Laços de Sangue e Fúria

O Detetive Agonizante


Londres, Inglaterra. 15 de Fevereiro de 1895.

Esther estava cansada. Ela virou-se na cama. Passava das oito da manhã. Em outros tempos, já estaria de pé, tomando café da manhã com seu amigo, John Watson, a prima estranha dele, Miss Diane Watson, e seu marido secreto, Sherlock Holmes. Mas não mais. Naquela manhã, tudo que ela queria era ficar um pouco mais na cama, pois a sensação que seu corpo tinha era de que sua noite sequer começara.

Holmes tivera febre a noite inteira. Delírios, tremedeiras, inquietação. Richard e Esther colocavam compressas sobre sua cabeça, tentando amenizar a febre. Tudo parecia em vão.

–Esther... Esther... – ele balbuciava, submerso em seus delírios febris, arrancando lágrimas dela.

Isso se repetia quase todas as noites, desde que Richard parou de administrar as doses de morfina. Ela temia que essa maldita droga o matasse, ou lhe deixasse dependente, no mínimo. Escutara coisas horríveis de soldados feridos submetidos à doses prolongadas de morfina, e de sua doentia obsessão pela droga mais tarde. Para mal ou para bem, Holmes sempre se mostrou controlado, apesar de usá-la futilmente.

–Você tem certeza de que...?

–Tenho. Absoluta certeza. Eu não quero que droga nenhuma o escravize.

Entretanto, as crises eram cada vez mais frequentes e intensas. No dia seguinte, culminou em uma cena que Esther jamais pôde imaginar, nem em seus maiores pesadelos.

Sherlock Holmes estava chorando. De dor.

Algumas lágrimas escorriam visivelmente de seus olhos. Seu rosto também estava contorcido e seu corpo, mesmo inconsciente, se mexia involuntariamente, contorcido pela dor. Coube a Esther buscar contê-lo, com pouco sucesso. Após a crise, o curativo de Holmes estava encharcado de sangue, a ponto de manchar parte do lençol. Richard observava com gravidade a situação, até decidir fazer mais uma pergunta.

–Não vejo outra solução, senão a morfina. A dor que ele está sentindo sem a droga não está ajudando com a cicatrização da ferida e eu temo que...

–Tudo bem... – assentiu Esther, interrompendo Richard.

O médico suspirou.

–Entendo sua insegurança, Esther, mas garanto-te que... O que estarei aplicando nele não é nada muito acima do que ele deve aplicar em si mesmo. Se ele sobreviveu a algumas sessões, certamente sobreviverá a mais algumas. Eu sinto muito, mas...

–E-E se isso piorar o vício dele? Afinal, ele terá de usar todos os dias, e se uma coisa que ao menos eu posso te garantir é que ele usava essa maldita droga com pouca frequência.

–É uma probabilidade, reconheço, mas é só uma probabilidade. Mas por enquanto, vamos nos esforçar em trazer sua cura. Depois pensamos nas consequências.

Desde aquele dia, Sherlock Holmes recebia doses diárias de morfina, que passaram a lhe garantir noites melhores de sono. As crises passaram, mas o fantasma do vício ainda rondava Esther. Ela não queria ser responsável por afundá-lo ainda mais nas drogas, e rezava para que seu medo não se concretizasse.

Fazia três dias que Sherlock Holmes passou a ser medicado com morfina, à contragosto de Esther, quando o médico Richard Revington lhe procurou em uma manhã, não parecendo trazer boas notícias.

–Esther... Eu preciso te avisar sobre uma coisa.

O tom de voz de Richard era sério.

–Minha sobrinha, Charlotte. Ela volta amanhã.

Esther assentiu.

–Se você quiser, eu posso arranjar um lugar para ele e...

–Não. – disse Richard, impedindo-a de continuar. – Ele não está em condições de sair ainda. E ele é meu paciente. – afirmou, com orgulho.

Esther deu de ombros. – Está bem. Mas como fará, caso essas crises continuem?

–Permitirei que Charlotte durma na casa de uma amiga dela, daqui da rua.

Um alívio percorreu Esther. – Ótimo. Nem sei como agradecer, Richard...

Richard sorriu. – Mas eu sei. Diga a seu marido, por exemplo, que quero que ele me diga o que verdadeiramente aconteceu no “Caso do Intérprete Grego”?

–Co-Como?! – Esther ficou consternada.

Fingindo indiferença, Richard prosseguiu. – Duvido que aquele caso terminou como o Dr. Watson disse, duvido muito mesmo. Aposto que eles perseguiram os bandidos no final.

Esther ficou envergonhada momentaneamente. E as risadas de Richard não ajudavam.

–Assim que você disse que morava em Baker Street, fiquei com suspeitas. Havia também as cicatrizes nos braços, típicas de um viciado, tal como diz os contos. E houve um delírio dele que ele citou Moriarty... Ou ele é um fã extremo do detetive, ou... É o próprio em pessoa.

Esther corou-se. Para surpresa dela, Richard deu um salto de felicidade.

–Eu não acredito! Ele é real! Não é um personagem literário! Por Deus, e está deitado em minha cama! E eu sou o médico dele, não o Dr. Watson! Há-há!

Esther sentiu vontade de rir de sua reação um tanto infantil, mas se conteve.

–E você é casada com ele mesmo? Mas ele é solteiro nas histórias...

Foi o momento de Esther se assustar.

–Escute... Richard, ninguém pode saber de meu casamento com ele. É segredo!

–Tudo bem, eu não vou contar pra ninguém.

–Além do mais, você já leu os jornais?

Esther assentiu. Não havia outra manchete estampando as capas senão o mandado de prisão preventiva expedido contra Sherlock Holmes, por intromissão no curso de uma investigação. Aquele assunto lhe inquietava. Ele estava gravemente ferido, ainda inconsciente e diante da possibilidade de ser preso a qualquer momento. Embora lhe doesse deixar Watson, que era um médico experiente, completamente alheio á real situação de Holmes, Esther sabia que Holmes teria lhe recomendado isso. Não que o bom médico fosse alguém indigno de confiança, mas Watson sofria de um problema: era honesto e não saberia mentir. E além disso, havia Diane. Desde a confusão ridícula causada por ela, que causou a “fuga” de Holmes, Esther andava desconfiada das reais pretensões dela. Seria ela de confiança? Ela não mais sabia. Não depois de mentir descaradamente em benefício próprio. Fosse o que fosse, algo lhe dizia para manter distância da moça.