Laços de Sangue e Fúria

A Volta do Marido Pródigo


Londres, Inglaterra. 05 de Janeiro de 1895.

Às oito da manhã, começava a pontual rotina de Mrs. Hudson.

Seus inquilinos já estariam de pé. Ao menos, na maioria das vezes. Muito embora ela soubesse que Holmes e Sophie seriam os únicos, pois Watson tinha passado mais uma noite fora (a quem ele queria enganar, saindo de madrugada e voltando com o rosto cheio de olheiras e perfume de mulher?)

De qualquer modo, a senhoria foi subiu as escadas, com cuidado, com a bandeja do café da manhã para três pessoas. Encontrou apenas Watson, dormindo no sofá. Deveria ter acabado de chegar, ela pensou, pois o cheiro de mulher ainda lhe impregnava. Pobre doutor... A convivência com Sophie Sigerson estava piorando sua situação. Era evidente que ele ainda tinha esperanças. Se o marido de Sophie fosse mais presente, talvez o bom doutor desistisse da moça e procurasse por outras, de família.

Holmes também não estava presente. Ao notar que não havia jornal, nem fumo em seu chinelo persa, Mrs. Hudson imaginou que ele tivesse saído de manhã cedo para comprar jornal e tabaco. Bom, ao menos havia café da manhã, muito embora Holmes quase não o comesse.

Já feito seu dever aos inquilinos, Mrs. Hudson foi descer as escadas.

A pobre senhoria paralisou, de repente, ao avistar a figura de um homem, alto, usando um sobretudo e chapéu de abas largas branco, assim como o resto de seu figurino. Ela não conseguira ver seu rosto, porque estava impressionada com a maneira exótica que o sujeito estava vestido. Afinal, fazia ligeiro frio, e roupas claras na Inglaterra não eram costumeiras de se ver.

Ele estava parado no limiar da porta de Mrs. Sigerson.

Não era do feitio de Mrs. Hudson o ato de fofocar, mas ela não pôde deixar de ficar curiosa. Sophie estava no limiar da porta, do lado de dentro. Com intimidade, tocou-lhe o rosto (que só agora Mrs. Hudson viu ser ele um homem barbudo) e flagrou um rápido beijo entre os dois. Depois, o homem pôs-se embora, dando passos rápidos, deixando Baker Street.

Chocada por finalmente encontrar John Sigerson, o misterioso marido de sua inquilina, Mrs. Hudson deu dois passos para trás e voltou para 221-B, ainda desnorteada.

–O que foi, Mrs. Hudson? Parece que viu um fantasma... – perguntou Watson, já sentado sobre a mesa.

A velha hesitou. Conto ou não conto?

–Acho que... Acho que acabo de ver Mr. Sigerson.

–O QUÊ?! – Watson imediatamente abandonou sua xícara e se levantou, descendo as escadas. – Cadê ele? – gritava.

–Por favor, Dr. Watson... – pedia a senhoria, já arrependida. Watson já se encontrava do lado de fora, verificando que não havia mais ninguém no corredor ou na rua.

–Mas aquele maldito... Como ousa aparecer aqui?!

–O que está havendo? – perguntou Esther, fingindo surpresa.

–Sophie! É verdade que o bastardo do seu marido esteve aqui?

Esther demostrou raiva.

–Eu não sou casada com nenhum bastardo, Watson. E se você quer realmente saber, sim, meu marido, John Sigerson, esteve mesmo aqui. E você o teria visto chegar, se não estivesse na rua.

Watson ficou corado com a ousada afirmação de Esther, mas ainda assim não se conteve.

–Eu não acredito! Ele esteve aqui, passou a noite com você...

Esther ficou momentaneamente tímida, mas não se acovardou.

–É o que se espera que os maridos façam quando visitam suas esposas, não? E saiba, Dr. Watson, que não foi a primeira vez que ele esteve aqui, a me visitar. Aliás, eu sinceramente não sei porquê estou te dando explicações. Afinal, meu casamento não é da sua conta. E se me dão licença, senhores... – ela disse, fechando a porta com força, deixando tanto Watson quanto Mrs. Hudson boquiabertos.

Dando dois passos para dentro, Esther começou a rir.

O plano de Holmes era inusitado, talvez até um pouco dramático e arriscado, mas ela não pôde deixar de achar graça nele. E também tinha que reconhecer que era necessário a visita de Sigerson á sua casa. Afinal, Esther poderia ficar grávida outra vez (ela ainda queria uma criança, e naquela noite ela soubera que ele também estava mais receptivo à possibilidade) e seria estranha a situação de uma mulher ficar grávida de um homem que estava sempre fora, em viagens. Logo os resmungos de Watson no corredor passaram e ela ouviu passos na escada. Ele estava subindo, ainda furioso de perder mais uma chance de ver seu rival face a face. Ah, mas se ele soubesse que ele o encontrava todos os dias...

De repente, Esther ouviu algo bater no vidro de sua janela.

Era Holmes, ainda no disfarce de John Sigerson.

–E então? – ele perguntou com o ar divertido.

–Deu tudo certo. Eles acreditam que Sigerson me visitou, e que já me visitou outras vezes.

Holmes pareceu aliviado. – Ótimo.

Esther percebeu que as roupas de Sherlock Holmes – que consistiam em sua camisola e robe cor de vinho – estavam jogados pelo sofá, de qualquer maneira. Ela não gostou nada do que viu.

–Ei! Nada de bagunçar, Mr. Sigerson! -repreendeu Esther. – Eu não sou sua escrava!

–Ah, esposas... – disse Holmes, dobrando suas roupas.

–Porquê diz “esposas”? Tem mais de uma? Onde? Na Argentina? Ou em algum lugar no Caribe?

Com os dois envolvidos, um nos braços do outro, Holmes permaneceu na diversão.

–Na verdade, só uma. Que mora com um detetive e um médico. Mas embora eu não goste muito da maneira cortez como esse doutor trata minha esposa, eu temo mais pelo detetive... – ele disse, enquanto enchia o pescoço de Esther com beijos.

–Pare... – disse Esther, à beira de ceder. – Temos de terminar esse plano. Você já deveria estar de volta, com cigarro e jornal...

–Você é uma distração terrível, Esther. Simplesmente terrível. – ele disse, beijando-a pela última vez. – Mas infelizmente, eu receio que minha volta se dê de maneira tardia, minha cara. Tenho negócios a tratar já de manhã.

Esther percebeu que Holmes soava misterioso.

–Algum caso que não estou sabendo, Mr. Holmes?

–Nada que mereça sua atenção. – ele disse, concluindo. Já se dirigindo à porta, ele foi interrompido, entretanto, por Esther.

–Você ainda está disfarçado como John Sigerson, Holmes... Não irá se desfazer do disfarce?

Holmes parou momentaneamente e olhou-se de cima em baixo. Estava irreconhecível, algo que lhe viria bem a calhar com seus planos matinais. Ele ainda estava obstinado em saber quem acabara com seu jantar de aniversário e queria poupar Esther desses detalhes. Não era de bom tom perturbá-la com algo que poderia ser insignificante – ou não. Entretanto, caso essa investigação viesse a tomar um rumo perigoso, ele deveria contar a ela. A falta de transparência quase acabou com a relação de ambos há alguns meses atrás e o detetive sabia que as cicatrizes de seus erros ainda não estavam completamente curadas.

–Eu não vou fazer mais perguntas. – suspirou Esther, um tanto desapontada. – Mas saiba que cedo ou tarde eu saberei.

Os olhos cinzentos de Holmes pairaram sobre ela.

–Isso é uma ameaça? – ele perguntou, seriamente.

–Não faço ameaças. – ela disse, um tanto ofendida. – Apenas um aviso, se preferir chamar assim. Não me subestime, Sherlock Holmes. Dificilmente sou uma mulher de dar terceiras chances.

Holmes preferiu sair em silêncio e pulou a janela de Baker Street, ainda disfarçado como John Sigerson. Insignificante ou não, sua pequena investigação seria contado a ela. Ele não queria correr o risco de perde-la outra vez.

–Para o St. Mary Hospital. – ele pediu ao cabriolé.

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St. Mary Hospital. Londres, Inglaterra. 05 de Janeiro de 1895.

Os poucos passos que Holmes deu por Londres vestido como John Sigerson foram curiosos, para dizer o mínimo. Sua roupa trazia muita atenção, de fato. Mesmo em uma cidade tão diversificada como Londres, sua pessoa não passava despercebida, com um sobretudo branco e chapéu de abas largas, além de uma barba cheia. Ninguém poderia dizer que aquele homem de aparência tão exótica era nada mais nada menos que o mais famoso detetive consultor da Europa.

O disfarce era necessário. Holmes sabia que teria de recorrer ao Dr. White, que cuidava da Emergência do Hospital. Como Dr. White era um antigo colega de Watson e também costumava ser um tanto falador, Holmes sabia que sua visita como Sherlock Holmes logo chegaria aos ouvidos de Watson, e que perguntas insistentes seriam feitas.

Assim como todo o restante, Dr. White sentiu-se um tanto intimidado com aquela figura esquisita em sua ala, mas procurou agir com naturalidade.

–A que devo a honra, Mr....?

–John Sigerson. – respondeu Holmes. – Eu estou à procura de um homem que esteve aqui, hospitalizado por um acidente de cabriolé na última madrugada...

O doutor pareceu saber o que ele quis dizer.

–Ah, compreendo. Creio que está procurando pelo Mr... Bruce Finnegan. – disse o médico, checando sua lista.

–Sim, este mesmo. – disse Holmes. – Posso vê-lo?

O médico ficou atemorizado. – Bem, ele... Desapareceu.

Os olhos cinzentos de Holmes quase se soltaram da órbita.

–Desapareceu?!

Dr. White pareceu incomodado. – Não posso dar mais detalhes quanto a isso, Mr. Sigerson, porque aconteceu na troca de plantão. O homem estava com o braço luxado e sofreu algumas escoriações leves, mas eu pedi que ficasse mais um pouco, porque temia que ele tivesse tido uma concussão. Ele estava acompanhado de uma mulher no mínimo estranha, se assim posso dizer. Acho que era turca.

Quando não é indiana, é turca, murmurou Holmes.

–Ela se disse turca?

–Não, mas eu sequer pude ver seu rosto porque estava coberto por um véu. Eu pedi que retirasse, mas o rapaz disse que ela não poderia fazê-lo porque era uma norma de sua religião, algo assim. No entanto, ela falava inglês perfeitamente, embora tivesse um sotaque estranho. Certamente não era inglesa.

–Ela disse o nome?

–Em nenhum momento. Ambos estavam desejosos em ir embora, e pelo jeito conseguiram. Bom, aqui estão alguns dos pertences dele. – disse o médico, mostrando uma caixa. - Estavam em seus bolsos.

Holmes percebeu que pouco havia na caixa, além de um punhado de papéis de aposta e um canivete suíço.

–Bom, eu farei o possível para que estes pertences cheguem a ele. – disse Holmes, convicto. – Muito obrigado, Dr. White. – disse Holmes, apertando a mão do médico e indo embora.

Dr. White observou o sujeito exótico deixando o hospital. No entanto, uma coisa veio à sua mente.

Como diabos ele sabia que eu me chamo Dr. White?

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Andando pelos corredores do Hospital, Holmes analisava os objetos de Finnegan. Um canivete suíço novo, sem qualquer coisa gravada. Pouco dava para saber. O melhor objeto era o bilhete de aposta. Era do The Irish Dragon, um famoso pub do East End e também que sediava torneios de boxe, dos quais Holmes já participou. Era um lugar perigoso, repleto de marginais, um dos motivos que fez Holmes deixar de frequentá-lo desde que ele tivera o dessabor de enfrentar um criminoso em uma luta de boxe que sacou uma faca durante a luta para ferí-lo. Apesar da luta ter sido desleal, Holmes conseguiu derrota-lo, mas sabia que esse evento aconteceria outras vezes naquele covil de marginais. Mas agora, o destino o colocava outra vez ali.

Passando pelo corredor, Holmes acabou esbarrando sem querer em um grupo de pessoas. Ao virar-se, reconheceu uma delas de imediato.

Watson!

O médico, no entanto, estava andando pelos corredores, conversando com outro grupo de médicos, e apenas se desculpou. De todos os lugares do mundo, o que ele estava fazendo ali, no St. Mary Hospital?

No entanto, o pior aconteceu. Instintivamente, Watson virou-se e percebeu o sujeito exótico, bastante parecido com a descrição de Mrs. Hudson. Holmes virou seu rosto de imediato e passou a caminhar rapidamente, sem olhar para trás. No entanto, seu passo partiu para a correria assim que ele ouviu a voz de seu melhor amigo caminhar para um “Ei!”

Para sorte de Holmes, havia pessoas pelos corredores. Ele passou por elas, de maneira desesperada, e as colocou em seu caminho, enquanto travava uma patética corrida com seu melhor amigo. Holmes conseguiu despistá-lo quando entrou em um corredor e entrou em um armário de vassouras. Pela fresta do armário, ele viu Watson passando, correndo atrás de si. Ele ainda pôde ouvir seu amigo exclamar algumas coisas.

–Mas que diabos! Eu tenho certeza de que era aquele miserável! Maldito seja! – reclamava o doutor, ofegante. De repente, uma voz desconhecida surgiu.

–O que houve, Watson?

–Um homem... Um homem de terno branco e chapéu estranho... Barbudo... Ele... Ele é um criminoso! – disse o médico, recuperando fôlego.

–Santo Deus! Há um criminoso aqui? Precisamos chamar a polícia!

–Pois chame, Dr. Klein. Ele é um assassino frio e calculista. Pode estar aqui para matar alguém. Precisamos vasculhar todo o hospital. Esse sujeito ainda deve estar por aqui.

Oh, Watson, mas que bela confusão você me meteu...