O mundo parecia estar coberto por um manto de surrealidade, naquela manhã quando Tatsuki conseguiu abrir seus olhos. A princípio, mal podia ver alguma coisa que fosse, a forte claridade machucava seus olhos e até mesmo pensar era doloroso àquele ponto. Mas, eventualmente sua persistência e teimosia se fizeram valer.

Sentia-se atordoada e... fraca. Era necessário um esforço inimaginável para tentar mover algum de seus membros. Não conseguia entender aquela situação e a confusão ateava o desespero em seu coração. O que estava acontecendo? Olhou ao seu redor. Podia notar os aparelhos ligados, as paredes brancas e a TV muda. O suporte com uma bolsa de sangue e uma outra de soro, deixavam ainda mais claro: Estava num hospital.

Voltou a tentar se mover. O que estava acontecendo? Como terminara ali? Seus pensamentos estavam caóticos, nada mais fazia sentido. O som agudo do monitor cardíaco denunciava seus batimentos acelerados. A forma repentina como a porta fora escancarada, lhe surpreendeu, até que pudesse ver quem o fizera.

—Tatsuki! – Sua mãe correu em sua direção, lhe abraçando de forma forte e calorosa enquanto a enfermeira vinha logo atrás, afim de checar o que estava acontecendo.

—M-mãe...? – A rouquidão de sua voz denunciava o quanto tempo deveria ter estado em silêncio. – O que... – Limpou a garganta, antes de continuar. Não tinha certeza se queria realmente saber. – O que aconteceu? – Sua mãe afastou-se, alguns instantes de silêncio depois.

—Bom, acreditamos que você se machucou desmaiou enquanto tentava escapar do incêndio, querida. – O tom de preocupação em sua voz se manteve. – Foi um milagre que os bombeiros a tenham encontrado com vida! – Seus olhos marejados lhe observavam como se tentassem confirmar que de fato, ela estava bem.

—Incêndio...? – Sua mente continuava em caos, agora. Mas aos poucos, as lembranças pareciam querer voltar.

Sim... lembrava-se de estar numa espécie de baile de máscaras. Havia uma sensação ruim quanto a isso... Uma angústia. O olhar antipático de Ulquiorra... Estava muito preocupada com Orihime... E então, caos. Como se sua própria mente a tentasse proteger, evitando que tivesse acesso àquelas memórias... Mas, precisava saber. Lembrava-se da confiança no rosto de Ichigo... Ele queria que ela ajudasse a tirar seus amigos daquele lugar... Seus amigos...

A dor esmagadora em seu peito lhe deixou sem ar, de repente. Sentia como se tivesse sido levada de volta àquela noite, àquele momento específico. A expressão no rosto de Keigo... Um pavor tão profundo, que ficaria para sempre marcado em sua mente... O som ensurdecedor... o crepitar de seu pescoço... a sensação perfurante rasgando a pele do seu próprio...

Não podia se controlar. Seu corpo tremia de forma frenética. O ar não parecia conseguir alcançar seus pulmões, não demorou para sentir-se ainda mais atordoada do que já sentia antes. Apesar de sua visão já quase escurecer, pôde ver o médico adentrar o quarto, enquanto a enfermeira afastava sua, agora ainda mais preocupada, mãe.

Não podia saber ao certo, quanto tempo se passara depois que ficara inconsciente mais uma vez, mas a ausência da luz natural lhe denunciava que haviam se passado pelo menos algumas horas. Sentada na poltrona perto de sua cama, sua mãe parecia prestes a cochilar quando então, a viu despertar.

—Querida! Você está bem? – Sua voz carregava uma exaustão de alguém que não dormia há algum tempo. Tatsuki inspirou o ar lenta e profundamente, talvez só para confirmar para si mesma de que podia fazê-lo. Não podia perder o controle uma outra vez, mas precisava perguntar... precisava saber.

—Mãe... o que aconteceu com os outros...? – Respirou fundo uma outra vez, enquanto via os olhos da outra marejarem. – O que aconteceu com meus amigos? – Reforçou a pergunta, obrigando sua voz a desentalar de sua garganta.

—Bom... – Foi então sua vez de suspirar. – As garotas estão bem, assim como o Kojima-san...O Kurosaki-san, aparentemente deixou um recado para o pai e está seguro também... –Ao menos por um instante, pôde sentir seu peito se acalmar um pouco, em saber que os outros conseguiram escapar, mas isso também se foi no momento seguinte. Quando a sentiu segurar sua mão, Tatsuki já sabia o que estava por vir. – Querida... algo aconteceu. – Podia ver que ela agora procurava a melhor forma de lhe entregar aquela notícia. Era justo, afinal de contas, Tatsuki nem ao menos tinha certeza se estava pronta para ouvir aquilo vindo de alguma outra pessoa. – Quando os bombeiros chegaram ao local, durante a investigação dentro do que sobrou da mansão, onde eles lhe encontraram... – Mais uma vez, apertou sua mão, lhe mostrando apoio, ou talvez gratidão por estar viva. – Também encontraram o... – Deteve-se por um instante, limpando a garganta e tentando enxugar com a outra mão, a lágrima que já descia por seu rosto. – Encontraram o corpo de seu amigo... Asano-san...

Aquela não era uma nova informação. Tatsuki sabia, sabia de antemão o que havia acontecido com Keigo. Mesmo assim, ter aquela confirmação parecia tornar tudo ainda mais real. Não conseguia mais segurar o próprio choro, principalmente quando sua mãe lhe abraçou. Sentiu-se despencar.

Deviam ter se passado alguns minutos daquele jeito, enquanto tentava lidar com aquela sensação que lhe parecia querer destruir, até que se lembrou de uma outra coisa sobre a qual precisava saber. Afastou-se do abraço que lhe acomodava e preparou-se. Não tinha certeza se conseguiria lidar com uma resposta ruim para aquela pergunta, ainda assim, precisava fazê-la.

—Mãe... – Sua voz não era mais que um sussurro agora. – E quanto a Orihime? – Podia se sentir tremulante uma outra vez, e nauseada com a expectativa da resposta. – O que aconteceu com ela...? – Preparava-se para o que estivesse por vir, mas o semblante confuso de sua mãe lhe pegara desprevenida. O que poderia ser agora?

—A Inoue-chan? – Tatsuki confirmou, tensa, já não sabia o que mais esperar àquela altura. – Meu bem, ela não estava lá...

***

O silêncio agora era ensurdecedor. A noite já havia caído, cobrindo todo o quarto em uma penumbra lutuosa que certamente combinava com a forma como Orihime se sentia. Não sabia ao certo, quanto tempo havia se passado, estando naquela posição: deitada em sua cama, observando o teto de seu quarto como se de alguma forma, uma resposta, uma solução, pudesse vir de lá.

Sua garganta estava seca. Não havia bebido água alguma desde que acordara naquela manhã, muito menos comido algo, mas ao menos a fome não era um problema agora. Deixou que o ar preenchesse seus pulmões, e o soltou pacientemente. Precisava se levantar, precisava reagir. Ter se mantido daquela forma por tanto tempo, cobrava seu preço enquanto ela tentava se mexer para sentar-se na cama. Mas o fez, mesmo assim.

Olhou ao seu redor por um tempo. Havia algumas semanas desde que dormira em sua própria cama pela última vez. Tempo o suficiente para lhe causar aquela estranheza cravada em seus ossos, mas ela sabia que não era apenas isso. Só preferia não pensar no assunto. Não se permitiria.

Levantou-se. A tontura quase a levou ao chão, imediatamente. Apoiou-se em sua estante por alguns instantes, fechando seus olhos e tentando firmar-se melhor no chão. Seguiu com dificuldade, segurando-se nos móveis ou contra as paredes até alcançar a cozinha. Percebeu com certa angústia, que a escuridão havia também engolido os outros cômodos de seu apartamento. Sentia-se como um fantasma arrastando-se pelo breu.

O copo tremia em sua mão enquanto o preenchia com água. A sensação de matar sua sede era renovadora, seu corpo realmente precisava daquilo. Depois de beber mais um pouco, sentia-se um pouco mais firme, ao menos o suficiente para acender as luzes e olhar mais atentamente ao seu redor, confirmando que não havia nada à espreita. Tudo parecia o mesmo de antes, com exceção do tapete de sua sala, que já não estava em lugar algum. De certa forma, preferia não saber o que havia acontecido a ele.

Rumou em direção ao banheiro, havia ali uma outra coisa da qual muito precisava, um banho. Seu coração parou em espanto por um instante, quando teve um vislumbre de si mesma no espelho. Seus cabelos desgrenhados cheiravam a fumaça e estavam grudados com sangue, a maquiagem leve que usava antes, havia se derretido e piorado ainda mais seu aspecto fantasmagórico causado pelo cansaço. Não. Não queria, não podia pensar sobre aquilo.

Mergulhou seu corpo na banheira quente, tão logo a encheu. Era uma boa sensação de limpeza e purificação, e era sobre isso que preferia pensar, mas bastou que fechasse seus olhos por um único instante, para que tudo voltasse à tona. Todo o pavor que sentira, todo aquele sangue, toda aquela mágoa... Os olhos esmeralda, desesperadamente tentando conectar-se aos seus...

“-Eu sinto muito.” - Lembrava de tê-lo ouvido tentar desculpar-se, mas àquele ponto, já havia lhe voltado as costas. Não conseguia continuar vendo-o sem associá-lo com tudo o que havia acontecido, com todo aquele terror e morte, toda aquela dor. Depois disso, tudo se fez em silêncio. Não sabia ao certo em que momento ele havia saído, ou sequer quando estaria de volta, mas sabia que cedo ou tarde precisariam ter aquela conversa.

Abraçou a si mesma, e permaneceu daquela forma, em silêncio pelo resto de seu banho. Quando, enfim voltou à sua cama, podia sentir o cansaço em seus ossos. Mesmo assim, conseguir dormir de fato, não era tão simples. Além da angústia por tudo o que havia acontecido, já não dormia sozinha haviam semanas.

Era estranho pensar sobre isso, agora. Como era possível se sentir tão protegida, tão segura nos braços dele? Sabendo agora sobre sua real natureza, parecia que tudo aquilo que haviam vivido não passava de uma fantasia... Ainda assim, não conseguia deixar de pensar na sensação de estar deitada em seu peito, sentindo-o respirar de forma tão serena.

Sentiu uma lágrima derramar-se por seus olhos fechados, enquanto insistia em adormecer de qualquer forma. Algum tempo deveria ter se passado desde então, até que enfim, sentiu uma paz apoderar-se de seu coração instantes antes de finalmente mergulhar num sono febril de um conforto familiar.

Despertara, lentamente enquanto os primeiros raios da manhã adentraram pelas frestas da cortina de sua janela. Não esperava que conseguisse dormir tanto naquela noite, mas o descanso era bem-vindo. Não conseguia se lembrar com o que sonhara, mas a sensação calorosa permanecia à medida em que abria seus olhos. Uma parte de si, esperava ver um vislumbre de sua silhueta, acomodado ao seu lado, como havia acontecido tantas manhãs antes.

Mas não desta vez. Estava sozinha, mas havia aquela sensação que permanecia. Demorou um pouco, mas, uma vez que seus olhos estavam de fato despertos da sonolência, pôde ver, delicadamente ao lado de seu travesseiro, uma carta acompanhada de uma pequena flor azul. “Não-Me-Esqueças”. Como aquela de tanto tempo atrás. De certa forma sabia o que aquilo significava, antes mesmo de ler.

Seu coração estava acelerado quando a pegou em suas mãos e prosseguiu observando o envelope. Havia um nó em sua garganta, agora. Respirou fundo e engoliu seco, antes de abri-la.

“Meu amor,

Sei que já disse muitas vezes,

mas não posso pensar em algo para

lhe dizer além de “sinto muito”.

As coisas não deviam ter acontecido

desta forma. Eu gostaria de tê-la

mantido segura, gostaria de poder

ter sido honesto desde o princípio...

Talvez, agora você até pense que

teria sido melhor que não houvesse

início algum... E neste caso, eu

não poderia culpa-la.

Talvez, eu devesse simplesmente

tê-la deixado ir, naquele dia chuvoso

em que nossos caminhos se cruzaram

mais uma de tantas vezes e você

aceitou ser minha...

Mesmo assim, não posso fingir

que os meses que passamos juntos

não foram os melhores que já tive...

Você me deu algo que achei que sequer

existia... Você me mostrou amor...

Me mostrou que alguém como eu

era também capaz de amar...

Por favor, não duvide jamais do

amor que sinto por você... Em meio

à todas essas mentiras, em meio a

todos esses segredos... Ele sempre foi

e sempre será real...

Você continua sendo meu coração.

Agora, devo quebrar com minha promessa,

ainda que isso esteja me dilacerando...

Devo partir... Já não posso continuar

sendo tão egoísta com você, à ponto de

permanecer ao seu lado...

Sei, agora que você estará muito mais

segura longe de mim, então que assim

seja...

Espero que um dia possa me perdoar...

Nunca a esquecerei...

Eternamente seu,

Ulquiorra.”

Somente quando começaram a derramar-se sobre o papel delicado da carta, Orihime percebeu que estava em prantos. Seu coração parecia ter sido arrancado de seu peito, e já não conseguia respirar. Viu-se levantar da cama em desespero e correr até a porta da frente de sua casa, como se de alguma forma, esperasse poder alcança-lo. A neve em contato com seus pés descalços machucava como lâminas afiadas lhe cortando a pele, uma dor que não se comparava, contudo, com a que sentia agora. Ele estava agora, fora de seu alcance... para sempre...

Orihime soluçava alto, abraçando a si mesma e encolhendo como se o mundo a estivesse pressionando para baixo. Não conseguia falar, mas sua mente ecoava apenas uma coisa:

“Volte... Volte para mim, por favor...”