Londres, Inglaterra. 23 de Dezembro de 1894.

Passava das dez da manhã quando Esther terminara de datilografar uma carta do Departamento de Transações Comerciais, em Francês. O assunto daquela carta, e ao que indicava, das próximas, era entediante. Acordos comerciais, pequenos ajustes... Seu trabalho tornava-se tão mecânico que ela sequer se dava ao trabalho de lê-las. Simplesmente as digitava.

Para começar, havia ainda um outro fator a incomodando. A maneira como estava sendo tratada por certos funcionários. Embora Esther conhecesse pouquíssimos espiões e suas relações com eles fossem bem comedidas, ela sabia que muitos se incomodavam de ter uma mulher ocupando posto semelhante – e com maestria. Ainda assim, ninguém jamais falou a respeito disso diretamente, mas agora, que ela se encontrava em situação desfavorável, eles pareciam ter encontrado uma nova maneira de entretenimento, tripudiando com a nova “secretária”.

Ao menos era esse sentimento que passava, quando lançavam, de maneira debochada, um grande volume de papel para que ela digitasse. Fora o olhar de vitoriosos. Machistas, todos eles... murmurava Esther, em seus pensamentos. Ela jamais sentira tanta falta do pequeno revólver que costumava usar em serviço.

–Hora de parar de brincar de casinha, Esther. Há trabalho de verdade a fazer. – disse Mr. Sparks, em uma tarde qualquer, para total suspiro de Esther.

Mais uma vez, Esther estava naquela sala sem mobília, tendo apenas o Agente Morrison recostado a parede, enquanto fumava um cigarro.

–Quando uma dama está presente, Agente Morrison, você deve pedir permissão para fumar. Aliás, essa regra se aplica a qualquer pessoa.

O Agente lançou o cigarro levemente ao chão e o apagou com a ponta do pé.

–Melhor assim.

Mr. Sparks tinha uma particularidade. Ele não fumava, e praticamente “tolerava” o fumo, e sempre que poderia lhe fazer, ele o evitava. Esther não se lembrava de um homem que fosse na Inglaterra com tal característica. Mesmo Watson, um médico zeloso, não resistia à um cigarro indiano depois da refeição.

Todos os presentes na sala sentaram-se à mesa, único objeto naquela sala. Imediatamente, Mr. Sparks abriu a pasta, que vinha teazndo, e revelou seu conteúdo, que deveria ser sua próxima missão.

–Recebemos uma denúncia de que há um novo espião em solo britânico. O nome dele é Wilfred Hemsworth...

A conversa se seguiu, com a exibição de fotos das mais variadas, desde o rosto do suspeito até sua casa, além de um mapa com certo ponto de Londres. Sparks apenas era interrompido por eventuais perguntas e observações de Esther e Morrison, entretanto uma boa parte vinha da parte dele. Esther percebeu que, embora parecesse um cretino. Morrison era um bom espião, interessado e atento.

–Dou-lhes uma semana para analisarem a rotina desse espião. Quero que vigiem seus passos, desvendem suas associações e tragam-me o nome de pessoas de interesse. Amigos, amantes, o que for. E não preciso lembrar que sejam cuidadosos.

–Cuidadoso é meu nome. Aliás, Agente Katz, qual é seu primeiro nome?

–Agente. – respondeu Esther, com rispidez.

–Por favor, sem desavenças. Uma equipe dividida é tudo que não quero. Eu disse que não queria proximidade, mas não queria também que vocês se matassem por pouco. O nome dela, Mr. Morrison, não é de utilidade alguma para nossos trabalhos, bem como o seu. Agora, senhores, estão dispensados.

Esse era o tipo de rotina que envolvia Esther. Desde que voltou à agência, Esther encontrava-se submersa em um trabalho mais complexo e perigoso ao que estava acostumada. No início, o temor era frequente, mas com o passar do tempo, sua vida começava a adentrar nos perigosos trilhos nos quais foi conduzida.

E esses perigos trilhos incluíam gente como Wilfred Hemsworth.

Depois que conseguiram entrar na casa do espião inimigo em potencial, Esther e Morrison precisaram apenas de dez minutos para vasculhar por completo todo o quarto do suspeito. Como descobriram, de fato ele era um espião alemão. Havia, em uma caixa escondida debaixo do colchão da cama, um distintivo militar e cartas em alemão, que foram lidas e anotadas rapidamente por Morrison.

–Mais um deles. – disse Morrison, enquanto colocava as coisas no lugar. – Pelo visto, temos trabalho encerrado, minha cara Katz.

Esther sorriu fracamente. Com o tempo, estava se acostumando às impertinentes cantadas de Morrison, especialmente ao perceber que não era a única. A uma semana atrás, ela finalmente decidiu ceder ao convite dele e foi a um pub. A experiência lhe fez ver o quanto Sherlock Holmes era um tesouro de homem, por ser tão distante e frio das mulheres que eventualmente lhe rodeavam – algo bem diferente de Morrison, mais preocupado em espalhar pela Terra seu “calor humano”. Que fosse. Contanto que longe de mim, concluiu Esther.

Era por volta das duas da tarde quando os dois chegaram ao pub, que ficava perto do prédio da Agência. Ali, costumavam almoçar alguns funcionários, nunca espiões. Eles sempre preferiam jantares de luxo nas partes mais ricas da cidade, não em um modesto pub rodeado de trabalhadores.

Mas Morrison não era assim. E a julgar pelo seu comportamento, ele era assíduo frequentador, lançando inclusive cantadas para a pobre atendente.

–Eu ainda sonho com o dia em que você vai me servir uma porção de você mesma, Liz... – disse ele, de modo paquerador.

Céus, mas que cretino..., pensava Esther, enquanto o via piscar para a moça.

Morrison bebeu um copo de cerveja, enquanto Esther não passara do suco.

–Quantos anos você tem, Miss Katz?

–O que é isso, um questionário? – ela perguntou, de forma neutra.

–Não... – disse Morrison, olhando para seu copo quase vazio. – Apenas gosto de conhecer melhor meus parceiros... Digo, parceira. A não ser que prefira que eu te chame de parceiro.

–Não seja estúpido. – disse Esther, irritada. Por fim, cedeu. O que poderia haver de mal nisto? – Vinte e cinco.

Morrison pareceu surpreso. – Estou impressionado agora. Não daria tão pouco em você. Não que você pareça mais velha, longe disso, mas... Pela profissão que tens.

–Acha que só estou onde estou por causa de meu pai, não é?

Morrison apenas assentiu. – No começo, sim. Na verdade, essa é a opinião de muitos na Agência.

–E eles não deixam de ter razão. Eu pedi por isso.

Morrison assentiu. Para surpresa de Esther, sem recrimina-la.

–Meu pai e meu avô eram militares. Entrei para o Exército com regalias, posso dizer, e poderia ter continuado assim. Escolhido o lugar que eu quisesse, em pouco tempo ter me tornado oficial... Mas eu não quis assim. Fui recrutado para cá, e... Torne-me o que sou por mérito próprio. Muitos também não acreditam nisso. Estamos no mesmo barco. – ele disse, fazendo seu copo tilintar no dela.

Mais duas cervejas passaram na mesa, todas na mão de Morrison. Não à toa, ele ficou ligeiramente solto, mais divertido.

–Você realmente é casada, ou isso foi só Sparks tentando me assustar?

–Sim, eu sou casada. Casadíssima, por sinal.

Morrison estava risonho, mas ainda contido.

–E quanto a você? – perguntou Esther, antes de tomar mais um gole de seu suco.

–Não sou casado, mas tenho planos. – ele disse. – Uma moça em vista. Eu a conheci a alguns meses. Estou pensando em propor matrimônio a ela.

–De fato?

Enquanto Esther fez essa pergunta, Morrison passou a mão pela cintura da atendente, que riu em provocação de volta.

Céus, pobre moça a que casar com ele...

–É o que vamos ver. – ele disse. – Precisa ser muito especial para conquistar um tipo como eu. – ele disse, de maneira galanteadora e nada humilde.

Afora esse evento, como muitos outros perigosos exigidos por sua vida como agente do Governo, a vida de Esther estava na normalidade – bem, a normalidade aceitável para quem era vizinha de Sherlock Holmes e Dr. Watson, nos últimos tempos as pessoas mais notórias de toda a Londres, talvez da própria Inglaterra. Fazia alguns meses desde que Esther fora convidada a morar em Baker Street, ao lado de seu marido secreto, e mesmo que o começo tenha sido difícil, por praticamente esconderem a realidade de seu relacionamento, ela ainda sentia-se feliz, por compartilhar com Sherlock uma “quase” vida de casado.

Era perto das cinco da tarde quando Esther retornou para casa. Encontrou apenas o Dr. Watson, começando a ler seu jornal, sentado perto da lareira, numa pose tão característica sua que poderia ilustrar um quadro, ela pensava. Ele fumava um cigarro do tipo indiano, de cheiro bem exótico, e trazia o semblante tranquilo, algo que era quase natural em si.

–Como vai, Sophie? – ele perguntou, amistosamente, com seu jeito galanteador.

–Muito bem, John. – disse Esther, sentando-se. – Acredito que sua rotina tenha sido mais entusiasmante que a minha, ao menos.

–Não muito. Hoje só tive consultas, nenhuma emergência. E quanto a você, querida?

Oh, Watson, pare com isso. Seu amigo não vai gostar de ouvir esses seus galanteios...

Esther mexeu uma das mechas loiras e onduladas de sue cabelo para trás de sua orelha, gesto que costumava fazer quando mentia – e que Watson não sabia disso.

O que quer saber exatamente? Quando invadi a casa de um alemão perigoso, franco atirador e vencedor de duas medalhas de honras do Exército da Alemanha e mexi em seus objetos pessoais, ou que eu estive duas horas em um pub difamado com o perigoso Agente Morrison, escutando música irlandesa depravada e suas insinuações para a garçonete?

Realmente, Watson... Que dia entediante foi o meu...

–Nada demais, Watson. Apenas escrevi cartas o dia inteiro.

O médico não parecia surpreso. – Oh... Bem, é o que se espera ouvir de uma secretária, não? – ele sorriu. –Mary também me dizia sempre as mesmas coisas. Não se preocupe, Sophie. Não é porque você está cercada de pessoas de profissões incomuns que você também deva ter uma profissão incomum. A minha, por exemplo, também tem pouca agitação. Um marasmo completo.

–Certamente, não mais que a minha.

–Pode ser.

–E quanto ao Mr. Holmes? – perguntava Esther, disfarçando interesse, enquanto preenchia uma xícara de chá.

–Ainda está em Manchester. Parece que não conseguiu resolver o problema de sua antiga cliente...

–De fato? – perguntou Esther, disfarçando surpresa – e certo ciúme nisto. Watson tinha segundas intenções na voz, o que a deixava ainda mais irritada de pensar na possibilidade de seu marido com outra.

–Acaso já lestes “As Faias de Cobre”? Pois bem. Parece que Miss Violet Hunter está tendo problemas na escola, e Holmes não hesitou em ir lá ajuda-la. Pelo que ele me posicionou em telegrama, foi algo mais complexo que ele imaginava. – Watson suspirou. – Na época, pareceu-me que ele tinha certo... “Encantamento” por ela. Não sei explicar, mas... Raramente o vi preocupado com uma cliente como ele ficara com Miss Hunter. Chegou a dizer, quando ela aceitou o emprego, que não desejaria isso para “irmã alguma”.

–Eu cheguei a ler no livro, lembro-me disso. Pensei que você estava tentando preenche-lo com um pouco mais de... Romance.

Watson ficou ligeiramente irritado, pois isso lembrou-lhe das frequentes reclamações de Holmes sobre sua visão romantizada.

–Não, Sophie. Eu não inventei coisa alguma. Eu narrei naquele conto exatamente o que vi, e tal como disse, eu adoraria que meu amigo tivesse ido mais além. Algumas vezes, eu penso que lhe falta mais atitude. Acho que o campo amoroso é uma área negligenciada por ele. Se alguma vez ele sentiu-se balançado por alguma moça, certamente não demonstrou, por medo ou insegurança, além de se resguardar por temer os efeitos e males de uma paixão, ou até mesmo de um amor.

Esther preferiu não replicar. Resolveu, então, mudar o rumo daquela conversa.

–Watson, quando Mr. Holmes faz aniversário?

Watson estranhou a pergunta de Esther. Que interesse ela poderia ter nisto?

–04 de Janeiro.

Imediatamente, o rosto de Esther se decepcionou. Ele mentira sobre sua data de nascimento quando estava disfarçado como John Sigerson. Ela se lembrara de contar a ele sobre seu aniversário, e em troca, ouvir o dele. E ele disse 23 de Outubro. Certamente, ele disse uma data qualquer na hora, para não revelar ainda mais sobre si mesmo.

Dane-se, ela iria comemorar o aniversário dele mesmo assim.

–Mas porquê pergunta?

–É que... Eu resolvi fazer um jantar especial justamente neste dia: 04 de Janeiro. A princípio, não possui um motivo forte. Queria apenas comemorar... Comemorar minha estadia definitiva em Londres. Só estou perguntando porque, caso ele viesse a comemorar por estes dias, poderíamos aproveitar a ocasião para comemorar o seu aniversário também.

Até mesmo Watson estranhou o motivo, sem nexo.

–Bom... Se você quer fazer um jantar... Creio que será maravilhoso. E seu motivo de usar a ocasião para comemorar o aniversário de Holmes é nobre, minha cara, mas ele jamais gostou de comemorar seu próprio aniversário.

Esther lembrou-se de Montpellier, quando ele a levou para jantar em um restaurante judaico no dia do seu aniversário, e tentou surpreendê-la com presentes. Poderia haver duas pessoas em uma só?

Watson continuou.

–E eu só sei disso porque uma vez, ele deixou escapar isso. Nem lembro o que o fez fazer isso, mas... Enfim, Holmes é um homem reservado. Demorei anos para saber que ele tinha um irmão, e jamais soube sobre o nome de seus pais, ou mesmo se tem outros irmãos. Seu passado se restringe aos tempos que ele ocupava um quarto na Montague Street, e ainda assim, são escassas informações.

–Um quarto na Montague Street? Eu conheço o lugar ao entorno e não consigo imaginar Mr. Holmes morando por ali...

Watson riu. – Oh, mas ele já o fez, sim. Eram outros tempos.

E os dois passaram horas ali, conversando sobre Holmes. Watson não tinha qualquer pudor de revelar os pequenos segredinhos de Holmes. Falou do quão tímido ele era para tais assuntos, de seus gostos musicais... Esther conhecia algumas coisas, mas ficara surpresa em saber outras. Nenhuma delas, entretanto, fazia menção à sua vida antes de Baker Street e seu passado cada vez mais distante e isolado. Holmes sabia ser preservado quando queria e mantinha sua vida antes de ser um detetive consultor à sete chaves.

Por final, após soltarem muitas risadas, Watson a surpreendeu.

–Tem planos para o Natal, Sophie?

Natal. Essa data nunca teve muito significado para ela. Sua família judia não acreditava nisto. No entanto, desde os dez anos, quando escondiam sua religião, ela passou a participar de jantares natalinos. Conheceu toda a história a cerca do Natal, mas ao voltar para casa, seus pais a faziam acreditar que aquilo não passava de um conto de fadas, e que os judeus ainda aguardavam pela vinda do Filho de Deus.

–Bom, não muito. – ela respondeu à pergunta de Watson.

–Bem... – disse Watson, com carinho. – Você pode passar o Natal comigo, se quiser. Posso pedir a Mrs. Hudson preparar algo especial...

–Seria ótimo, Watson. Seria... Ótimo.

Esther ficara triste, de repente. Tinha esperanças de que passaria Natal e Ano-Novo, pela primeira vez, ao lado de Holmes. Mas agora, ele estava do outro lado do país, a trabalho. Passariam longe, um do outro. Enquanto observava Watson pegar em sua mão, carinhosamente, Esther se perguntava se, agora, submerso em seu trabalho, ele tinha o mesmo sentimento que ela: saudade.

Assim que pensou em Holmes, Esther teve o gesto imediato de se esquivar do gesto de carinho de Watson, deixando-o resoluto de imediato – mas não menos esperançoso.