Havia um cortiço nos arredores da Filthy Avenue que escapava do conhecimento de muitos a verdadeira identidade do inquilino do quarto 2A. Não que seus moradores, em sua metade composta por bêbados, viciados e prostitutas se importassem com quem entra e quem sai dos quartos pequenos e úmidos do local, que ficava perto do Cais londrino. Mas sem dúvida uma outra metade dos moradores – criminosos e batedores de carteira, em sua maioria – ficariam abismados em saber que ninguém menos que Sherlock Holmes detinha um quarto ali, em mais uma das sarjetas londrinas da cidade.

Uma melodia, proveniente de um violino desafinado, enchia o ambiente, em meio ao barulho das gaivotas e dos sinos dos navios. Sherlock Holmes pouco se importava com o cheiro do esgoto e urina que entrava em suas narinas, sempre que se aproximava a alguns metros daquele quarto que mantinha – como muitos quartos em Londres – como uma espécie de esconderijo, ou quartel general. Pagava um pouco mais que o costumeiro aos donos dos cortiços e pubs que lhe cediam a moradia, em troca de silêncio e garantias de que suas coisas não seriam violadas. Mas que tipo de ladrão sujo poderia levar aqueles tipos de pertences? Naquele quarto vazio, sem móveis, nada mais havia que uma mala escondida no assoalho, com algumas roupas e perucas esfarrapadas. Certamente o ladrão perderia seu tempo.

Holmes se observava pelo pequeno espelho, retirado de seu bolso. Já estava disfarçado. Curiosamente, seu disfarce se parecia muito com o de cocheiro, que usara para iludir Irene Adler no caso que ficou conhecido (pavorosamente, em sua opinião) como “Escândalo na Boêmia”. O cabelo ruivo desgrenhado, os dentes tortos e a barba por fazer estavam lá. Apenas seus olhos cinzentos lhe faziam enxergar quem ele verdadeiramente era.

Colocando seu chapéu, Holmes desceu as escadarias do cortiço, evitando as crianças desocupadas e as mulheres que costumavam fazer ofertas indecorosas por um penny.

Se a mulher era mesmo Violet Hunter, tal como ele desconfiara, então a mulher realmente mudara muito. Afinal, como supor que a doce tutora daquela época tinha adentrado em um verdadeiro covil de marginais, como o The Irish Dragon?

Holmes suspirou. Estivera naquele local para algumas lutas. Poderia adentrar ali, por esse motivo. Mas o próprio admitia que não estava muito desejoso de lutar. Que fosse. Ao menos, disfarçaria uma pausa para uma cerveja barata, embora suas lutas memoráveis não lhe garantissem que faria isso em paz. Ainda bem que contava com seu disfarce.

Logo sentou-se em um banco, na beira do balcão do pub, e serviu-se de uma cerveja. Bebeu um copo, pausadamente, e quando pediu outro, entregou o dinheiro a mais, exatamente o dobro. Claramente, o gerente do bar percebeu o engano, mas disfarçou.

–Andou por aqui algum americano, apostador de lutas, principalmente no Teddy Bear?

O gerente, um sujeito gordo, com a barba por fazer e cujo corpo clamava por um banho, rolou os olhos.

–Nada nesta vida é de graça, não é? Como diria minha boa e finada mãe... – disse, num sotaque irlandês.

–Bom, eu ainda posso pedir mais uma cerveja. Ou não pedir mais nada e deixar essas moedas por isso mesmo.

–O senhor é tira?

–Obviamente que não. – disse Holmes, claramente ofendido. – Pareço com um?

O homem riu. A aparência de Holmes estava muito longe de inspirar a Lei.

Holmes acenou para que o gerente se aproximasse. Desconfiado, ele acabou por fazer.

–O homem que procuro pode não ser americano, mas se veste como um. Chama-se Bruce Finnegan. – disse, num sussurro inaudível.

–Ele costumava frequentar esse lugar, mas não o vejo há muito tempo. – disse o gerente no mesmo tom.

–Ele apostou em Teddy Bear na semana passada. – desmentiu Holmes.

–Olha, eu sou um homem ocupado. Não costumo reparar em toda a minha clientela. E se quer saber... – disse o irlandês, um tanto furioso, virando-se de costas para Holmes. – Tome aqui a sua cerveja.

–Mas eu não...

–Eu não quero lhe dever nenhum favor, sir. E agora tome sua maldita cerveja!

–E se eu me recusar? – desafiou Holmes, claramente incitando. Algo lhe dzia que havia alguma coisa de errada ali. Como se houvesse, claramente, uma armadilha preparada. Claramente o gerente estava esperando que procurassem pelo jovem, e claramente ele sabia de quem se tratava. Por isso estava tão sereno e autoritário.

A certeza quanto à armadilha se concretizou quando o gerente deu um forte assobio.

Imediatamente, emergiu da escuridão uma criatura nefasta. Um homem, aparentemente irlandês, com mais de dois metros de altura e músculos que mais lembravam concreto seco. Ficou ao lado de Holmes, com os dois braços cruzados, de maneira intimidante.

Entretanto, o gesto do homem foi ainda mais provocante.

Ele pegou o copo de cerveja que o gerente encheu e o derramou sobre os pés de Holmes, que observava a cena com interesse.

Não tardou para que o restante do pub começasse a gritar e soltar palavras incitando uma briga. Chamavam Holmes de “marica” e outros adjetivos ainda mais ofensivos.

–Vai, Carl! Arrebenta essa menininha!

Holmes se virou brevemente, para se deparar com o olhar vitorioso do gerente, numa espécie de “eu te avisei” e “não mexa com um dos meus”. Entretanto, o olhar foi breve. Logo, o brutamontes Carl lhe tomou pelo colarinho, dando um soco na barriga de Holmes, deixando-o momentaneamente atordoado. Começou-se, então, uma espécie de espancamento. O tal de Carl continuou a golpear Holmes, como se ele fosse uma saca de trigo.

–Eu não faria isso se fosse você, Gorilão...

Um silêncio rompeu-se no ar, de imediato, por todo o pub. Holmes, que estava de cabeça baixa, ergueu seus olhos, querendo saber quem afinal, tinha acabado de chegar.

Inspetor Reid.

–Um bom lutador, quando diante de um oponente com maior força física, se permite ser golpeado repetidas vezes, não porque é fraco ou porque gosta de ter a carne amaciada feito bife...

As pessoas do bar riram com a piada do inspetor.

–... Mas porque quer fazer o oponente se cansar, perder o fôlego e o brio, para depois finalizar sem esforço. Não é assim que funciona, Mr. Holmes? – perguntou Reid, já próximo a Holmes.

–Espero que não saia divulgando mais dos meus segredos de combate à concorrência, inspetor.- disse Holmes, com o fôlego se recuperando.

–Não farei isso. Aliás, hoje eu não farei nada, além de beber uma cerveja escura. Estou de folga. Por mim, o mundo pode se acabar que minha única reação será a observação.

Aquele era, sem dúvida, um claro sinal para Holmes, que, imediatamente, golpeou Carl no rosto, deixando-o desmaiado de imediato.

–Bom golpe, Mr. Holmes. – disse Reid, satisfeito e indiferente ao mesmo tempo.

–E aquela proposta de duelo, está firme? – disse Holmes, roubando sua garrafa de cerveja e enchendo um copo para si.

–Não. Eu me aposentei dos ringues. Minha esposa teme que meu rosto se torne igual o mapa hidrográfico da Amazônia.

Holmes terminou de beber em um só gole. – Então, Mrs. Norah Reid está mudando você de verdade, inspetor... Até o levou ao Museu semana passada.

O inspetor pareceu surpreso.

–Mais um truque de bruxaria, Mr. Holmes?

–Não. Apenas o deduzi porque houve uma exposição de uma semana no Museu Britânico sobre uma expedição à Amazônia. E para você citá-la em uma conversa de pub, certamente fora uma visita marcante.

–De fato. Norah me faz conhecer muitas coisas.

Ao perceber que todos os presentes tinham se afastado do balcão, por conta da presença do inspetor, Reid começou.

–E quanto àqueles seus negócios, Mr. Holmes?

Holmes franziu o cenho. Claramente, ele estava se referindo ao seu casamento secreto. Reid fez a conversa em cochichos.

–Norah não tem falado mais de filhos. Sinto que essa besteirada feminista está mudando a cabeça dela, justo agora que estou cogitando a possibilidade... E quanto à sua, tem agido da mesma forma?

–Não falamos muito sobre isso. Estamos deixando as coisas acontecerem. Se acontecer, ótimo. Senão, ótimo também, porque não sei se serei bom com uma criança.

Reid riu. – Caso semelhante ao meu.

–Mas obrigado pela assistência, inspetor. Espero ver-te outro dia.- disse Holmes, voltando ao tom normal.

–Sem dúvida. Ainda mais porque Mrs. Sigerson e minha esposa se tornaram amigas. Isso pode acontecer, realmente.

Enquanto se apertavam as mãos, para surpresa de Holmes, Reid lhe puxou para um abraço. Claramente para outras intenções.

–Há três homens aqui, esperando sua saída para surrá-lo lá fora com porretes de pregos. Acho melhor o senhor me acompanhar. – ele cochichou, durante o breve abraço.

Claro, mais uma armadilha. Para garantir que seria finalizado. Decerto esse Bruce Finnegan era mais esperto e sabia que Holmes ainda poderia derrotar o brutamontes, e preferiu não arriscar. Ele é mesmo mais astuto do que pensei.

Pouco surpreso com o alerta, Holmes decidiu ser precavido.

–Pois bem, inspetor. Se puder dar-me a gentileza de me dar uma carona em seu cabriolé... Isso, é claro, se não atrapalhá-lo...

–De forma alguma, Mr. Holmes. – disse Reid, observando o movimento de alguns sujeitos, retraindo-se ao perceber que nada mais poderiam fazer. – De forma alguma.

Durante a ida no cabriolé, Reid trocou algumas palavras com Holmes. Disse que estava de folga, comprando uma compota de geléia que sua esposa insistia que tinha de ser de uma espanhola que morava ali perto.

–Nos últimos tempos Norah vem andando assim, cheia de vontades... – disse Reid. – Pedindo comidas estranhas...

Holmes imaginava a razão dessas vontades, mas preferiu não alertá-lo quanto ao quê. Era melhor que o inspetor soubesse sozinho.

Contou que o vira passar, adentrando ao pub. A princípio não o reconhecera. Pensou, no primeiro momento, que era um sujeito normal, mas percebeu que sua entrada alertou três homens, que estavam armados de porretes repletos de pregos, apenas lhe esperando. Eles guardaram os porretes na esquina e adentraram ao pub. Seu instinto de inspetor falou mais alto, e afim de evitar uma tragédia, decidiu adentrar ao pub. Apenas o reconheceu quando se exaltou, falando com o gerente do pub.

–Eu já esperava que fosse uma armadilha. – disse Holmes, sem surpresa. – Só queria saber a magnitude dela. Urf...

Holmes levou a mão às costelas. Sentira uma dor, quando fizera um menor movimento.

–Eu preciso voltar...

–Está louco?

–Há ainda coisas a se fazer...

–Eles já te arrebentaram o bastante, Mr. Holmes. Voltar é quase suicídio.

–Tudo bem! – gritou Holmes. – Voltarei, mas ainda mais disfarçado, com outra tática.

Minutos depois, o cabriolé parou, diante de Baker Street. Cortesia de Reid.

–Meus cumprimentos à Mrs. Holmes. – cochichou Reid, o bastante para apenas Holmes escutar. – E a peça para cuidar desses ferimentos!

Holmes iria manda-lo pastar em Cambridge, mas a dor nas costelas falou mais alto. Tempos atrás, ele era capaz de aguentar golpes sucessivos, mas não mais agora. Desta vez seu corpo parecia não ter mais a vitalidade de antes. É, talvez estivesse no tempo dele se aposentar.

Infelizmente, assim que ele abriu a porta, deparou-se com Esther.

–Mr. Holmes? – ela perguntou com formalidade, ao perceber que ele retirara rapidamente a mão de perto das costelas. – O que houve? Ah, sei. Vem comigo... – ela cochichou, convidando-o.

Holmes entrou nos aposentos de Esther, bem arrumados, como sempre. Logo foi recepcionado por Billy, que pulou contra si, o rabo abanando e língua para fora, bastante receptivo. Holmes afagou-lhe a cabeça, enquanto se sentava.

–Watson precisou atender um cliente grave de última hora... Isso nos dá tempo para termos uma conversa apropriada.