Laços de Sangue e Fúria

Um Resignado Lestrade


O Pub da Nielsen Street, percebeu Watson, estava vazio para aquele horário. Era cerca de uma da tarde e não havia ninguém adentrando ali, simplesmente porque a porta estava fechada. Por que Lestrade lhe mandou a um lugar fechado? Seria aquela alguma armadilha?

Watson já estava preparado para dar meia-volta dali quando foi abordado por um rapaz, a bater-lhe no ombro.

–Ele está lá, sir. – disse, abrindo a porta. Por suas vestimentas, deveria ser o servente do bar, ou talvez até o dono. Apenas Sherlock Holmes poderia ser exato quanto a esse tipo de informação, concluiu Watson com certa tristeza a respeito da ausência dele e sua falta de notícias.

E em uma mesa no canto, lá estava o inspetor Lestrade, com uma caneca de metal na mão, cheia de cerveja.

–Espero que meu sobrinho tenha sido gentil.

Watson sorriu, ao saber de seu grau de parentesco com o rapaz. – Na medida do possível, penso eu.

–Pedi a ele que abrisse o bar a partir das 13:30h. Como ele me deve alguns favores, não hesitou. Bem. Como temos pouco tempo, preciso ir direto ao assunto. Seu amigo, Sherlock Holmes, está deveras encrencado. Temo que essa ida de Mr. Holmes à Plymouth irá prejudica-lo no processo. Dificilmente verão sua presença lá com bons olhos.

–O senhor, inspetor Lestrade, deve saber que ameaças não se constituem de arsenal a alguém como o meu amigo. Se algo lhe levou a Plymouth, tenho certeza de que foi nada mais do que uma pista.

–Pelo que pude conhecer, de fato, ele é um homem de seguir apenas pistas, jamais métodos ilegais na obtenção da verdade. O problema é que pertencemos a um seleto e restrito grupo que o conhece verdadeiramente como ele é. E toda essa história de noiva, de rompimento de noivado, traição, crime passional e testemunho... Isso está sendo um prato cheio à imprensa. Ainda mais porque Mr. Holmes tornou-se um homem reconhecidamente racional e distante, solteirão e com uma estranha desconfiança às mulheres.

–Está me culpando por exagerar em suas descrições? Juro que seu comportamento é...

–Desculpe-me, doutor. Mas às vezes, Mr. Holmes está correto. Você deixou sua personalidade muito à vista de todos. Por causa de seus escritos, eu sei que ele alimenta uma espécie de paixão platônica por uma atriz golpista, por exemplo, e que ele mantém uma fotografia dela dentro da gaveta!

Watson ficou impressionado com a reação de Lestrade, e parou para refletir sobre si.

De fato, ele tinha errado em expô-lo desta maneira? Se ele não tivesse mistificado Holmes a esse ponto, tentando mostrar seu lado humano, haveria tamanha perseguição da imprensa a sua pessoa? Sua situação estaria mais branda, se ele não fosse tão reconhecido? Quando ele o conheceu há anos atrás, no caso que rendeu um escrito chamado “Um Estudo em Vermelho”, Holmes era um detetive consultor conhecido apenas no meio policial, procurado apenas em causas urgentes por pessoas que já não contavam mais com a polícia. E agora, não havia uma pessoa na Europa que não soubesse quem era Sherlock Holmes, de suas qualidades, defeitos, vícios e virtudes.

–Há certos aspectos da vida de um homem que merecem ser privados. O senhor comenta quanto aos hábitos de Mr. Holmes, sua maneira de ser, mas pouco diz, por exemplo, de sua própria esposa, de sua vida doméstica...

Watson se indignara.

–Não haveria o porquê de incluir a minha vida particular nas histórias.

O inspetor deu mais um gole em sua bebida.

–Pois aí está o diabo! – disse o inspetor. – O público pode saber que Mr. Holmes ficou admirado com uma cliente, mas não pode saber se você leva sua esposa ao Teatro.

Watson suspirou, envergonhado.

–Eu também confesso, é claro, que deparo-me vez ou outra com uma mulher atraente em minha carreira de policial... Que minha Maggie não me escute... – murmurou o inspetor, um tanto tímido. – Mas eu não coloco isso nos autos, e muito menos em minhas declarações à imprensa. Aposto que o mesmo deve acontecer ao senhor, em seu consultório médico... Dificilmente o vejo como um homem falante, que conta tudo que se passa em sua vida privada aos seus pacientes.

–É verdade. – concordou Watson.

–O fato, Dr. Watson, é que parte dessa agitação social, que tenho certeza de que irá afetar no julgamento, é culpa sua. Você criou um monstro, Doutor. Você e seus escritos românticos.

–Irá me culpar também pela reabertura do caso? Não? Pois estou surpreso. – disse Watson, irritado. – E eu espero sinceramente, inspetor Lestrade, que esse encontro aqui não seja uma tentativa sua de saber o paradeiro de Holmes, porque se for, eu temo que falhará em sua missão. Nem eu mesmo sei onde ele está, e também estou preocupado com sua falta de notícias.

O inspetor pareceu irritado.

–Esse caso não é meu, Dr. Watson, tampouco de alguém de minha estima na Força. Não concordo com os métodos do inspetor Phelps...

–Então era esse o nome do insolente... – resmungou Watson.

–O inspetor Phelps e eu nos formamos na mesma turma, na Scotland Yard. Ele sempre foi um homem de métodos... Duros.

–Quer dizer que o homem é agressivo?

–Sempre foi. Tortura faz parte de seu methiér.

–Faz parte de muitos da Yard.

Lestrade permanecia irritado.

–Ele tortura inocentes, Dr. Watson. Não criminosos apenas. Fui claro?

Encarando os olhos castanhos claros do inspetor, Watson tentava entender.

–Então, você quer frustrá-lo... O que é isso, uma rivalidade mal-resolvida do passado?

O inspetor deu um gole em sua cerveja.

–Talvez, mas não apenas isso. Eu não quero que ele coloque as mãos em Mr. Holmes.

Watson sorriu.

–Oh, mas agora eu entendi aonde quer chegar, inspetor! O senhor deseja obtê-lo, para adquirir glória e fama por capturar Sherlock Holmes!

Lestrade mostrou-se ofendido.

–Não é isto, doutor. Simplesmente quero garantir que seu amigo chegue, ao menos no tribunal, com os dedos inteiros, com todas as unhas e se possível sem hematomas. Pois isso não irá acontecer se quem pegá-lo for Phelps. Ele tortura por simples divertimento. – por fim, o inspetor suspirou.

–Foi o Mycroft quem lhe pediu isso, não?

Resignado, o inspetor confessou.

–Sim. Ele me mandou um recado, pedindo para se encontrar comigo no Clube Diógenes. Fiquei surpreso, pois não somos amigos e nos encontramos em raríssimas ocasiões, todas envolvendo Sherlock Homes como bem sabes, mas apesar de minha estranheza com o convite, fui vê-lo. Mycroft Holmes não demonstrou nada, mas pude sentir que ele também não tem notícias de Mr. Holmes. E ele está a par do andamento do processo, não me pergunte como, pois me pareceu conhecer os métodos de Phelps, o inspetor de Plymouth responsável pela investigação. Creio que ele está mais a par dos reais perigos que seu irmão corre do que você, doutor.

Foi com essa frase, nada confortante, que o inspetor Lestrade se levantara, deixando Watson ainda a refletir.

–Deseja almoçar, senhor? Hoje temos bife com cebola. – perguntou o jovem, sobrinho de Lestrade, indo abrir a porta do pub.

–Er, não. – disse Watson, levantando-se. – Obrigado.