Laços de Sangue e Fúria

A Tentação Mora em Manchester


Manchester, Inglaterra. 03 de Janeiro de 1895.

Holmes terminava de lavar seu rosto. No espelho, encarava seus olhos cinzentos, com leves olheiras. Sua pele estava levemente rosada, por conta dos últimos dias, em que precisou usar uma falsa barba. Certamente, teria de comprar outra cola, pois estava com alergia àquela, ele pensava enquanto se barbeava.

Uma pena mesmo, ele murmurava. Estava há uma semana em Manchester, resolvendo um caso para sua ex-cliente, Miss Violet Hunter. Ela, agora diretora em um Colégio para Meninas, tal como Watson dissera no conto “As Faias Cor de Cobre”, do Strand, o procurou no mês de dezembro, implorando por ajuda. Tratava-se de um desvio de dinheiro no colégio, que estava envolvendo um dos funcionários, e evidentemente, a polícia não era uma boa alternativa. Não com sua cabeça na guilhotina, como era o caso dela.

Holmes aceitou o desafio, acreditando que seria algo rápido e simples.

Não foi.

O fato é que já havia mais de vinte dias que ele estava em Manchester. O caso era mais complicado do que ele presumia. O ladrão fora esperto, e parecia encobrir seus rastros. Por causa disso, passara o Natal e Ano-Novo em Manchester, trabalhando com Miss Hunter na resolução deste conflito.

Longe de Esther.

Esther. Ela, que ficou visivelmente enciumada com a cliente, talvez tivesse lá seus motivos. Mesmo sob o disfarce de irmão da moça, Holmes não era tão ingênuo – talvez não tanto nos tempos de solteiro – e sabia que, realmente, sua esposa estava correta em seu julgamento. Miss Hunter estava, ainda que discretamente, encantada por ele. Talvez esse encantamento já existisse desde a época do primeiro caso, mas ele dera pouca importância ou sequer percebera. Mas agora, que ele já era experiente nos assuntos amorosos e sabia reconhecer o olhar de uma mulher apaixonada, nada lhe tirava essa certeza. Sim, aqueles olhares durante o jantar, o zelo, a obsessão em sempre ajeitar sua gravata – e ficar a centímetros de seu rosto... Holmes ficava constrangido, e se esquivava. Isso parecia o suficiente, mas nem mesmo ele sabia por quanto tempo o artifício iria ser eficaz.

Ele jamais sentira tanto desejo de voltar logo para casa.

Primeiro porque o caso em si fora uma tremenda fraude. Não havia roubo algum. Toda a farsa foi descoberta por causa da cor da caneta, que o “larápio” usara para assinar uma das notas frias. Nenhum dos funcionários e professores tinha, além de Miss Hunter.

Depois, ele descobriu que o dinheiro era direcionado para uma conta no Banco, e em seguida, transferido para a Conta da Escola. No final, não havia roubo nenhum.

Mas que diabos estava acontecendo? Miss Hunter estava forjando um roubo apenas para chamar sua atenção, para conseguir passar um tempo com ele? Ela ainda não tinha voltado de uma visita à uma amiga, e ele só esperava sua volta para que ele a confrontasse – e decretasse o fim de sua desnecessária estadia em Manchester de uma vez por todas.

Além disso, depois de amanhã era seu aniversário e ele queria passar com Esther. Seria o primeiro aniversário juntos. Ela sabia a data, e apenas em pensar o tipo de surpresa que provavelmente lhe aguardava em Baker Street o seu coração já disparava.

Com o rosto já limpo, ele ouvira o cabriolé estacionando, na frente da casa. Pela janela, ele a viu desembarcar. Já de posse dos documentos do colégio, Holmes apenas a esperou chegar.

–Oh, Mr. Holmes... – disse a moça, se desfazendo de seu casaco. – Espero que não esteja com muita fome, por conta de minha demora. O que foi?

Holmes não estava com semblante de bons amigos. Sem cerimônia, ele despejou sobre a mesa os papéis do Colégio, bem como o tinteiro dela. Diante do olhar envergonhado da moça, numa completa atestação de culpa, Holmes começou a dar passos, de um lado a outro, enquanto comentava.

–Esta tarde, enquanto você lidava com trabalhos burocráticos, decidi fazer um pouco também. Fui até o Bank of Manchester, onde o gerente me deixou a par dos saques da conta 12.445-7, em nome de Armand Livington. Descobri que uma mulher chamada Judy Reinolds apresentou uma procuração e fez a abertura da conta, três dias antes do Colégio começar a depositar. Também descobri que a conta tinha apenas um movimentador autorizado. Você.

–Eu posso explicar...

Holmes estava furioso por dentro, mas controlou-se.

–Adoraria que o fizesse, Miss Hunter, e agora mesmo. Pois já estou com passagens compradas de volta à Londres, onde espero não ser mais incomodado indevidamente...

–Não! Por favor, não vá!

Para surpresa de Holmes, Miss Hunter lançou-se aos seus joelhos. Ela abraçava suas pernas com força, numa expressão desesperada e doentia. Nervoso e encabulado, Holmes tentava separá-la, mas Violet não parecia soltá-lo por nada.

–Miss Hunter, por favor...

A moça chorava. – Oh, Mr. Holmes... Eu estou tão arrependida do que fiz... – ela disse, pondo-se de pé outra vez.

–Por quê? – perguntou Holmes, sequer imaginando que se arrependeria de sua pergunta no próximo instante.

Porque a resposta que recebera fora um beijo.

Holmes tentou se separar, mas Violet Hunter o agarrara firmemente, envolvendo seus braços em seu pescoço. Por final, a jovem finalmente lhe largou.

–Pare com isto! Pare! – ordenou Holmes, que ficara tão sem compostura que quase empurrou a moça. – O que pensa que está fazendo?

–Eu sou apaixonada por você! – declarou-se Violet. – Suspeito que o seja desde o dia em que nos conhecemos.

Holmes suspirou. – Miss Hunter... Eu entendo que você sinta algum tipo de admiração por mim, afinal eu salvei você daquele crápula do Mr. Rucastle, te ajudei em um momento atribulado de sua vida, mas... Não há a menor possibilidade de termos qualquer coisa além de... Uma mera camaradagem. – disse Holmes, tentando não ser indelicado.

Violet deu mais um passo, enquanto Holmes se esquivara com outros dois.

–Eu sei que o que fiz foi errado, mas entenda, foi o melhor subterfúgio que encontrei para ficar outra vez perto de você. Por favor... Fique.

Violet tentou pegar na mão de Holmes, mas ele desviou, como se pegasse fogo.

–Passe ao menos uma noite comigo... Se não podes dar-me amor, ou um compromisso sério, ao menos uma noite.

Holmes arregalou seus olhos, começando a ficar encabulado com a proposta nada decente de Miss Hunter. Nem mesmo parecia a mesma moça de anos atrás, que lhe procurara em Baker Street. Será que ela já estava apaixonada por ele naquele momento? Ou será que fora o tempo que transformara uma paixão platônica em algo tão doentio? Holmes pouco sabia do amor, e agradecia aos céus por seus sentimentos por Esther serem bem mais simples. Embora ele sempre se sentisse fascinado por coisas complexas, sentimentos complexos lhe davam repulsa.

–Não, Miss Hunter. Minhas malas estão prontas. Não há mais nada que eu deva fazer aqui, em Manchester. E apesar de tudo, eu sinto muito, se meus sentimentos não correspondem aos seus.

Para surpresa de Holmes, Violet alterou completamente sua postura. Lançou-se contra Holmes, num acesso de fúria desenfreada, mas foi detida pelo próprio, segurando-a pelos braços.

–Eu não quero te machucar. Por favor, pare... – disse Holmes, enquanto a moça se contorcia. Depois de um momento, finalmente a jovem se cansou, e ele a soltou.

–Fora daqui! – ela gritou, numa ira em meio à lágrimas. – Vá! Fora daqui!

Holmes não pensou duas vezes. Faltavam cerca de duas horas para ele pegar o trem para Londres. Não se importava de passa-las na estação, longe daquela mulher louca. Reuniu seus poucos pertences e foi-se embora à pé da Vila dos Professores, nos arredores do Colégio de Meninas.

Uma neblina se sobrepunha sobre a estrada, naquele cair de tarde. Algusn primeiros pingos começaram a cair, e trovões anunciavam chuva forte. Apenas para completar a sorte de meu dia, pensou Holmes, enquanto enrolava ainda mais seu cachecol, para se proteger do forte vento que cortava a estrada. Por sorte, viera um cabriolé em seguida.

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Já embarcado no trem, enquanto observava a paisagem correr, em meio à escuridão onde apenas o luar e muitas estrelas traziam alguma iluminação àquelas pastagens, que pareciam lhe alertar de que ele ainda estava em Manchester. Olhar para aquela paisagem lhe despertava lembranças de seu próprio passado. A infância em Yorkshire, em especial. Mas naquele momento, seu pensamento estava ocupado por outra coisa.

Violet Hunter. Como ela pode ter mudado tanto? A estadia na casa, fazendo-se passar por seu irmão, lhe fez descobrir coisas. Dentre elas, que ela estava envolvida com um homem casado, marido de uma das professoras do colégio. Ele a pegara no meio da noite, aos beijos com ele, na escuridão do quintal. Não ficara a assistir, mas sabia que a intimidade entre os dois sugeria mais coisa que os beijos testemunhados naquele momento.

E havia este falso caso, arquitetado por ela. Realmente arquitetado por ela? Ele tinha lá suas dúvidas. Ela era uma mulher astuta e corajosa, disso ele sabia, mas o golpe era sofisticado demais. Tão intricado que custou semanas para sua resolução (inclusive Natal e Ano-Novo longe de Esther e com uma estranha). Casos envolvendo Finanças e Sistema Bancário sempre acabam demandando tempo e são sempre difíceis de serem arquitetados.

Não. Ele não poderia ter sido desenvolvido por ela. Alguém pensou por si.

Ele se lembrava de quando esteve no Banco. Das palavras do gerente.

–Era uma mulher loira que abriu essa conta, disso eu me lembro. Era belíssima. Assinou como... Judy Reinolds. Depois, recebemos essa procuração... Judy Reinolds dando poderes de movimentação à... Violet Hunter.

Alguém arquitetou esse plano. E era essa Judy Reinolds.

Algo lhe dizia que seus caminhos ainda se cruzariam.