I don’t like to live alone,

Along the avenue.

I can’t go back to being straight,

I seem to get on you.

— Is It Day or Night?; The Runaways

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Joan Jett

Olhando-se no espelho sujo de seu banheiro, sem estar usando a maquiagem escura ou o penteado rebelde de sempre, tudo o que ela conseguia pensar era: Talvez eu seja mesmo a estúpida Joan Larkin.

Sentiu uma onda de irritação, o que vinha acontecendo com frequência nos últimos dias, e agarrou o frasco de Valium que estava sobre a pia. Sempre gostara de tomar o tranquilizante antes de shows, mas agora já estava tendo de apelar pelo recurso para lidar com problemas do dia a dia. Estava se tornando cada vez mais dependente daquelas bostas, como Cherie.

Fez uma careta. Sabia muito bem que pensar em Cherie Currie era um erro – só servia para piorar o seu humor.

Ela enfiou o comprimido na boca e o engoliu com a ajuda da água da torneira. Aquela maldita música não saia de sua cabeça havia dias. Hello, daddy. Hello, mom. I’m your ch ch ch ch ch ch cherry bomb.

— Olá, mundo, eu sou a sua garota selvagem – sussurrou para o seu reflexo, e sentiu certo alívio ao pensar que aquela música tinha sido, enfim, sido aposentada.

Um dia depois da sessão de fotos em que Cherie cortara todos os laços com as Runaways, as meninas restantes tiveram uma reunião com Kim. Ela era a terceira garota a deixar a banda – a primeira fora Micki Steele, baixista, ainda na época em que havia apenas três meninas no grupo: ela, Joan e Sandy. Então, Cherie, Lita e Jackie apareceram, e assim a banda seguiu por dois anos, até que Jackie Fox também as deixou. Como dizia Lita, era como se a posição de baixista estivesse amaldiçoada.

Mas elas conseguiram Vicki, e as coisas pareciam até que estáveis quando Cherie saiu. E isso abalou de vez a estrutura da banda.

Era diferente perder uma baixista e perder a vocalista. Essa situação não podia ser resolvida simplesmente fazendo testes e marcando uma sessão fotográfica para oficializar a nova formação. Afinal, era em Cherie que todos pensavam quando se referiam às Runaways: sobre o palco, segurando um microfone, usando seu emblemático espartilho branco e fazendo poses sensuais. Era a voz e o rosto de Cherie que todos conheciam, o nome dela que gritavam nos shows.

E apesar de tudo, a banda era de Joan. Fora ela que a criara, correra atrás do produtor e das outras integrantes, ela que compunha a maior parte das músicas...

(Embora tivesse quase se matado por overdose de calmantes no dia em que Cherie saiu, no dia seguinte ela chegou a reunião com o ar decidido de sempre, falando:

— Não fiquem animadinhas achando que vão ficar livres. A banda ainda está de pé.

Sandy estivera tão preocupada com o possível fim das Runaways que seu rosto estava branco como papel, mas, ao ouvir isso, sorriu abertamente. E riu. E disse:

— Eu te amo tanto, Joanie.

Com isso, Joan também conseguiu sorrir um pouco.

— É bom mesmo. Porque ainda vai ter de me aturar por muito tempo.)

Também era ela que não media esforços para manter todas juntas. Elas eram garotas com personalidades fortes e distintas, e quase nunca dispostas a ceder. Joan tinha perdido as contas de quantas vezes formulou discursos inteiros em sua cabeça e não os disse, para não piorar as confusões. A banda contava com ela como um ponto de estabilidade.

Só que ela não era a porra de uma pessoa estável o tempo inteiro, e a pressão estava começando a ser sufocante.

(Kim achava que as Runaways estavam fadadas ao fracasso sem Cherie. Ele não disse em voz alta, mas todas puderam perceber, durante a reunião. Chegou até a sugerir que eles procurassem outra loira que tivesse o mesmo apelo sensual e cantasse bem, e pudesse ficar no lugar dela.

— De jeito nenhum – foi a resposta imediata de Lita. – Se fosse para trocar uma Cherie por outra, ficaríamos com a antiga, mesmo.

— E o que vocês pretendem fazer sem ela? Uma banda só de instrumental? – Kim falou no tom que usaria com uma criança retardada.

— Joan pode cantar – disse Sandy, e todos pararam de falar e a encararam. – O que foi? Todo mundo concorda que ela faz uma segunda voz excelente. Com certeza também consegue ser a cantora principal.)

— Sou Joan Jett, vocalista e guitarrista da banda The Runaways – continuou dizendo para o espelho, como se quisesse se convencer da ideia.

(Tinha se sentido tão incerta. Não sabia se podia fazer aquilo, por mais que as outras garotas tivessem gostado da ideia. Nunca planejara cantar.

— Não vou usar corpetes ou cintas-liga no palco – disse, já que não tinha certeza de como reagir e todos estavam esperando uma resposta.

— Melhor ainda – rebateu Lita. – Vamos ter uma pessoa razoável como vocalista.

— Eu também achei uma boa ideia – Vicki falou.

— Podemos te ajudar a escolher as músicas que Cherie cantou e que você poderia cantar também – Sandy ofereceu.

Joan olhou para Kim, e viu nos olhos dele que ele tinha achado aquela uma péssima ideia. Que ele achava que ela não conseguiria. E foi fundamentalmente por isso que ela acabou concordando.)

Cherry Bomb foi a primeira canção vetada por elas. Era o maior hit delas, mas fora criado para Cherie – então, convinha que fosse embora junto com ela.

Das músicas antigas, as Runaways decidiram continuar com Queens Of Noise; C’mon; American Nights; California Paradise. E não muito além disso. Até mesmo o antigo estilo fora discutido.

(- Não tocamos para nos acharem bonitinhas — pontuou Lita. – Trabalhamos com música, não com aparência.)

Nas duas semanas que tinham se passado desde essa reunião, elas tinham se encontrado diariamente. Ensaiado muito. Debatido bastante. Um sentimento que elas há tempos não sentiam havia se instalado na banda: união. Sabiam que teriam uma batalha pela frente, tentando se fixar em um novo estilo, e nenhuma delas queria estar sozinha. Teriam também de reconquistar os fãs, que não tinham aceitado bem a notícia da saída de Cherie. Mesmo a gravadora da banda, a Mercury Records, estava relutante em gravar o novo álbum, agora que tudo havia mudado. Kim estava distante, e não havia mais apoio.

Tudo que elas tinham no momento era uma a outra.

Joan pegou seu delineador preto e começou a trabalhar em uma maquiagem, esperando que a toda a sua insegurança sumisse por trás dela. Já começava a se sentir um pouco mais calma, graças ao efeito da droga, mas precisava de mais do que aquilo. Precisava de ar. Precisava de um tempo.

Ajeitou o cabelo e saiu do banheiro. A única janela que ela tinha aberto naquele dia era a da sala, e o céu lá fora mostrava que já era quase noite, de forma que o apartamento estava mergulhado na escuridão. E Joan não se preocupou em acender nenhuma luz – apenas pegou a sua jaqueta de couro preta, que estava largada sobre o sofá, e foi para fora de casa.

Naquele dia, ela tinha chegado do ensaio pouco depois das 16h, e deitara-se no sofá com o caderno na qual anotava as músicas que compunha, esperando por um pouco de criatividade. Fazia isso todos os dias, mas fazia semanas que não escrevia uma palavra. Estava com a mente cheia de outras coisas, e apenas não conseguia se desligar e deixar os pensamentos fluírem.

Acabara pegando no sono com o caderno sobre o rosto, e fora direto para o banheiro ao acordar. E, enquanto andava pela rua, ainda sentia-se perdida; mal sabia que horas eram.

Deixou suas pernas a guiarem, sem prestar atenção para onde estava indo. Com as mãos no bolso, passou por lojas, casas e prédios conhecidos, até por fim parar em frente a uma padaria, quase dez minutos depois. Se ia continuar a caminhada sem sentido, que pelo menos tivesse alguns cigarros para se distrair.

Estava acostumada a comprar bebidas e cigarros em barzinhos de esquina, onde ninguém se preocupava muito com quem você era ou com quantos anos tinha, mas, daquela vez, não estava dando a mínima. Entrou na padaria, passou pelas mesinhas onde alguns idosos tomavam café e liam o jornal, ignorou os pães e os doces em exposição e chegou ao caixa bufando. Vinha desenvolvendo um profundo desgosto por lugares muito arrumados e limpos. Era tudo muito artificial. Não tinha nada a ver com o mundo real.

Um adolescente estava na função de caixa, e não parecia muito interessado no trabalho. Estava jogado em sua cadeira, com o uniforme da padaria desalinhado e preenchendo um jogo de palavras cruzadas com ar de tédio completo. Quando Joan parou em frente a ele, o garoto demorou a erguer os olhos para ela – mas, quando o fez, seus olhos se arregalaram no mesmo instante.

Joan já sabia o que vinha a seguir, então tentou fazer o pedido rápido para poder sair sem incômodos:

— Oi. Me vê aí um maço de cigarros. Pode ser qualquer um – mas, então, ela se lembrou de que não tinha trazido dinheiro consigo. O máximo que tinha eram uns trocados, jogados no bolso da jaqueta. – Aliás, me dá o mais barato que tiver.

Ele continuou olhando para ela, deslumbrado, por vários segundos, antes de pigarrear e tentar recuperar a pose.

— Você... Identidade, por favor.

Ela sempre esquecia sua identidade verdadeira em casa, mas nunca deixava a falsa para trás – e era exatamente dessa que precisava. Mexeu em alguns bolsos até encontrá-la, e praticamente jogou-a sobre o caixa. O garoto a examinou por um longo tempo antes de dar um sorriso ansioso, numa falha tentativa de parecer descolado e despreocupado, e comentar:

— Eu não sabia que o seu nome verdadeiro era Janis, Joan Jett.

Merda.

Eram nesses momentos que ela desejava não ser famosa e poder entrar em um estabelecimento com uma identidade qualquer, que a apresentava como uma mulher de vinte e um anos, que tinha um nome que Joan tinha escolhido em homenagem à Janis Joplin – um de seus ídolos do rock. Ela suspirou.

— Cara – disse -, só me dá logo a merda dos cigarros, vai.

— Eu posso fazer isso. Se... – E discretamente deslizou sua revista de palavras cruzadas e a caneta pelo balcão, até ela. Joan as pegou, franzindo os lábios.

— Qual é o seu nome?

— Dayton. Fã número um das Runaways. Principalmente da Cherie, mas você também é linda.

— A Cherie não está mais na banda – retrucou, duramente, e sua mão tremeu enquanto escrevia “Um abraço para o meu amigo Dayton, em nome de todas as Runaways. Joan Jett”. Então, deu uma olhada nas palavras cruzadas, e logo viu uma que sabia: Banda formada em 1960 em Liverpool, com sete letras. Escreveu “BEATLES” no espaço em branco e a devolveu para Dayton. – Agora, os cigarros.

Ele agarrou uma caixa que estava perto de sua mão e entregou para ela. Joan pegou as moedas de seu bolso e lançou-as para ele.

— Quanto custa o isqueiro?

— Um dólar.

Ela não tinha esse dinheiro.

— Vou levar só os cigarros, mesmo – concluiu, pegando sua identidade falsa de volta e saindo daquele lugar.

Continuou a andar, mas agora não estava mais sem rumo. Na época em que o English Disco ainda estava aberto e Joan ia para lá sempre que podia, ela tinha conhecido muitas pessoas, e sabia o ponto em que algumas delas se encontravam agora, perto da praia. Não era muito longe de lá.

No caminho, ela foi pensando no English Disco. Lembrou-se daquela fatídica sexta-feira em que ela estava indo para lá e encontrou o corpo de um adolescente morto jogado bem na entrada, com os olhos abertos e uma seringa ainda espetada no braço. Lembrou-se de como seu estômago tinha se revirado e de como ela tinha olhado em volta, esperando que alguém fosse fazer alguma coisa, mas todos os jovens apenas continuaram a entrar e a sair da boate, conversando e rindo, como se nem ao menos pudessem vê-lo. E ela também nada fizera – tendo perdido a vontade de ficar lá, somente virara as costas e voltara para sua casa. E voltou para a boate no dia seguinte.

A verdade era que ela frequentemente sentia falta do local. Joan fora a diversas outras boates após seu fechamento, e nenhuma delas passava exatamente a mesma atmosfera do English Disco.

— Joan! – Berrou uma voz feminina conhecida, quando ela se aproximou da praia. A menina de cabelos lisos que estava sentada em um muro acenou para ela.

O grupo era composto por quase vinte jovens, que estavam bebendo, fumando e conversando. Não ficariam lá a noite inteira – quando fosse um pouco mais tarde, todos iriam para alguma festa ou alguma casa noturna, mesmo que muitos deles já estivessem bêbados.

Joan foi até eles devagar, como se sequer estivesse pretendendo ir para lá antes. Dois garotos começaram a cantar Cherry Bomb a plenos pulmões quando ela passou por eles e, enquanto lhes mostrava o dedo do meio, ela se perguntou se algum dia alguém pensaria nela ou na banda dela sem se lembrar dessa música.

Sentou-se no muro ao lado da garota, que ela achava se chamar Laurie. Ela tomava tequila de uma garrafa já quase pela metade e tinha o rosto corado pelo álcool, e se apoiou no ombro de Joan como se pudesse cair a qualquer segundo.

— Faz tempo que você não aparece, Joanie – disse, e ela assentiu. Fazia mesmo mais de um mês que eles não se viam.

— Estive ocupada. Tem um isqueiro? – Perguntou, tirando os cigarros do bolso.

A garota negou com a cabeça e riu.

— Me dá um cigarro – pediu.

— Só se você me der um pouco dessa tequila.

Ela entregou a garrafa para ela, e Joan lhe deu um cigarro em troca. Então, Laurie saltou do muro e correu para conseguir um isqueiro com alguém, enquanto ela virava um grande gole na bebida. Quase engasgou. Estava quente.

Ainda assim, bebeu um pouco mais. Queria ficar alterada e poder rir sem motivos, como os outros. Mal se lembrava de como era dar risada.

A outra voltou trazendo o cigarro aceso na boca, e pegou a garrafa de volta.

— Você trouxe o isqueiro para mim? – Joan perguntou, mesmo já sabendo a resposta, e ela negou, mas pegou outro cigarro do maço e o acendeu usando o fogo do seu próprio, antes de entregá-lo para Joan. Ela agradeceu brevemente e o colocou na boca.

— Por que você está tão chateada? – Perguntou Laurie, depois de um tempo em que elas apenas fumaram em silêncio.

— Eu não estou.

— Está, sim.

— Estou cansada. Tenho ensaiado muito.

— Eu amo a sua banda. Se um dia vocês forem fazer testes de novo, me chame – e bebeu mais da tequila. Joan concordou, mas não pretendia fazer isso de verdade. Não queria nem imaginar o que seria delas se outra garota saísse da banda.

Um adolescente com quem Joan já tinha conversado uma ou duas vezes foi até elas naquela hora, também fumando, para chamá-las para uma festa que aconteceria na casa de um amigo dele e estaria começando em pouco tempo. Laurie aceitou na hora, e ela ia recusar, mas mudou de ideia antes de dizer isso em voz alta.

Um pouco de diversão podia ser uma boa ideia. Por uma noite, seria bom não ter preocupações.

Ela anuiu, pegando a garrafa de tequila da mão de Laurie para beber mais um pouco.