O rosto dela estava escondido por uma espécie de véu. Como não é a primeira vez que mulheres vestidas de tal maneira aparecem aqui, eu não estranhei, e até pensei se tratar de uma cliente. O que mais me chamou a atenção além disso foi o seu cabelo, um vermelho vivo, de tom chamativo, que escapava do véu.

As palavras de Mrs. Hudson ainda martelavam a consciência de Sherlock Holmes. Será que Violet Hunter fizer isso? Era provável que sim, dado a maneira como Holmes saiu de Manchester, deixando uma mulher quebrada e enfurecida. A fúria poderia transformar as pessoas, como os seus próprios olhos já se cansaram de testemunhar em casos e mais casos que ele atendeu. Mas ainda assim, era difícil conectar a loucura desenfreada de uma mulher rejeitada à toda aquela doçura que ele se deparou uma vez, há alguns anos atrás. Não, isso não poderia advir daquela corajosa e doce tutora que não tinha mais ninguém no mundo a recorrer auxílio. E se tinha, o que então lhe acontecera? Tudo era muito estranho de se interligar.

Para sua sorte, a noite ainda trazia um pouco do calor que fizera durante o dia em Londres, o que incentivava as pessoas a estarem nas ruas, e isso impulsionava o comércio local. Certamente, uma mulher de véu teria chamado a atenção de alguém, comerciante ou não.

E de fato, chamou. Alguns se referiram como “a indiana”, como se todas as pessoas que se localizassem à leste do mundo fossem indianos. Holmes franziu o cenho para esse preconceito britânico de reduzir o restante do mundo aos seus colonizados, e só desejava que todos tivessem tido a mesma experiência que ele tivera no Tibete e na Pérsia. Talvez parariam de rotular tanto os outros povos, e quem sabe, o mundo seria um lugar melhor de se conviver.

Mas no fundo, ele só estava divagando.

Por final, a tolerância do preconceito lhe permitiu ouvir que a tal “indiana” viera de certa direção, e que voltara pelo mesmo local. Mas o detalhe mais interessante – e que Holmes já tinha presumido – era de que ela não estava sozinha. Havia um homem junto a si, usando um terno xadrez extravagante. Quando perguntado por detalhes, mais preconceito: “o irlandês” ou “o americano”. Mas no fundo, ninguém sabia quem exatamente ele era, além de um homem com pressa acompanhando uma “mulher estranha e indiana” e vestindo um terno que, de tão extravagante, dificilmente seria londrino. Se a mulher já era um mistério, seu cúmplice era ainda mais.

Holmes parou no sinal, na esquina da Madison Street, rua que cortava Baker Street. Lá estava quem ele sabia que poderia lhe lançar uma luz.

Um homem parado na esquina, ocupado em trazer alguma ordem ao caos londrino. No entanto, Holmes imaginava encontra-lo, aquela hora, menos ocupado e mais disponível para uma conversa.

Alguma coisa tinha acabado de acontecer.

Um cabriolé estava com o eixo quebrado. Havia alguns pedaços de madeira quebrados pela pista, além de um cavalo morto sendo retirado pelo pessoal da Limpeza Pública. Se aquilo tivesse sido umas duas horas mais cedo, teria feito um nó no trânsito já caótico de Londres.

–O que houve aqui, Francis? – perguntou Holmes, ainda observando o tumulto.

Antes de responder, o guarda de trânsito Francis Harris deu um apito forte, permitindo que alguns pedestres passassem.

–Um acidente dos diabos, Mr. Holmes! –respondeu o rapaz. – Já estava no fim de meu expediente e um troço desses acontece! Agora terei de ficar até de madrugada.

–Uma pena mesmo. – disse Holmes, ainda interessado. – Mas o que houve aqui? Esse cabriolé está com o eixo quebrado...

Francis concordou. – Na verdade, tava tudo tranquilo até que um casal resolveu atravessar a rua correndo e... Enfim, o homem foi atropelado. Ele freou bruscamente, por isso o eixo quebrou. Tiveram até de sacrificar um dos cavalos. Tudo por culpa daquele casal de imprudentes.

–Casal?

–É. Sabe, um daqueles pares estranhos que a gente vez ou outra vê aqui em Londres. Tô até acostumado com os tipos exóticos que encontro, mas... Confesso que uma muçulmana e um americano... É a primeira vez.

Holmes assentiu. Bem, ao menos alguém nesta cidade sabe distinguir uma muçulmana de uma indiana. Menos mal.

–Por quê o chama de americano?

Francis deu um grito, quando um menino quase atravessou sem olhar.

–A roupa dele. Só um americano para se vestir daquela maneira.

–Não seria um irlandês?

–Não. – discordou Francis. – Nem irlandês tem tamanho mau gosto. Mas porquê o interesse, Mr. Holmes? Eles são bandidos? Ei! Mais devagar! – gritou o rapaz, de repente a um cocheiro, depois de apitar arduamente. Holmes imaginava o estado de nervos de Francis, toda vez que chegava em casa depois de tentar dar um pouco de ordem à desordeira rua londrina.

Holmes mudou de assunto. – Não, não! São clientes que acabaram tendo um contratempo e tiveram de sair de meu escritório. Saíram as pressas e.... Infelizmente, o pior acabou por vir lhes acontecer, pois dissestes que o homem foi atropelado.

–Sim, ele foi. Mas a moça ficou bem. Ele a empurrou para a calçada, quando percebeu que seria atingido. Um bom cavalheiro. É, talvez ele não seja americano não...

–Mas... Foi grave? – perguntou Holmes, ainda curioso.

–Eu acho que ele quebrou o braço e teve alguns arranhões, mas nada além disso. Segundo sei, foi levado ao St. Mary Hospital.

Holmes assentiu, finalmente deixando Francis em paz, tentando organizar o trânsito daquela esquina movimentada. Quem quer que fosse, estava hospitalizado àquela hora e dificilmente poderia ser importunado. Seus negócios poderiam esperar, ao menos, até amanhã.

Passava da meia-noite quando Esther, que estava deitada no sofá cochilando enquanto lia um livro, ouviu passos. Vinham do corredor. Era certamente Watson, indo para mais uma noite fora. Ela percebera que os hábitos de Watson eram mais irregulares do que ela poderia ter imaginado. Ele passava noites fora, e só reaparecia no dia seguinte, durante o café da manhã, como se nada tivesse acontecido.

O incidente ainda lhe preocupava.

Decidida, Esther subiu as escadas, de maneira bem devagar, e adentrou ao 221-B, se aproveitando de uma chave reserva que Holmes tinha lhe entregue. Estava tudo calmo para uma madrugada e Holmes já deveria estar dormindo, afinal tinha trabalhado por dias em um caso. Deveria estar descansando. Ela sorriu. Talvez, ele ficasse feliz com uma visita surpresa.

Quando ela abriu a porta do quarto de Holmes, acabou sendo surpreendida por uma cena inesperada.

Holmes estava segurando um revólver, e apontou em sua direção rapidamente. Durante todos os seus anos de associação, ele jamais tinha agido dessa forma, tão agressiva e assustada.

–Oh, Esther... – ele disse, guardando a pistola, em tom de desculpa, ao perceber que ela estava pálida com sua reação nada comum. – Sinceramente, eu não esperava vê-la aqui, esta noite.

–Watson saiu. Pensei que... Enfim...

Ambos ficaram ruborizados.

–Eu sei. – disse Holmes. – Mas acho que... Não quero. Não esta noite.

Esther estranhou, sentando-se à cama. – Não?

–Eu estou cansado.

–Holmes, parece que você não me contou tudo que se passou em Manchester...

Holmes rolou os olhos. – Oh mulher, mais uma crise de ciúmes, não...

–Você não me parece nem um pouco indisposto.

–Meu cansaço não é físico, Esther. É minha mente que se encontra fatigada.

–Fatigada? Eu diria que há algo lhe incomodando... E que você está se esquivando de mim por causa disso. – ela disse, se aproximando dele.

–Por favor, Esther... Tudo que eu não preciso a esta hora da noite é uma discussão de casal...

–Então, evite-a. Foi aquela mulher, não foi? Foi ela quem jogou o rato em seu jantar...

Holmes bufou, resignado. – Você não desiste mesmo, não?

Holmes, que estava deitado, sentou-se sobre a cama. Sem perguntar, pegou um cigarro e o acendeu. Deu algumas baforadas, enquanto Esther, também sentada, o esperava.

–Realmente, eu não te deixei a par de todos os eventos que me sucederam em Manchester.

Esther sentia-se ferida por dentro, mas engoliu em seco.

–O que aconteceu, hein? O que pode ter ocorrido a ponto de deixa-lo em tal estado de nervos para erguer um revólver contra mim e... Me recusar?

–Não foi proposital. – ele disse, em desculpas. – Peço perdão por tal atitude. E eu não sou obrigado a me deitar com você toda vez que surgir a oportunidade.

Aquilo foi demais para Esther, que, ferida, levantou-se da cama.

–Acho que já tive o bastante. Vou dormir...

Holmes a deteve, segurando pelo braço. – Ei, desculpe-me. Eu não medi minhas palavras, fui grosseiro. Perdoe-me. Por favor, deixe-me terminar o que comecei, ao menos.

Esther retirou a mão de Holmes de seu braço. – Pois faça. Não estou te impedindo.

–Bem... – Holmes deu mais uma tragada.

–E pare de fumar esse maldito cigarro.

Holmes bufou mais uma vez, enquanto o colocava sobre o sopé da cama. Mulheres.

–Você ainda vai provocar um incêndio em Baker Street... – ela disse, recriminando a pimba deixada por Holmes.

–Quer me deixar falar ou não? – perguntou Holmes, irritado. – Obrigado.

Esther suspirou, enquanto o observava com seus olhos verdes e cabelos loiros, soltos sobre sua camisola.

–Eu tive um problema em Manchester. – disse Holmes. – E você está certa, sim, por ter ciúmes de Miss Hunter. Eu não menti quanto ao fato de ela se relacionar com um homem casado, entretanto isso não a impediu de... De dar um passo impróprio. Um passo impróprio em minha direção.

Holmes falava com seriedade, e Esther prestava atenção.

–Na hora do jantar, quando eu terminei com o caso, eu disse a ela que iria pegar, ainda à noite, o primeiro trem de volta à Londres. Ela se mostrou decepcionada. Eu expliquei que queria estar em casa, pois não havia mais necessidade de prolongar minha estadia. E foi quando ela me surpreendeu. Miss Hunter se declarou pra mim. Fiquei catatônico e...

Esther estava fervendo por perto. Declarações, durante a noite, vindas de uma mulher que se relaciona com homens casados... Oh, não...

–Ela me beijou.

O rosto de Esther ficara vermelho de raiva, como Holmes jamais vira. Ela sempre fora muito boa em esconder seus sentimentos, mas aquilo era demais. Ele sentiu vontade de rir de sua situação, mas sabia que isso pioraria ainda mais as coisas. Achou melhor, então, explicar-se.

–Mas eu me esquivei, é claro. Foi rápido e não correspondido. Não senti absolutamente nada. E... ela me fez uma proposta, para que eu ficasse e... Bem, você deve imaginar o quê mais.

–E o que você disse? – perguntou Esther, tentando esconder sua irritação.

–Eu neguei. Acabamos por discutir e ela me mandou embora... Quero dizer, ela não me mandou, eu desejei ir.

Esther suspirou, e contou internamente até dez. Depois, continuou.

–E você não iria me contar isso?

–Confesso que cogitei essa hipótese, mas... Não estava me sentindo confortável em esconder isso de você. Não me entenda mal, por isso eu não quis fazer amor com você esta noite.

Ufa, ainda bem que se limitou a isso...

Esther aproximou-se de Holmes, ainda sentada à cama.

–Então, você desconfia que este rato tenha sido obra dela?

–Sim, é o que eu suspeito. – ele suspirou. – De qualquer modo, acredito que tenha sido uma represália, por seu desagrado com minha recusa na noite passada. As mulheres costumam ser ardilosas e... Esther?

Enquanto Holmes fazia mais observações quanto ao episódio de Miss Hunter, Esther se movimentava, estando agora sentada sobre o colo do detetive, que ficou surpreso e ruborizado – mas nem por isso desgostoso – com o movimento nada ingênuo de Esther, que agora se encontrava sentada sobre seu colo, numa posição estratégica que fazia seu sangue se deslocar para o sul.

–Ainda não passou da meia-noite. Feliz aniversário.

Holmes ergueu uma sobrancelha. – Pensei que meu aniversário fosse 15 de Março...

–A data sequer é esta, seu mentiroso! Você me disse que seu aniversário era em 23 de Outubro quando estávamos em Montpellier! – ela disse, dando um leve tapa em seu ombro. – Mas eu já descobri que você mentiu.

–Tudo bem, eu menti. Mas quem não mentiu naquela época?

Esther suspirou. – Além de quê, fazemos aniversários todos os dias, e esse deve ser o seu. Quarenta e um anos e um dia. Veja, acaba de ser meia-noite. – disse Esther, olhando para o relógio de bolso de Holmes, sobre o criado-mudo.

–Mas eu nasci às quatro da tarde, você sabia? Então, tecnicamente, só completo um dia de vida às quatro da tarde, portanto...

Esther bufou, um tanto irritada, apesar da vontade de rir da situação.

–As pessoas sempre esperam a meia-noite, independente da hora em que nasceram.

–Você espera?

–Sim. Eu nasci às cinco da manhã, e nesse horário eu prefiro estar dormindo.

–Ainda assim, isso não é tecnicamente correto...

–Não seja tão metódico, Holmes.

–Mas tendo em vista sua atitude intimidadora... – ele disse, ao perceber que Esther estava desabotoando os botões de seu pijama – Eu suponho que esta seja uma maneira de... Me dar os devidos parabéns, ainda que atrasado.

–Exatamente. Não é todo dia que um homem faz quarenta e um anos gozando de... Plena saúde.

As bochechas de Holmes encontravam-se coradas. Por Deus, essa mulher era mesmo sua perdição. Antes que ele pudesse dizer qualquer coisa, Esther o interrompeu dando-lhe um beijo ávido, apaixonado. Ele não hesitou em corresponder.

–Espere! – disse ele, interrompendo. – Não pode ser aqui! Eu tenho um plano.

–Plano?

Holmes deu um suspiro. Depois, hesitante, fez uma pergunta cabulosa.

–Esther, por acaso você... Bem... Está... Tudo certo com você?

Esther demorou a entender a real natureza da pergunta. Ao perceber, riu. – Sim, Holmes. Está tudo em dia, se é o que você quer saber. Minhas regras são um tanto irregulares, mas já veio semana passada. Esqueceu-se que não fizemos nada por causa disso?

Aquela era outro aspecto da religião de Esther. Sempre que ela estava neste período, que durava alguns dias, ela se achava “impura” e evitava o contato físico. Mesmo beijos eram proibidos.

–Ah, o fato de eu ter vomitado...

–Exatamente. Eu só... Bem...

–Não, não se preocupe. Eu não estou grávida, se é o que quer saber.

Holmes manteve o semblante neutro. – Entenda, eu... Eu posso ter errado na sua última gravidez, mas...

–Já conversamos sobre isso, Holmes. Chega de se desculpar. Passou.

–Eu não vejo problema nenhum em termos um filho, Esther. – respondeu Holmes, deixando-a sem reação. – Aliás, eu... Até quero.

–Você está dizendo isso só para me agradar? - perguntou, desconfiada.

–Não. Apenas entendo agora que filhos é uma consequência de nossa relação. Por conta dos aspectos de sua religião, nós só podemos... Humfp... Nos relacionar quando você está no período fértil. E se aconteceu uma vez, pode acontecer outra.

Esther pareceu reflexiva.

–Não precisa se preocupar. Há mulheres que não conseguem mais engravidar depois de um aborto.

Holmes percebeu o tom sombrio de Esther.

–Pare com isso. Não há nada de errado com você.

–Uma tia minha perdeu uma criança e jamais conseguiu ter outra. – ela disse, ainda resoluta. – Ela tornou-se seca e... Eu tenho medo que isso se repita. Comigo.

Holmes pegou em sua mão. – Shhh... Quanto pessimismo, mulher... – ele disse, finalmente abraçando-a. – Vamos pensar assim. Se tiver de acontecer, irá acontecer.

Esther assentiu, com a cabeça recostada em seu ombro. Depois, ele ergueu sua cabeça, delicadamente com a ponta do dedo em seu queixo gracioso, e os dois se beijaram.

–Ei, agora deixe-me contar sobre o plano.