PETER

Peter caminhava para a varanda, onde os magos estavam reunidos para o café da manhã de sábado. Dean estava sentado à beira da piscina, com os fones de ouvido conectados, observando Filipe da Macedônia flutuar pela água, inexpressivo.

Mas que merda, Peter.

Pensou o rapaz, enquanto servia uma porção de cereais numa tigela. Sentou-se com Joe, que estava mais interessado em suas panquecas do que em qualquer outra coisa.

— Onde está Leah? — perguntou Peter.

Joe ergueu o olhar como se só naquele momento tivesse ciência da presença do rapaz. Colocou a panqueca de volta no prato e pigarreou.

— Foi mandar uma “Mensagem de Íris” para os amigos do acampamento — disse ele.

— Mensagem de Íris? — questionou Peter, sem ter conhecimento do que aquilo era.

— Não me peça para explicar, eu igualmente não faço ideia do que isso quer dizer. — denotou.

Leah juntou-se a eles. Joe fez menção de tocar nos cabelos dela — com as mãos lambuzadas de xarope de bordo e manteiga das panquecas.

— Se tocar em mim, eu arranco seus dedos. — grunhiu ela, esquivando-se.

— Como vai fazer isso?

— Tenho um arsenal na mochila, quer mesmo saber como? — disse ela, séria.

— Deixe pra lá — disse Joe, com um sorriso brincalhão. — E então, o que está havendo lá?

— Parece que a corrida de bigas foi mais catastrófica do que presumível... Max está muito ferido na enfermaria, além de outros campistas, provavelmente.

— Max é aquele garoto que quase deu um murro no Joe? — indagou Peter, com um sorriso satisfeito. Joe o encarou, com uma careta.

— Não estou ciente disso. — afirmou Leah.

— Enfim, o que houve com ele? — perguntou Joe.

— Parece que algo como uma “aura negra” o atacou. — disse Leah. Peter notou que ela ficara mais pálida quando o disse.

— E você tem noção do que é? — perguntou Peter. Leah negou brevemente, pressionando os lábios.

Ele teve a impressão de que ela sabia de alguma coisa, mas optou por não contar. Levou uma a colher com cereais à boca.

Percebeu que Leah estava absorta, contemplando algo no alto, seguiu o olhar da garota e viu uma ave voando em velocidade explosiva na direção deles.

A ave caiu com grande impacto sobre a mesa, elevando algumas penas no ar, duas delas caíram na tigela de cereais de Peter, que mal havia notado, ao encarar a grande mancha parda, que ao levantar-se sacudiu o corpo, espalhando mais penas. Era uma coruja, do tamanho de um morcego-raposa adulto, se não medisse as asas. Tinha grandes olhos amarelos e era tão bela e alegre que parecia um personagem de desenho animado.

— Como me encontrou aqui? — perguntou Leah, surpresa.

Peter pigarreou, empurrando a tigela de cereais com penas de coruja, em sinal de rejeição.

— Você a conhece? — perguntou Joe.

— Sim, hã... Suponho que Atena a mandou para mim uma semana antes de ir ao Acampamento Meio-Sangue.

— Uma coruja dentro de casa... E eu nem sabia. — resmungou ele.

— É Ajax. Não faço ideia de como me encontrou aqui... E de como chegou aqui. — murmurou Leah.

— Corujas são espertas. — afirmou Peter.

— Mas não podem viajar da ponta de Suffolk até o oeste do Brooklyn em menos de um dia.

— A menos que tenha vindo de metrô. — divertiu-se Joe, enquanto tirava uma das penas de Ájax de sua panqueca. — O mistério da coruja viajante.

Ájax voou para dentro da mansão. Peter, Leah e Joe se entreolharam.

— Tenho um palpite. — disse Peter — Se ela foi mandada por uma deusa, com certeza não é uma coruja comum.

Leah deu de ombros, percebendo que os magos ao redor agora os encaravam, como se exigissem explicação para a bomba-coruja.

Sarah sentou-se com eles, roubando uma das panquecas de Joe, que fez uma careta, insatisfeito.

— A necrópole de Umm El Qaab está à 26º 11’ 00’’ Norte, 31º 55’ 00’’ Leste. — disse ela, tranquilamente.

Os três a encararam, incrédulos.

— E como você sabe disso? — perguntou Leah, tentando soar mais plausível do que realmente estava.

— Ryan me disse. — disse ela, indicando um garoto de provavelmente dez anos de idade, com cabelos bem ruivos e pele rosada salpicada de sardas. O menino estava ao lado de uma garota ruiva com estimáveis quinze anos, bem parecida com ele.

— Ryan Binters — murmurou Peter.

— E como é que ele sabe disso? — questionou Joe.

— Eu não sei, ele só me contou, e disse que vocês precisavam saber disso. — disse Sarah, erguendo o olhar para o irmão. — Por que vocês precisam saber disso?

— Hã... — Joe não sabia o que dizer, não diria a verdade à irmã. — Eu... Eu não sei.

Sarah mordeu a panqueca, despreocupada, sem demonstrar convicção pela resposta do irmão.

— A que deus Ryan segue? — perguntou Leah, quando entravam na Mansão do Brooklyn, após o café da manhã. Sarah havia ficado na varanda, com Ryan e a garota ruiva.

— Ainda não foi determinado. — respondeu Peter — A irmã dele, Willa, segue Ísis, mas não sei sobre Ryan.

— Essa é uma característica de Set, não? Set é o deus do deserto. — disse Joe. Peter assentiu.

— Sim, mas mesmo se Ryan seguisse Set, ele chegou à Casa da Vida há pouco tempo, quatro anos depois da irmã, não pode ter desenvolvido a habilidade tão rapidamente. E como é que ele sabia que precisávamos das coordenadas?

— Nossa alternativa é falar com ele. — afirmou Leah.

— É, mas Willa nunca deixaria que falássemos com Ryan a sós. — comentou Peter.

— A turma de Ísis tem treino de feitiços defensivos agora, podemos tentar. — sugeriu Joe.

— Acho melhor eu tentar primeiro. Vamos intimidá-lo se formos todos nós. — concluiu Peter.

Leah assentiu, enrolando, distraidamente, uma mecha roxa do cabelo, Joe a puxou à Oficina de Shabtis, enquanto Peter esperava que Willa seguisse para a Sala de Treinamentos. Sentou-se em um dos sofás do Grande Salão, que jazia desocupado até sua chegada, entretendo-se com uma partida de futebol entre Manchester United e Liverpool, que a ESPN transmitia. Notou que Willa o encarava.

— Você não tem treino com a turma de Ísis agora? — perguntou ela.

Peter ficou tentado a dar uma má resposta, mas ele a temia, preferiu inventar alguma desculpa convincente. Buscou uma palavra-chave da conversa que teve com Joe e Leah anteriormente.

— Estou esperando por uma “Mensagem de Íris”, pode ir na frente. — disse, com um sorriso amarelo e suando frio. Ele optou por algo que a garota não devesse compreender, já que nem ele mesmo compreendia, pois sabia que Willa não perguntaria, não a ele.

Willa estreitou os olhos, encarando-o. Seu olhar era tão penetrante que Peter sentia que ela podia ver sua alma, e que se ele fizesse um movimento brusco ela o decapitaria. Desviou o olhar para a TV, tentando parecer natural, e não que estava bolando uma lorota para distraí-la. Por fim, Willa esfriou o olhar, deu-lhe as costas, sumindo atrás da estátua de Tot. Peter suspirou, aliviado, limpando o suor das palmas das mãos nos jeans.

Certificou-se de que Willa havia subido para a Sala de Treinamentos, quando teve certeza, se levantou. Olhou em seu relógio de pulso, 10h45, ele chegaria completamente atrasado e Sadie não gostaria nada daquilo, mas, por toda a sua vida, ele já havia errado o suficiente para saber que não teria seus membros arrancados por uma mina terrestre ou algum feitiço do tipo.

Saiu para a varanda, esperando que as crianças estivessem lá àquela hora, mas o local estava deserto, por conta do chuvisco que começava. Percebeu Dean sentado em uma das cadeiras.

— Dean! — exclamou, esperando que o amigo o ouvisse, com os fones conectados aos ouvidos. — Dean!

Dean removeu os fones, tornando possível que Peter ouvisse a música, Back in Black de AC/DC, por estar incrivelmente alta.

— O que está fazendo aqui? — perguntou Peter.

— Estou à toa, e você? — disse Dean, tranquilamente.

— Hã... Procurando por Ryan Binters. Você não o viu por aí?

— Não. Willa deve saber onde ele está.

— Acredite, ela é a única pessoa para qual eu não perguntaria isso. — resmungou Peter.

Sentou-se ao lado de Dean.

— Olhe, desculpa pelo que eu te disse ontem, cara. — disse.

— Tem certeza de que deseja perder seu tempo me dizendo isso? Está tudo bem pra mim. — esclareceu Dean.

— Não, não está. — proferiu Peter, inclinando-se para frente, à espera que Dean prestasse atenção no que ele estava prestes a dizer — Eu sei que você está pensando nela, e eu não estou nada feliz com isso. Sei como foi duro esquecê-la, e por minha culpa você vai ter que passar por isso novamente.

— Pois quero que saiba que eu te perdoo, mas se ficar falando nisso, coloco estes fones e deixo você conversar com Filipe.

Peter olhou para o crocodilo albino, que flutuava na piscina, e suspirou, voltando a olhar para Dean.

— E então, por que está procurando o menino? — questionou Dean, desligando a música que, até então, podia ser ouvida através dos fones.

— Parece que ele tem alguns dons especiais.

Dean o encarou.

— O que quer dizer? — perguntou.

— Lembra-se do que você disse sobre Umm El Qaab? — Dean assentiu — Ryan disse as coordenadas à Sarah, e disse que precisávamos delas.

— E daí?

— Você não acha estranho que, depois de poucos dias que chegou à Casa da Vida ele já tenha habilidades suspeitas como essa?

— E se ele tiver investigado? — sugeriu Dean, dando de ombros.

— Dean, você mesmo disse que não encontrou resultado em diversos idiomas, e como é que ele sabe sobre Umm El Qaab? Só nós, Joe, Leah, Ben, Zia e Jaz deveríamos saber disso.

— Tem razão. — afirmou Dean, meditativo. — E então, vamos falar com esse garoto ou não?

Peter sorriu de canto.

Foram à busca por Ryan, de modo indireto, até que puderam mirar uma cabeleira ruiva no Teatro de Artes Cênicas, o único espectador do ensaio, sentado num dos últimos assentos, quase imperceptível, como se não quisesse ser notado.

Peter caminhou até lá, sentando-se ao lado do menino.

— Está gostando da história? — perguntou.

— Não. — o menino ergueu os inteligentes olhos verdes para Peter — César está sendo esfaqueado na escadaria do senado.

— Você gosta de César?

— Sim, ele era um aristocrata com dinheiro, um exército, e se importava com o povo. Diferentemente de qualquer outro romano que tenha sucedido ao poder.

— Mas César recusou-se a colocar o único filho biológico, que teve com Cleópatra, como seu herdeiro.

— O motivo é lógico. Octaviano era de uma família pebleia, mas era neto-sobrinho e filho adotivo de Júlio César, puramente romano. Não acha que seria burrice se ele pusesse Cesarião como herdeiro?

— Você tem razão. — afirmou Peter, dando de ombros.

Voltou o olhar para o palco, onde havia uma estátua real de Pompeu, o cenário perfeitamente realista às escadas do Senado. Um garoto estava caído aos pés da estátua de Pompeu, com uma túnica branca, adornada por manchas vermelhas semelhantes a sangue, sob uma toga vermelha, usava na cabeça uma coroa de louros. O garoto representava Júlio César.

— Tu também, Bruto, meu filho! — repetiu as últimas palavras de César, encarando o garoto com a toga branca, que logicamente interpretava Marco Júnio Bruto.

— É tão triste — disse Ryan, com um suspiro. — César fez tanto por Bruto e Cássio, até os perdoou por apoiarem Pompeu, mas mesmo assim eles foram os principais a conspirar contra ele.

— É. — murmurou Peter, pasmo com a inteligência do menino.

Logo mais, o palco só era habitado pelo corpo de César, caído perto da estátua de Pompeu. Três meninos se esgueiraram para o Senado, atuando como escravos. Mais tarde as cortinas se fecharam, ao abrirem-se novamente, o cenário havia mudado, tornado-se algo parecido com uma enfermaria, onde o corpo de César era rodeado por curandeiros.

— São vinte e três golpes de adaga! — anunciou um deles.

Alguém bufou, em um dos primeiros assentos do teatro.

— Repita isso, pareceu uma hiena ao ser atropelada! — exclamou uma voz feminina. O garoto que interpretava César abriu um dos olhos, mas o fechou brevemente.

— São vinte e três golpes de adaga! — reforçou o rapaz.

Fez-se silêncio no palco, esperando pela voz do narrador:

“Os assassinos de Caio Júlio César não estavam mais ali. Planejaram transformar a morte num grande ato de propaganda política, mas não contavam com o medo e a revolta do povo comum de Roma, quase todo formado por adeptos do ditador. Os responsáveis pelo atentado, portanto, tiveram de se esconder, entrincheirados na colina do Capitólio. Matar César foi ridiculamente fácil; suprimir o que ele significava para Roma era bem mais complicado.”

Peter pôde reconhecer facilmente a voz de Ben. Por ser muito inteligente e engenhoso, era sempre ele quem dirigia os roteiros e narrava às histórias, mas ele deveria estar na enfermaria. Peter faria uma visita a ele logo mais.

— Fim de ensaio por hoje! — anunciou a garota que jazia em um dos primeiros assentos.

— Escute, posso conversar com você? —Peter falou ao garoto ruivo.

— Diga. — disse Ryan, prontamente.

— Hoje, durante o café da manhã, você deu um recado através de Sarah. As coordenadas de Umm El Qaab, 26º 11’ 00’’ Norte e 31º 55’ 00’’ Leste. Como você sabia sobre isso?

— Eu não faço ideia. Uma voz na minha cabeça me disse. — respondeu o menino.

— Uma voz... Sua consciência?

— Não, uma voz mesmo.

Peter logo compreendeu o que aquilo significava, e nem de longe era algo bom.

— Você sabe o que é isso? — perguntou Ryan, suplicante.

— Eu... Não tenho certeza. Quando eu tiver falo pra você, eu prometo. Agora tenho que ir, até mais. — disse, levantando-se e saindo do teatro, encontrou Dean logo na entrada.

— Descobriu algo? — perguntou ele, ao tirar os fones de ouvido que reproduzia, em volume máximo, Black Hole Sun do Soundgarden.

— Sim, e não é nada bom. — foi tudo o que disse.