LEAH

— Sugiro que grude as patas traseiras, para evitar fugas — disse Joe. — Mas por que um centauro?

— Porque centauros são engenhosos — alegou Leah, enquanto unia as patas traseiras do shabti.

— Mas é um shabti...

— Se não for me ajudar, cale a boca.

Joe revirou os olhos.

Leah, depois de fazer o comando para despertar a estatueta, jogou-a dentro da caixa de magia. Quando saíam da oficina, Joe disse:

— O que acha de irmos atrás de Peter?

— Penso que não será necessário. — respondeu Leah, observando enquanto Peter se aproximava.

O rapaz estava ofegante, como se tivesse corrido para chegar até ali. E estava branco, somente com traços vermelhos nas maçãs do rosto, por conta do cansaço. Sua expressão era de quem viu um fantasma. Enquanto ele recuperava o fôlego, Dean apareceu atrás dele, sem apresentar os mesmos sinais.

— Cabulou aula? — perguntou Joe, incrédulo.

— Sim, mas o que importa é que consegui falar com o garoto.

— E concluiu que... — Leah deu espaço para que ele continuasse.

— Peter acha que Ryan está hospedando Set. — esclareceu Dean.

— Mas por que Set estaria nos ajudando? — questionou Joe.

Fez-se silêncio, enquanto cada um tirava a própria conclusão.

— É uma ótima pergunta, infelizmente não temos uma resposta tão boa quanto. — rematou Peter. — Pode ser que algo o ameace.

— Algo que ameaça a Set? Não pode ser boa coisa. — proferiu Dean.

— Não é boa coisa. — afirmou Joe. — Se Set queria nos dar essa informação, por que não pessoalmente? E por que escolheu se instalar em um garoto de dez anos?

— Quando eu tiver uma resposta, o aviso. — disse Peter. — Tenho algumas coisas para desenvolver na forja, vejo vocês depois.

Depois de dizer, saiu rapidamente, como temesse algo. Para confirmar, logo depois viram Sadie caminhando pelo corredor. Comumente ela notava quando Peter não estava presente, e não deixava passar numa boa, já que ele sempre tinha algo para aprontar.

— Hã. Ei, Carter me pediu para lembrar a vocês que tem treino coletivo com monstros agora. — disse Sadie — Estão distraídos com algo, não é?

— É sobre os magos na enfermaria. — alegou Dean.

— Falo com vocês durante o jantar. — articulou Sadie.

Dean e Joe saíram para a sala de Treino com Monstros na Sala de Treinamentos, Leah seguiu para a biblioteca, buscando alguma distração. Até que avistou Hilde tensa em uma mesa, ela encarava Leah, mas, quando esta percebeu, desviou o olhar.

Leah foi até Hilde, que rabiscava um rolo de papiro com as unhas, sem realmente olhar para ele.

— Hilde, está tudo bem? — perguntou Leah, Hilde olhou para ela e balançou a cabeça negativamente. Leah se sentou com ela.

— Bastet conversou comigo ontem à noite.

— A deusa? — indagou Leah, um tanto descrente. Mesmo depois de conhecer Dionísio pessoalmente, e Quíron, que tecnicamente era um deus menor, ainda lhe era difícil de ouvir aquele tipo de coisa.

— É, na Sede de Bastet. — explicou Hilde.

— E o que a atormenta?

— Ela me disse algo, sobre você...

— Sobre mim? E o quê? — perguntou Leah, chocada e muito surpresa.

— Ela me disse que você pode curar os magos que estão na enfermaria. Você não é uma curandeira. — observou ela.

— Ela pode estar enganada...

— Não, Bastet tem certeza.

O olhar de Hilde era sério e franco, ela continuava arranhando o papiro, nervosamente, com as unhas grandes.

— E por que ela não me disse isso?

— Por causa disso — esclareceu ela, indicando o amuleto de Leah — Bastet não gosta de serpentes. Ela passou milênios presa lutando contra Apófis.

Leah percebeu que Hilde também ficava tensa ao encarar o amuleto de ofídio, tirou-o, escondendo-o no bolso. Hilde parou de arranhar o papiro.

— Ela também me disse que você cheira à morte. — disse Hilde, deixando um sorriso torto escapar. Leah sorriu de canto.

— É uma característica estonteante, literalmente. — disse ela. Hilde sorriu. — E a deusa gata não gosta de mim.

— Bastet gosta de você, parece que gosta muito, como se já a conhecesse há muito tempo. Ela só se sente ameaçada pelo que está em você.

— O amuleto e o cheiro de morte. — assegurou Leah, soando como uma pergunta indireta. Sua consciência deu bastante atenção à "Parece que gosta muito, como se já a conhecesse há muito tempo". Como poderia?

— Não exatamente. Eu não sei o que é. Por isso, quando você souber, por favor, me conte. E se puder curar os aprendizes...

Leah assentiu, confusa.

“Ela se sente ameaçada pelo que está em você”, a voz de Hilde refletiu em sua mente.

“E o que está em mim?”, perguntou a si mesma.

Não houve resposta.

Mais tarde foi até seu dormitório. Quando entrou, observou que havia algumas mudanças. Como uma lança de um metro e meio em sua cama e um escudo médio. Ótimo, alguém pensa que eu sou um soldado.

O cabo da lança era branco, possuindo uma curvatura, era de álamo enquanto a lâmina era prateada. Perto da lâmina estava engastada uma coruja.

O escudo tinha uma superfície muito lisa, denotando um exímio trabalho de forja, sem imperfeições, com uma pequena coruja entalhada em seu centro.

“Pena que aqui eles não têm sistemas para oferenda a deuses”, pensou Leah. Porém notou que havia alguém ali, olhando para a vista de Manhattan.

Agiu em silêncio, pegou a lança e a apontou para a cabeça loura do rapaz.

— Não vai querer me matar — disse ele, sem se virar. Sua voz era tranquila, como se estivesse perambulando no Jardim das Hespérides. Leah franziu a testa, frustrada, agarrou a lança com mais consistência.

— Quem é você? — perguntou. Denotando os trajes do rapaz, um manto sobre uma longa túnica branca de linho, com mangas curtas, e sandálias antiquadas de gladiador.

— Sabe, meus pais consecutivamente me ensinaram que não devemos falar com as pessoas sem olhar para elas. Se eu me virar com essa lâmina de bronze sagrado a um milímetro da minha cabeça...

— Vire-se, então. — disse Leah, abaixando a arma.

O rapaz se virou, de mãos erguidas. Tinha cabelos dourados e cacheados, olhos cinza tempestuosos e uma beleza exótica, muito provavelmente grega, pelo nariz perfeito e a combinação de cabelos claros, pele amenamente bronzeada e íris cinza.

Ele tinha um aroma de verbena e parecia uma importação ambulante da Grécia Antiga.

— Quem é você? — repetiu Leah, em tom mais curioso que violento.

— Sou Ájax.

— Ájax, o grande, ou o filho de Oileu? — perguntou Leah, semicerrando os olhos, incrédula.

— Nenhum desses. — afirmou o rapaz.

Leah o encarou, ela reconhecia aqueles grandes olhos acinzentados.

— A... A coruja? — indagou, com a voz falhando.

— Exatamente. Mas meu nome verdadeiro não é Ájax.

— E qual é?

— Alexander.

— Hã, então você é grego, certo? — proferiu Leah, imaginando-se insana. Alexander assentiu. — Se você não é coruja de nascença, como virou uma?

— Atena me deu o dom da metamorfose para que eu pudesse defendê-la. — disse ele, como se as palavras findassem em algo completamente habitual.

— Defender? Tipo um guarda-costas? Isso é palhaçada! — Leah tornava a ficar nervosa, apertando o cabo da lança.

— Não, bobinha. Não sou como um guarda-costas. Estou aqui para ser como Atea. — alegou Alexander. Leah continuou a franzir o cenho. — Sabe... Dizer “Você está fazendo isso errado”.

— Ótimo. Atena acha que preciso de uma babá. — resmungou Leah. — Incrível.

— Babá... O que isso significa? — perguntou Alexander, meditativo.

Leah o encarou ao sentar-se na cama, colocando a lança no chão.

— Mulheres que são pagas para cuidar de crianças.

— Ah, claro. Trofov. Mas eu não sou uma mulher.

— Então não pode sair por aí usando esse vestido.

Alexander pensou, como se ponderasse o que havia acabado de ouvir.

— Ei!

— Estou falando sério. Parece que está pronto para uma festa de Dia das Bruxas.

Alexander franziu a testa, em confusão. Leah entendeu que ele não compreendia o que era “Dia das Bruxas”.

— Na verdade este é um traje para... — começou ele. Até que Leah pigarreou.

— Você pode me dar aulas de história mais tarde. Vou ver se Joe tem algumas roupas pra te emprestar.

— Você vai roubar — concluiu ele.

— Chama-se furtar. Não vou perguntar a ele se tem roupas para emprestar para uma ave.

Alexander fez uma careta.

Leah saiu dali, perdida em pensamentos enquanto caminhava até o dormitório dos seguidores de Anúbis. Atena não confia em mim, então por que eu deveria confiar? Pensou.

Que pergunta idiota.

Caminhou furtivamente e entrou no dormitório sem fazer nenhum ruído.

Ao contrário do que ela pensou, o quarto não era completamente bagunçado, o que facilitou na hora de encontrar alguma coisa para Alexander.

Assim que encontrou algo, certificou-se de que o corredor estava deserto e saiu, voltando para seu dormitório. Jogou as roupas para o rapaz e saiu novamente, dizendo apenas:

— Vou treinar tiro ao alvo, te vejo mais tarde.

Caminhou até a Sala de Treinamentos, localizando a porta em que “Tiro ao Alvo” estava gravado. Empurrou a porta com determinação.

Estava em um cômodo escuro, iluminado apenas pela brecha de luz que vinha do lado de fora, e por algum objeto num canto. Uma lamparina a óleo. Sua luz fraca e trêmula dava um ar tenebroso à escuridão, quase sombrio. Embaixo do lampião estava um arco de madeira, ao lado, em uma mesa minúscula, encontrava-se uma aljava com dezenas de flechas.

Leah segurou o arco com firmeza, pendurando a aljava ao ombro.

Uma luz estranha clareou sua visão, de repente.

A sala escura havia se tornado um cômodo de barro, que também não continha uma iluminação muito boa, embora fosse mais claro que a sala. E possuía um cheiro podre, como se houvesse algo morto ali. Havia estátuas de cinco metros de altura retratando o deus com cabeça de chacal, Anúbis, cada uma posicionada entre colunas adornadas de hieróglifos. Era assustador ser encarada por quatro representações em tamanho gigante do deus egípcio dos funerais.

Ela estava em um largo corredor, que findava em um recinto fúnebre. Julgou ser imprudência e descuido, mas seguiu até lá. Assim que pisou no chão de barro, a sala começou a tremer, com vibrações abaixo do solo instigando às paredes.

Leah deu um passo para trás. As vibrações vieram com mais intensidade. Sentiu-se próxima a loucura quando um braço envolto em linho branco se ergueu do solo, fechando a mão em punho.

Leah preparou uma flecha. Mais três braços se ergueram, apoiando-se no piso para desenterrarem-se. A primeira múmia parecia encará-la, mas não era possível, já que não possuía olhos e o corpo era inteiramente embalsamado.

— Inpu! — bradou.

Leah não sabia o que aquilo expressava, porém imaginou ser algum tipo de ofensa verbal egípcia.

A múmia mal havia começado a se mexer e Leah atirou uma flecha. Porém ela passou direto pelo corpo envolto de fitas de linho, acertando a parede ao fundo e ricocheteando, caindo com um baque. Leah grunhiu e preparou outra flecha, com maior atenção, esta atingiu a múmia na cabeça. Porém a múmia ergueu o braço e tirou-a de lá, sem ser afetada.

Leah quase deixou escapar um xingamento a si mesma. Ela sabia que múmias não tinham cérebro, o único órgão que permanecia à passagem para a pós-vida era o coração.

Àquela altura as outras múmias já estavam de pé, caminhando vagarosamente na direção da garota. Leah deixou uma curta prece à Ártemis escapar, mirando o peito do corpo do que deveria ser um sacerdote. Soltou a flecha, que acertou em cheio o lado esquerdo do peito do defunto, que se rescindiu até sobrar somente fitas de linho.

Tentou repetir o feitio, porém as flechas não agrediram os cadáveres, que já tomavam uma distância perigosa. Conseguiu acertar um deles, que passou pelo mesmo processo que o primeiro. Leah bateu no seguinte com o arco, atirando uma flecha contra ele, mais uma vez acertou. Porém o problema era que o último tinha uma foice em mãos, cortou o ar com ela, quase atingindo a cabeça de Leah com extrema agressividade e potência, mas ela rolou para o lado no último segundo. Exatamente no último segundo, pois sentiu a lâmina ferir seu braço com extrema força. Deixou um gemido escapar.

Tentou atirar uma flecha enquanto caída no chão, mas como jazia aos pés da múmia, não pôde impulsionar a flecha na corda com força suficiente. A flecha mal havia se desatado do arco antes de tombar no chão.

— Inpu — disse o morto, inexpressivo. Cortou o ar com a lâmina novamente.

Leah rolou para o lado e posicionou a flecha, de pé, com tanta concentração que pensou que sua cabeça fosse estourar e o braço ferido entorpecer. Mas o empenho valeu quando a flecha perfurou o coração do defunto.

O cômodo tornou-se vazio e silencioso. Logo era a sala escura novamente.

Leah podia sentir o cheiro de ferrugem que vinha do fluido quente em seu braço. Tocou-o, levando os dedos até seu ponto de vista. Sangue.

— Porcaria. — grunhiu.

Saiu da sala comprimindo o braço. Enquanto andava de volta para o dormitório, pensou ter visto um gato a encarando com grandes olhos amarelos, mas quando olhou novamente, ele não estava lá. Franziu a testa e abriu a porta.

Alexander estava folheando o livro “A Morte dos Reis”, já vestido nas roupas comuns.

— Bem melhor — comentou Leah, enquanto procurava algo para conter o sangue.

— Pegue — disse Alexander, estendendo um cantil. — É néctar.

— A bebida dos deuses? — perguntou Leah. Alexander assentiu — Isso não vai me explodir?

— Depende. — respondeu ele. Leah o encarou. — Apenas se beber mais que o necessário.

Leah pegou o cantil, desconfiada. Bebeu apenas um gole da bebida, que tinha o sabor inconfundível de sorvete de baunilha. Devolveu-o para Alexander. A dor em seu braço esvaeceu dentro de três segundos. Leah olhou para o braço, não havia mais nenhum corte ou indício de sangue.

— É eficiente — comentou.

— Escute, você sente falta do Acampamento Meio-Sangue? — perguntou o rapaz. A pergunta pegou-a de surpresa, sentou-se ao lado de Alexander.

— Quer mesmo saber? — perguntou. Alexander assentiu. — Não muito. Sinto de Dylan, Claire e Max, mas isso é diferente.

— E por quê?

— Não me sinto bem lá. Os instrutores sabem mais da minha vida do que eu mesma. Ainda tento entender como é que sabiam sobre eu fazer parte do mundo egípcio.

— Rachel é um oráculo...

— Exatamente. — interrompeu — Oráculo, não vidente. Eu também sinto que você sabe mais do que eu. E isso não faz com que eu me sinta bem. Deuses falando sobre mim por aí... Não é legal.

— Não vai me perguntar sobre o que eu sei?

— Não. Você não vai me contar. E já que não devo saber, decidi que não quero saber.

Alexander piscou, surpreso.

— Me conte outra coisa. O que foi que você viu quando saiu daqui? — perguntou ele.

— Quatro múmias assassinas que não eram nada educadas e um gato de olhos amarelos.

— Múmias assassinas? — perguntou o rapaz.

— Exatamente. A sala de Tiro ao Alvo é bem sinistra.

— Os monstros do bestiário são utilizados somente para treino com monstros, que para magos iniciantes são assessorados. Nesse caso parece que algum deus te impôs o treino. Geralmente os deuses patronos fazem isso com seus seguidores, mas você não segue a nenhum.

Leah o encarou.

— Como sabe disso?

— Existo há quatro mil anos, se não soubesse seria um motivo de estar surpresa. Há algo mais que te incomoda?

— Hã, sim. Duas das múmias me chamaram de “Inpu”, não sei o porquê de isso me afligir, deve ser só algum xingamento em egípcio, mas isso não sai da minha cabeça.

Alexander de repente ficou atônito.

— Inpu?

— Sim. Você sabe o que isso significa?

— É como os egípcios chamavam Anúbis. Você sabe, Anúbis foi um nome estabelecido por nós helênicos. — explicou Alexander.

— E o que eu tenho com Anúbis?

Antes que Alexander pudesse responder, um pranteio escapou dos lábios de Leah, ela levou as mãos à cabeça, sentindo uma dor dilacerante explodir atrás de seus olhos.

— Leah? — chamou Alexander, sem saber o que fazer.

A dor vinha em tamanha magnitude que Leah pensou que seu crânio fosse rasgar, era tão agonizante que ela considerou a morte uma boa escapatória. Lágrimas escorriam pelo rosto de forma voraz, sua respiração eram assobios presos. Travou os dentes com tanta força que o maxilar doía, então sentiu gosto de sangue. Tinha rasgado o próprio lábio.

É isso, a morte veio me pegar.

Alexander abraçou-a, sem saber o que fazer.

— Droga, mãe, você podia ter me enviado um manual de instruções. — grunhiu.

Depois do que pareceu um longo século de dor e sofrimento, a dor esvaecia e a respiração de Leah regularizava.

— Mas que droga, por que o destino simplesmente não para de tentar me matar? Ou não me mata logo? — reclamou ela.

— Você praticamente não viu nada ainda. É uma semideusa... E também é progênie de um poderoso faraó, morrer já é muito provável se você descuidar. Portanto, não vacile.

— Você está aqui para isso. Para impedir que eu vacile... Ou me volte contra o Olimpo e desperte algum inimigo, como Luke fez.

— Você conhece essa história? — indagou Alexander, surpreso.

— Claro. As coisas se espalham, ainda mais quando seu guardião é um sátiro que é fã de Grover. Você está aqui para isso também, impedir que eu passe para o lado mal, não é, Alex?

Alexander assentiu, debilmente.

— Mas por que eu? Isso é só por causa do meu lado egípcio?

— Não. — respondeu o rapaz, simplesmente. Leah compreendeu que ele não diria mais nada sobre o atual assunto.

— Vou procurar alguma coisa pra fazer. — esclareceu ela, levantando-se, entendendo que não tiraria respostas dele com facilidade.

Pegou o kit de magia — que, tirando a experiência com o shabti, nunca usara — e caminhou em direção à porta.

— Ei. — Alex chamou-a. Leah olhou para ele, que jogou o cantil com néctar para ela. — Fique com isso.

— Ah, obrigado.

Alex voltou a folhear o livro, enquanto Leah saía.

Caminhava pelo corredor do terceiro andar, até que viu uma porta que nunca havia notado antes. Estava entreaberta e um ar tenebroso vinha de lá, o que despertou a curiosidade da garota. Tentou empurrar a porta, mas esta era de pedra e muito pesada. Suspirou e procurou lembrar o feitiço que Peter havia utilizado para abrir a porta da biblioteca.

— W’peh. — proferiu.

A porta se abriu ruidosamente e a sala de repente se iluminou, como se alguém houvesse pressionado um interruptor. Avistou o homem que Hilde dissera ser Amós sentado em uma cadeira, desocupado.

Ele vestia um sobretudo de lã na cor bege sobre uma camisa de linho, sob a capa de sacerdote-leitor chefe, e usava seu chapéu Fedora, seus óculos redondos jaziam na mesa, permitindo que Leah visse seus olhos escuros.

— Leah, eu estava esperando por você. — disse ele.

Leah franziu a testa, sem entender, e sentindo-se um tanto ameaçada.

— Sente-se.

Não contestou, sentou-se em uma das cadeiras que rodeavam uma pequena mesa redonda. Onde havia xícaras e um bule. Amós ofereceu chá, Leah negou. Observava as estruturas do espaço. Até que notou um par de criaturas esquisitas ao fundo da sala retangular.

Dois entes que eram quase inteiramente leopardos, porém tinham longos e escamosos pescoços de serpente. Um deles sibilou, exibindo a língua de ofídio, como um cumprimento. Leah encolheu-se com a visão. Voltou a olhar para os próprios dedos, que tamborilavam freneticamente na mesa.

— Não se lembra de mim, não é? — disse Amós, por fim.

— Deveria? — indagou ela.

Amós dobrou a manga do sobretudo, exibindo a pele do braço, que tinha uma mancha de queimadura. Leah sentiu a garganta inchar ao reconhecer a mancha. Ela havia feito aquilo.

Tinha apenas seis anos de idade, era a terceira vez consecutiva que Amós visitava ao pai. Ela notava o quanto o pai ficava nervoso quando Amós fazia aquelas visitas, para falar de “assuntos de adultos”. Sabia que ele nem mesmo podia dormir à noite. Isso a fez tomar rancor por Amós, quando chegou ao limite, uma bola de fogo foi lançada contra ele. Ela nunca tivera nenhuma explicação para aquilo, mas esqueceu-se com o passar dos anos, em que Amós não os visitara mais.

— Sem ressentimentos. — garantiu ele.

Leah não se sentiu melhor.

— Eu sinto muito. — murmurou, com a voz falhando.

— Está tudo bem — declarou Amós, tranquilizante. — Vejo que está equipada. Pronta para treinar?

Leah voltou o olhar para as criaturas inusitadas, tornando a olhar para Amós. Deu de ombros, inquieta.

— Não se preocupe, vou socorrê-la.

— Tudo bem. — Leah não tinha certeza se devia confiar no homem, mas aceitou. — O que são essas coisas?

— Sepopardos. — disse Amós.

Leah empunhou a varinha e o cajado, levantando-se. Amós apontou a varinha para um dos sepopardos.

— Pwah! — exclamou.

O sepopardo cravou os olhos ferozes em Leah, rosnando para ela. Deu um salto na direção da garota, porém ela se esquivou muito rapidamente, quase como um gato. O sepopardo voltou a encará-la. Leah buscou algum feitiço em sua mente. Ela já vira outros magos atuarem, devia se lembrar de algum.

— Hah-ri!

O sepopardo tornou a ficar lento, porém continuava aproximando-se. Leah tentou pensar em algo, ela não havia levado nenhuma lâmina, apenas os itens mágicos. O sepopardo parecia um pouco receoso em atacá-la, como se ela o assustasse. E, de alguma forma, veio em sua mente que o ponto fraco do sepopardo era distração.

Tirou o rolo de barbante vermelho da caixa de magia e o jogou para o sepopardo, que passou a jogá-la de um lado para o outro, com muito interesse.

Leah teria sorrido se não estivesse em uma situação tão sufocante.

Amós despertou o outro sepopardo, que atirou-se contra Leah, derrubando-a no chão. Ela segurou as grandes patas do animal, tentando tirá-lo de cima dela, porém ele era incrivelmente pesado, de forma que Leah quase não conseguisse respirar. Leah fuzilou com o olhar os grandes olhos amarelos da criatura, até que ela foi lançada contra a parede, soltando um ganido, como se estivesse sendo atacado por algo invisível.

O sepopardo, que antes brincava com o barbante, voltou-se para Leah, aparentemente havia enjoado da brincadeira. Pulou por sobre ela, mas dessa vez Leah não pôde escapar. A criatura silvou, com a língua bifurcada quase na face da garota. Ela o empurrou com o cajado, livrando-se.

— A’max. — grunhiu.

O sepopardo estava em chamas, porém continuava a tentar feri-la.

Leah tinha receio de sujar toda a sala de sangue e órgãos de animal, porém não tinha escapatória.

— Ha-di! — exclamou, recordando-se do feitiço que praticara na gruta de Rachel.

O sepopardo explodiu em pó dourado, surpreendendo-a. Antes que ela pudesse retornar ao outro sepopardo, a mesma dor que sentira no dormitório retornou, porém em maior proporção.

Um grito escapou de seus lábios e ela desabou no chão, dobrando o corpo ao agarrar a cabeça. Fechando os olhos, que passavam de azul-gelo para o preto, com força.

— Bades. — disse Amós, apontando a varinha para o sepopardo restante, que ainda pirraçava com algo, como se estivesse tendo ilusões.

O sepopardo tombou no chão, inconsciente. Amós foi até a garota que jazia encolhida no piso, pousando a mão em seu ombro, com preocupação.

Leah mal podia sentir a mão de Amós em seu ombro, como se estivesse em outra dimensão. Lágrimas inundavam seu rosto. Seu cérebro parecia em combustão, prestes a explodir. As mãos agarravam a cabeça para evitar que a dor dilacerasse e abrisse o crânio. Ela tinha apenas consciência o suficiente para sentir vergonha de se ouvir soluçando lamentavelmente.

Para ela, a morte teria sido ótima naquele momento.

Imagens passavam por sua mente, apenas feixes. Todas tinham um fator em comum: morte. Um homem que levou um tiro na testa, um morto ao ser mumificado, uma mulher ao se afogar… Diversas situações. Haviam também funerais, inclusive o de seu avô e de uma de suas tias, o que a fez se sentir ainda mais debilitada. Uma voz sussurrava em sua cabeça, mas ela mal podia entender as palavras que vinham acumuladas, somente o próprio nome. Sussurros que chamavam por ela.

Amós tirou-a do chão, levando-a para algum lugar. Porém Leah mal deu importância, seu cérebro estourando era um motivo de maior preocupação.

Leah pôde ouvir outras vozes, misturando-se a que estava em sua mente, que era mais rompante. Ouviu a voz de Amós, Carter, de Joe, Dean, Peter e Sadie.

— O que aconteceu com ela? — perguntou Joe.

— Ela vai ficar bem? — indagava Peter, sem parar.

— Amós, o que houve? — proferia Carter.

Leah não podia entender mais nada por conta das falas atropeladas. Continuava a soluçar, era como se seu cérebro estivesse substituído por uma estrela ao explodir.

Sua cabeça parecia explodir várias vezes, sem nunca terminar o ciclo. Seus olhos ardiam muito, ela não podia abri-los. A voz continuava a tentar lhe dizer alguma coisa, com insistência.

As imagens mudavam o padrão, agora mostravam as múmias no treino de Tiro ao Alvo, ao dizerem “Inpu”, as grandiosas estátuas representando o deus chacal. Um garoto de, provavelmente, mesma idade que ela. Tinha cabelos escuros e olhos castanhos. Até que por fim, pôde entender a voz dizer um nome.

Anúbis.