Lives

Capítulo 1


Capítulo 1

Que porcaria que eu tinha na mente? Como pude ter me deixado levar daquela forma? Ela fez a minha cabeça e agora me vejo condenada a isso. Abandonei meus sonhos pensando em receber a felicidade e recompensa que me disseram. E onde está tudo agora?

Sentia-se indignada.

Trabalho horas por dia; preciso estar sempre à disposição. Faço hora extra e só tenho folga quando alguém resolve não ficar doente.

Ela bufou.

Agora sinto o que é carregar nas costas e mãos desejos alheios e a responsabilidade de uma vida.
Fui ingênua. Eu era uma criança!


Uma pausa. Ela pensou:

Não, não! Isso não é desculpa.

Já era humilhada regularmente para se auto humilhar agora.

Se pudesse voltar ao passado...

Em seus devaneios mais remotos, relembrava da ânsia de sentir entre seus dedos a textura da plaqueta de metal com o relevo escrito: Dra. Sarah Peterson.

Tola!

Foi preciso. E de trajar o cobiçado jaleco branco do Ronald Reagan UCLA Medical Center.
O primeiro dia não foi um dos melhores, e ela devia ter imaginado que os próximos também não seriam nada bons.

– Está meia hora atrasada!

Não me diga!


– Liguei várias vezes para o seu celular.

Por que acha que o deixei em casa?


Seguiu em frente sem dizer palavra. Andou pelo extenso corredor branco onde habitavam alguns SDE (Suma Da Emergência!) - pessoas que gostam de ter problemas de saúde. Parecia um passatempo para elas, mas para eles, os médicos, era um pé no saco de bosta. Peterson chegou a internar mais de cinco vezes o mesmo paciente em um ano.

E o chamado não era tardio:

– Dra. Sarah Peterson, Quarto 340... Dra. Sarah Peterson, Quarto 340...

Se arrastou para o elevador encontrando Sam, um colega.

– Está péssima!

Bem sincero.

Sarah concordou com a cabeça.

– É um STAT. – Disse ele.

– Droga!

– Quer que eu cuide?

– Faria mesmo isso por mim?

– Com certeza! Vá descansar.

– Muito obrigada, Sam.

O local era a sala dos médicos, preenchida por dois sofás com almofadas desbotadas, paredes brancas, uma TV presa no alto da parede e uma longa estante repleta de livros grossos de linguagem arcaica. Tudo amontoado num ambiente considerável amplo.
Usado principalmente por aqueles que ultrapassavam o horário estabelecido do hospital, ou então entre os intervalos das chamadas. Realmente era para quem fosse além do exausto.
Geralmente estava vazio, pois muitos optavam pelo trabalho extenso sem um breve cochilo. Mas dessa vez, Sarah Peterson não hesitaria.

Carl, também um colega e noivo de Cinthia, a qual mantinha uma amizade, parecia em sono, ou até em pesadelo com os olhos cerrados e as mãos comprimidas uma à outra, com força. Sarah caminhou até o sofá próximo, nas pontas dos pés, esperançosa por um cochilo. Mas antes que fechasse os olhos...

– Sarah?

Saco!

– Espero não ter te acordado, Carl.

– Não. Eu estava aqui pensando.

Inseguro. Metódico. Covarde.

Ah, ótimo! Todos na beira da loucura e ele aqui, pensando!


– Algo que te preocupa?

– Um pouco. Meu casamento com Cinthia.

Carl era mais conhecido no hospital como “Cd Arranhado” ou “Fala que eu te escuto”, que pelo seu trabalho. Ele falava apenas de problemas. Dos quase dois anos que exercia medicina em Los Angeles nunca ouvira algo de realmente interessante ou de positivo sair de sua boca.

Quero dormir!

– Algum problema?

É claro que sim!

– Não sei se uso gravata borboleta ou...

Foi interrompido pela súbita entrada de uma enfermeira afoita que avisou:

– Dr. Carl, precisam de você urgentemente no quarto da Sra. Turner.

Um sorriso aflorou-se na face de Sarah que disfarçou com uma breve tosse.

– Me parece um STAT, Carl. – Avisou Sarah.

– STAT? – Indagou a enfermeira.

Era uma novata.

– STAT vem do latim Statim. Imediatamente. – Respondeu. Voltou-se para Carl. – O que está esperando?

Graças a Deus!
Empertigou-se quando ele saiu, pondo uma almofada atrás da cabeça. E antes que se encerrassem seus devaneios, adormeceu.
A voz de Sam parecia socar seus ouvidos, mas o sono ainda tinha mais vigor. Tomou a ousadia de acomodá-la em seu ombro e acariciar seus cachos que lhe caíram na face.

– Tão bonita... - Murmurou. – Se você soubesse...

A luz de um dia firme e ensolarado atravessou as cortinas e clareou deixando morrer a penumbra sobre os cantos isolados do ambiente. Agora era possível enxergar o pó que saía dos livros.
Sam tentava endireitar-se entre as almofadas, o que a despertou. Para ele, ver aqueles olhos amendoados acordar era como se visse o mais belo nascer do dia, com o sol acanhado surgindo de um magnífico horizonte.
Sarah deu um leve bocejo e se espantou com a presença de Sam.

– N-não queria te acordar. - Ele tentou se explicar.

Ela avistava o céu limpo e a claridade que consumia todo o local.

– O que houve Sarah?

– Q-que horas são?

– Creio que umas 10:00m.

Levantou-se vestindo o jaleco branco rapidamente.

– Por que não me acordou?
– Eu... Eu...

– Meu expediente... Meus pacientes... - Ajeitava-se o mais ágil possível.

– Eu chequei todos. Estão ótimos.

Sarah parou por um instante ao fitá-lo.

– Trabalhou a madrugada inteira?

– Sim.

– Obrigada. Mas devia ter me acordado. Devo lhe retribuir. Deve estar exausto!

– Mas valeu à pena. Você está ótima!

– E você está péssimo!

Ambos riram.

– Agora preciso voltar ao meu posto. Meus pacientes devem estar se queixando por minha falta.

– Apenas a Macabra, SDS. Sabe como ela é.

– Se sei... Só Deus Sabe.

Macabra era como chamavam a Sra. Potterman arrogante e um ultraje de irritante. Queria sempre atenção, e nunca encontravam os motivos de suas dores nas costas, por isso, Só Deus Sabe.

– Bem, já que quer me retribuir... O que acha de um jantar essa noite no Atlantas?

– Gosta de frutos do mar, é?

– Espero que goste também!

– Muito.

– Às sete?

– Às sete.

Antes de iniciar sua manhã de quarto em quarto, reclamações de dores, choro e agulhas, Sarah Peterson precisava ao menos sentir a água tocar-lhe rosto.

Olhou-se no espelho e tentou um sorriso... frouxo... Lavou o rosto e se deu novamente com o espelho. Fitava-se e remexia no cabelo e para encontrar um novo penteado; enjoada da rotina de soltos e divididos ao meio.

Procurava naquela face um vestígio de vaidade. Não tinha tempo para isso. Nem sabia mais como usar um delineador e nem como era a textura de um batom. Carregava sempre na bolsa um brilho labial. Inútil. Não usava. Já estava esquecido no fundo da bolsa preta.

Mas sentia a vontade de avivar um pouco, e amarrou os fios pondo-os para trás num rabo de cavalo. Deu um sorriso. Estamos indo.

Vasculhou a bolsa e no fundo ao canto encontrou o esquecido brilho. Contornou-os nos lábios e tentou mais uma vez. Os olhos brilharam. Bem melhor!

Sentiu enquanto andava pelos corredores os olhares que lhe batiam. Acanhou-se, mas se achou bonita. Devia ser a primeira vez. Seguiu para o elevador.

– Olá Carl.

– Ah, oi. – Respondeu desanimado. Olhou-a. - Está diferente! – Confessou.

– Isso é mal?

– Está mais bonita!

Algo positivo.

– Obrigada. Fim de turno?

– Graças ao bom Deus!

– Sorte sua. Meu dia só está começando.

Hora do almoço. Sarah se aproximava com uma bandeja em mãos à mesa de Kinsey e Honey. Antes que se sentasse deu-se conta do bate-papo na mesa.

– São todos uns bandos de idiotas! – Exclamou Honey. – Boa tarde, Sarah. – Levou uma colher de algo verde à boca. - Sopa de ervilha? – Ofereceu.

Sarah e Kinsey se entreolharam.

– Aproveite-o você, deve estar ótimo.

– Pode apostar que sim!

Kinsey tornou a se dirigir à Sarah.

– Humm... Gostei de seu cabelo assim! Algum namorado? – Indagou invasiva, como de seu costume.

– Quero estar à quilômetros de distância dessa possibilidade.

– Está precisando de uma noite daquelas para aliviar seu estresse.

Honey assentiu.

– Estavam agora mesmo reclamando deles. – Sarah relembrou-as. - Não as entendo! – Deu uma mordida no sanduíche de tomate. Engoliu. – Não vou perder tempo chorando por eles. Tenho mais o que fazer!

Honey tentou explicar.

– Queremos dizer sem compromisso, entende? E falávamos desses daqui do hospital. Eles pensam que somos objetos!

– Verdade. – Kinsey tomou a palavra. – Lembra-se naquele dia na cirurgia do Dr. Crower? Jogavam péssimas indiretas em nós. Começaram falando de futebol, e logo vieram com aquelas piadinhas. Me dá vontade de sufocar o Brad.

Honey e Sarah riram da encenação do sufocamento de Brad.

– O que acha de Sam, Sarah?

– Somos amigos, Honey.

– Mas não é apenas isso o que ele quer.

– Então o problema não é meu!

– Se percebesse as viradas de pescoço dele... – Kinsey riu em seguida.

– Podem dar um tempo? E hoje ele foi muito gentil em me convidar para jantar. Somente troca de favores.

– Sei... E ainda somos nós as mentirosas, viu Kinsey? – Honey voltou-se para Sarah. – E você vai?

– Se eu sobreviver até às sete, vou.

– Dra. Sarah Peterson, Emergência... Dra. Sarah Peterson, Emergência... STAT.

Droga!


– Boa sorte, Sarah. – Desejou Kinsey. – Espero que não seja aqueles acidentados de automóveis ou em ataque cardíaco.

Também espero!

– Não posso nem ter meu horário de almoço! Isso é um absurdo! – Protestou ao levantar-se. Respirou fundo. – Oh, vida! Lá vou eu novamente. Nós médicos somos quem precisamos de médicos!

– Dra. Sarah Peterson, Emergência... Dra. Sarah Peterson, Emergência... STAT.

Já estou indo, já estou indo.