascer. – As palavras quase falharam em sair da garganta dele, e Sesshoumaru sentiu como se tivesse sido golpeado.

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Conforme eles a preparavam para entrar no centro cirúrgico, Rin sentia como se estivesse revivendo uma lembrança. O frio na barriga e o bolo no alto da garganta eram os mesmos que ela sentiu seis anos antes, quando estava entrando em uma sala de parto para ter Melissa. Só que dessa vez o medo era pior, pois ela sabia bem quão difícil as coisas seriam a partir daquele momento. Sabia que em poucos minutos veria um bebê pequeno e frágil sendo levado às pressas para os cuidados intensivos, sem que tivesse a chance de ter o primeiro contato físico com a mãe, sem que ela tivesse sequer a chance de vê-lo.

Rin sabia que viveria momentos de medo, esperando que os médicos dissessem que o bebê podia respirar. Depois viria a aflição de ver sua filha sendo levada para uma incubadora. Doía lembrar de quão pequena Melissa era quando nasceu, mas pior era imaginar como seria esse bebê que era três semanas mais prematuro. Ainda faltavam dois meses para que o tempo correto chegasse... por que isso estava acontecendo com ela de novo?

As lágrimas corriam livremente pelo rosto de Rin, alcançando o tecido frio da roupa hospitalar que haviam vestido nela. Sentou-se na cama e esperou até que a médica aplicasse o anestésico na base das suas costas. A dor fez com que ela apertasse o tecido do leito, e por um instante ela imaginou Sesshoumaru ao seu lado, segurando sua mão. A visão desapareceu em um instante, pois logo ela notou que estava completamente sozinha.

— Alguma notícia de Melissa? -- Rin perguntou.

A doutora Sue, que terminava de preparar-se para a cirurgia, se aproximou. – Ainda não. Mas tenho certeza que eles estão bem.

— Sesshoumaru não chegou, mesmo? -- Ela apertava os dedos de forma nervosa, fazendo com que os acessos venosos presos às costas das mãos se movessem.

— Eu pedi que eles deixassem Sesshoumaru entrar assim que ele chegasse. – A médica apertou os olhos, tentando demonstrar um sorriso com a única parte de seu rosto que não estava coberta. – Vamos começar agora, está bem?

Rin acenou positivamente. A falta de notícia deles era mais uma razão para a angústia que sentia em seu peito. Era como se estivesse prestes a perder tudo que mais amava: Melissa, Sesshoumaru e seu bebê. Ela perguntava o que tinha feito de tão ruim para ser castigada daquela forma.

Os minutos se passavam e tudo que ela ouvia era o murmúrio entre os médicos. Não havia sinal de Sesshoumaru ou nenhuma notícia de Melissa. Quanto mais o tempo avançava, mais a ansiedade crescia dentro de seu peito. Já fazia horas que tudo havia acontecido e ninguém havia sequer telefonado. Mesmo com o caos causado pela tempestade, a essa altura eles já deveriam ter entrado em contato de alguma forma – um telefone fixo, um orelhão, ou até mesmo voltado para o hospital.

Rin não sabia se era o óbvio ataque de pânico que a tomava, mas sua mente começou a fazer conexões sem sentido. Em seu estado, era óbvio que ninguém a informaria sobre qualquer acontecimento ruim. Se Melissa tivesse desaparecido para sempre, se Sesshoumaru tivesse se ferido na tempestade, ela ficaria sabendo? E se ela já tivesse perdido os dois? E se estivessem escondendo isso dela? E se ela nunca mais tivesse notícia de nenhum deles? Rin lembrava do poder destrutivo de um tornado, e de quantas pessoas tinham perdido a vida nas duas vezes em que a região foi varrida por um monstro daqueles.

Sentiu sua boca ficando seca. As mãos formigavam e seu coração disparou, batendo furiosamente contra as costelas. O monitor ao lado do leito começou a emitir um som repetitivo, indicando que algo não estava bem. A enfermeira começou a falar com Rin, mas ela não conseguia mais assimilar os acontecimentos ao redor. Sua mente foi ficando cansada, embora ela lutasse para manter-se de olhos abertos. No meio do caos da sala de cirurgia, sua visão foi ficando turva até que ela mergulhasse em um completo vazio.

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A chuva torrencial ainda caía lá fora, mas o som dos ventos havia diminuído. Quando o rugido da tempestade cessou, Melissa pareceu ter cedido. A carga de adrenalina no corpo da menina despencou e ela acabou adormecendo nos braços do pai. Já fazia mais de uma hora que eles estavam abrigados naquele cômodo minúsculo, e Sesshoumaru sentia que não podia ficar nem mais um minuto ali. Ele entregou cuidadosamente a filha para Kohako e foi até a porta dupla, empurrando para abrir.

Quando emergiu do chão, a sensação foi a de ter sido transportado para outro lugar. Nada mais indicava que eles estavam na fazenda de Rin. Tudo ao redor era o caos completo: pilhas e pilhas de vegetação, terra e pedaços das construções ao redor. A tempestade havia trazido a água do rio terreno acima, de forma que o que havia restado da casa estava, agora, sob um metro e meio de lama. A única coisa que restou do armazém era a estrutura que sustentava o telhado alto, mas não havia sequer sinal das paredes externas e do trigo que havia sido colhido ainda naquele dia. A tempestade havia varrido tudo.

A caminhonete foi carregada pelo vento até metros à frente e os vidros haviam quebrado. Sesshoumaru colocou a chave na ignição e percebeu que o motor ainda ligava. Assim que se certificou que era possível sair de lá, ele voltou para o abrigo para avisar aos outros. Os três entraram no carro. Sesshoumaru dirigia, Rebeca estava no passageiro e Kohako tinha Melissa no colo, no banco traseiro. Ele fazia o melhor para que a menina não se molhasse com a chuva, mas sem os vidros do carro e em meio a uma tempestade, aquela missão era difícil. Rebeca tirou a pashmina e estendeu sobre os braços de Kohako, cobrindo Melissa.

— O que você vai fazer comigo? -- Ela perguntou para Sesshoumaru.

Ele ficou em silêncio, encarando o cenário arrasado em volta da estrada. A verdade é que Sesshoumaru não tinha uma resposta para aquela pergunta. Sabia que Rebeca havia cometido um crime, e que ela precisava arcar com as consequências dos seus atos. Mas tudo que ele conseguia pensar agora era em correr para o hospital. Não queria perder tempo com aquilo.

— Eu não quero ser presa. – Rebeca implorou.

— Você sequestrou a menina. – Kohako a acusou entre os dentes.

— Eu não pensei no que estava fazendo. – Ela rebateu, olhando-o por cima do ombro.

— Você tem ideia do que teria acontecido se não tivéssemos chegado? -- Ele balançou o rosto, indignado. – Eu não ‘tô nem aí se você quer acabar com sua vida medíocre. Você quase causou a morte de Melissa.

— Não era minha intenção machucá-la. – Rebeca aumentou o tom de voz.

— Eu não me importo com nenhum de vocês. – Sesshoumaru se sobrepôs à discussão. – A única coisa que me importa agora é a minha mulher e minhas filhas.

O carro ficou em completo silêncio. Rebeca e Kohako remoíam a culpa pelos últimos acontecimentos. Embora ele estivesse na posição de acusar a ex-mulher, o remorso abrigado em seu peito não tinha alívio. As imagens de Rin desmoronando não saíam da sua mente, e ele não podia deixar de se perguntar qual era seu papel no que havia acontecido. Nunca se perdoaria se alguma coisa acontecesse com ela. Nunca se perdoaria se alguma coisa acontecesse com o bebê que ela esperava.

Quando já estavam perto de Lovebelt, Kohako conseguiu finalmente falar com Sango. Ao saber que Melissa estava a salvo, ela não segurou o choro.

Sango contou que Rin estava no centro cirúrgico e que já havia passado tempo demais, mas que não tinha nenhuma novidade sobre ela ou o bebê.

Sesshoumaru encostou o carro na porta da casa de fachada branca, em Lovebelt, percebendo que a tempestade não tinha feito grandes estragos – a não ser um dano bastante aparente no telhado. Pelo que notou da paisagem, o tornado havia poupado a área residencial da pequena cidade.

Assim que desceram do carro, Melissa acordou e imediatamente buscou o pai. A menina agarrou-se ao pescoço dele, chorando copiosamente. O peso dos últimos fatos parecia ter, finalmente, sido assimilado. Ele subiu com a filha para o segundo andar. Embora não pudesse aguentar ficar mais um minuto sem saber de Rin, Sesshoumaru precisava cuidar de Melissa. A menina estava assustada, exausta e com as roupas ensopadas pela chuva.

Rebeca encolheu-se em um canto da sala, sem saber bem o que fazer. Não sabia se podia abrir a porta e simplesmente partir, porque se sentiria uma fugitiva se fizesse isso. No fundo, também sabia que não podia voltar para Nova York, porque não podia sequer pensar em olhar para o rosto do próprio pai. Era como se, de repente, não tivesse mais lugar para si no mundo. Ela abraçou o próprio corpo, encarando o chão.

— Se tem tanta raiva de mim, por que me tirou da tempestade? -- Rebeca interrompeu o silêncio pesado, dirigindo-se a Kohako.

— Você não foi a única que saiu ferida dessa história. – Ele a olhava do outro lado da sala.

Os olhos azuis fixaram-se na figura alta e amargurada, que tinha o olhar trêmulo. Ela havia tentado assimilar quem era aquele homem e por que ele parecia travar um conflito silencioso com Sesshoumaru, ao mesmo tempo em que demonstrava amar Melissa a ponto de arriscar-se em um tornado para procurá-la.

— Eu e Sesshoumaru amamos a mesma mulher. – Ele explicou.

Então era ele o rapaz que havia assumido o papel de pai de Melissa nos anos em que Sesshoumaru se ausentou? Rebeca lembrava-se de ouvir falar daquele homem em conversas com o advogado, mas nunca havia realmente se interessado em saber qualquer coisa sobre a vida da mulher que tanto odiava.

— Então você sabe como eu me sinto. – Rebeca ergueu o queixo.

— Não é a mesma coisa. – Kohako rebateu. -- O ressentimento é algo que nos perturba dia e noite. Não é um sentimento que pode ser deixado de lado. Você olha para a pessoa e de repente toda a dor está de volta. – Ele travou os dentes, evidenciando a linha da mandíbula. – Mas o que fazemos com isso é nossa decisão.

Rebeca engoliu seco, sentindo a garganta arder. Aquele homem era completamente diferente de si, mas eles compartilhavam da mesma dor.

— É fácil para você dizer. – Ela expulsou o ar pelo nariz. – Você tem o amor da menina.

— Melissa é uma lembrança diária da vida que eu gostaria de ter vivido. – Kohako sentiu os olhos sendo preenchidos de lágrimas e segurou a respiração por um instante. -- Mas eu tive que seguir em frente.

Ela ficou em silêncio outra vez, sentindo os olhos ficando úmidos. – Como vou seguir em frente depois de tudo isso?

— Se você vai se safar das consequências do que fez ou não é Sesshoumaru quem vai decidir. – Ele passou por ela, saindo pela porta. – Mas se quer saber o que eu penso, dona... de uma forma ou outra pagamos pelo poder destrutivo do nosso ressentimento. Você já percebeu isso. – Kohako saiu pela porta, deixando Rebeca sozinha no cômodo.

Ela permitiu que as lágrimas escorressem pelo rosto, não precisando esconder mais. Assim que ouviu os passos de Sesshoumaru na escada, Rebeca virou-se de costas, enxugando as lágrimas.

— O que ainda está fazendo aqui? -- Ele perguntou.

— Eu... – A loira respirou fundo. – Estava esperando você decidir.

— Meu desejo é nunca mais vê-la, nem mesmo frente a um policial ou juiz. – Sesshoumaru disse, fazendo com que ela virasse os calcanhares para olhá-lo. – Nunca mais se aproxime da minha família. Que esta seja a última vez que eu tenho notícias suas ou do seu pai. – O tom sombrio fez com que ela se encolhesse entre os ombros.

Rebeca o olhou por mais alguns instantes e então abriu a porta, desaparecendo pela chuva.

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(Trilha sonora: All I Want – Kodaline)

Rin abriu os olhos, saindo do completo nada. Ela olhou em volta, mas não encontrou ninguém – nem mesmo Sango estava ali. O quarto estava parcialmente coberto pela escuridão do fim daquela tarde nublada, e os finos pingos da chuva ainda caíam sobre a paisagem. Embora ainda estivesse sob os efeitos da medicação, ela sentia dor. Parte era a dor física na região do abdome e parte era a dor em seu peito aflito. Os sedativos a deixavam mais confusa, mas ela não conseguia desligar-se da preocupação com o bebê. Não havia tido chance de vê-la, nem de saber se tudo havia ido bem. Também continuava sem notícias de Sesshoumaru e Melissa. Ela se mexeu, ouvindo o tintilar do acesso venoso e dos tubos do aparelho que levava oxigênio às suas narinas contra o metal da cama.

Sue entrou pela porta, acompanhada de uma enfermeira, que rapidamente foi checar os sinais de Rin.

— Onde ela está? -- Rin perguntou de imediato.

— Sua filha nasceu bem, e está na UTI neonatal. – A obstetra segurou os dedos gelados entre suas mãos, abrindo um sorriso consternado. – Melissa também está em casa.

Rin sentiu como se o punhal tivesse sido retirado do seu peito, permitindo que ela finalmente respirasse. Sua família estava a salvo. – E Sesshoumaru?

— Está vindo para cá. Sango foi ficar com Melissa. – A médica puxou um banquinho, sentando-se. Embora Rin estivesse aliviada, havia algo na postura de Sue que denunciava consternação.

— Tem certeza que está tudo bem com o bebê? -- Ela insistiu, lutando contra a sonolência que ainda a anestesiava.

— Sim, está. Ela é prematura, vai precisar de cuidados, mas está indo bem. – A médica fez uma pausa, olhando-a fixamente. – Tivemos uma complicação durante a cirurgia...

Os lábios de Sue se mexiam, mas Rin não conseguia ouvir. Ela tentava assimilar as palavras que a médica dizia e, embora ela estivesse se esforçando para traduzir os termos médicos para uma linguagem fácil, Rin parecia não entender. Ela absorvia o que estava sendo dito, mas seu cérebro havia desligado sua capacidade de assimilar – talvez para protegê-la do sofrimento que viria logo depois.

— Você compreende o que eu disse? -- Sue insistiu, torcendo as sobrancelhas.

— Eu posso vê-la? -- Rin a interrompeu.

A médica recuou, olhando-a de forma penosa. Pelas regras, ela não poderia dizer sim para aquele pedido, ainda por Rin ter passado por complicações, mas seria cruel não permitir que ela visse a filha depois de tudo que aconteceu. Sue acenou positivamente, pedindo que a enfermeira a preparasse.

Em uma cadeira de rodas e ainda carregando o oxigênio, Rin foi levada até o andar superior, onde ficava a UTI neonatal. Quando ela se aproximou da incubadora onde estava seu frágil e pequeno bebê, a sensação de dèja-vu se repetiu. Ela era, como esperado, menor que Melissa, mas estava coberta por todo aparato típico de um prematuro. O peito, da largura de uma palma, se estendia repetidamente, como se ela estivesse lutando ferrenhamente para viver. Rin colocou uma das mãos sobre o vidro, sentindo o material frio sob seus dedos.

— Posso pegá-la? -- Ela pediu, sentindo a voz falhar.

A enfermeira abriu a incubadora e tirou dali o bebê, carregando os acessos e tubos que permitiam que ela vivesse. Rin acomodou a filha na altura do peito, percebendo que era possível acolhê-la com apenas uma mão. Assim que o rosto do bebê encostou na pele do colo dela, Rin sentiu um choque passando pelo seu corpo. A sensação de ter gerado uma vida era algo inexplicável, ainda que a situação reservasse apreensão. Ela sabia que os próximos dias, semanas ou talvez meses seriam de muita aflição, mas sentia-se abençoada por ter sequer chegado ali.

All I want is nothing more to hear you knocking at my door

Sesshoumaru desceu do elevador, encarando o longo corredor claro que levava até a ala intensiva neonatal. Assim que ele saiu pela porta, a primeira coisa que seus olhos captaram foi Rin de costas, na última sala envidraçada. Depois de achar que perderia a mulher da sua vida, a sensação de vê-la ali foi como a de um longo reencontro. Antes que pudesse perceber, os passos o levaram até o fim do corredor. Outro choque veio quando ele percebeu que Rin amparava um pequeno bebê em seu colo. Ela era tão pequena, que poderia caber em uma caixa de sapatos, mas a fragilidade da aparência contrastava com a firmeza com que o bebê segurava o avental cirúrgico da mãe.

'Cause if I could see your face once more, I could die a happy man, I'm sure

Ele deu a volta na cadeira de rodas e agachou-se sobre os calcanhares, olhando para as duas. Assim que o viu, Rin sentiu que suas orações tinham sido respondidas. Sesshoumaru havia cumprido sua promessa de trazer Melissa para casa, e agora sua família estava completa outra vez. Seu lado racional pedia que ela o questionasse sobre Melissa, sobre o que havia acontecido, mas seu coração só conseguia focar naquele único instante, em que ela tinha todos os pedaços de sua vida de volta – ainda que fora de ordem.

Os dedos trêmulos dele tomaram a mão livre de Rin, levando-a até os lábios. A ardência em sua garganta e a angústia no peito não passaram, mas ele estava agradecido por tê-las ali.

But if you loved me why'd you leave me?

— Olivia, seu pai voltou para casa... – Ela sussurrou para o bebê.

Olivia, Sesshoumaru repetiu em sua mente. A sequência de acontecimentos não havia permitido sequer que eles discutissem o nome da filha, mas aquele era o melhor que ele poderia sequer ter imaginado. Olivia, a pequena Liv, era seu mais novo motivo para viver.

Take my body, take my body

Ele tinha se mantido firme até aquele momento, porque precisava trazer Melissa para casa e precisava voltar para Rin e para sua filha. Mas agora que nada mais estava sob seu controle, a sensação de angústia transformou-se em desamparo, e ele não conseguiu mais segurar o que seu peito retinha. Os dentes tintilaram quando ele travou a mandíbula, tentando conter um intenso e silencioso choro. Encostou o rosto sobre as costas da mão de Rin, segurando os dedos dela com uma das mãos e amparando o frágil corpo de Olivia com a outra.

All I want is and all I need is…

Ter recuperado o amor de Rin e Melissa tinha feito Sesshoumaru ser indulgente quanto aos próprios atos. Ele havia esquecido que algumas decisões erradas tinham consequências duradouras, e que o reparo desses erros nunca era algo trivial. Sequer podia dizer quão arrependido estava por não ter contado toda a verdade para Rin. Ela merecia saber. Rin havia sido capaz de perdoar sua ausência, havia o aceitado de volta depois de tantos anos, mas aquilo era diferente. Sesshoumaru considerou tirar Melissa da vida da mãe, considerou separar as duas.

To find somebody, I'll find somebody… Like you

Aquela decisão havia desencadeado uma sequência de eventos desastrosos, que quase o custaram tudo que ele tinha. Ainda que tivesse encontrado Melissa, e ainda que Rin e sua filha – Olivia – tivessem sobrevivido aos eventos conturbados daquele dia, Sesshoumaru se sentia responsável pelo sofrimento que tinha causado a todos. Vê-las ali era uma lembrança de que ele esteve a um pequeno passo de perder tudo que mais amava.

Oh, oh...

Rin puxou a mão dele, fazendo com que Sesshoumaru a olhasse. Ela se inclinou, dando abertura para que ele a beijasse – e assim ele o fez. As mãos delicadas dela puxaram o aparelho de oxigênio do rosto um pouco antes de os lábios dele se colarem nos dela de forma urgente e delicada. Sesshoumaru repetiu os beijos pela boca, rosto e testa dela, sentindo-se grato por ter a chance de estar com a mulher de sua vida. Em seguida ele inclinou-se e beijou o topo da cabeça de Olivia, aspirando o cheiro da pele da filha.

Rin entregou o bebê para ele de forma delicada, percebendo que a menina podia ser acomodada na palma da mão de Sesshoumaru. Ele segurou o corpinho frágil da filha entre os dedos e logo Olivia segurou a ponta do indicador do pai com firmeza, como se mostrasse a força que já tinha. O peito dele foi invadido com um amor puro, e o medo que sentiu ao ver a fragilidade de Olivia desapareceu. Ela era forte, ela iria superar aquela situação. Cada vez mais ele se convencia de que logo eles estariam em casa, e toda sua família seria completa outra vez.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.