–Isso vai ficar roxo!

Esther reclamava de Holmes, enquanto pressionava com gelo pego de maneira escondida na cozinha de Mrs. Hudson. Deitado no sofá, sem camisa, Holmes balbuciava uma ou outra palavra.

–Quantos socos? Não minta, porque eu sei que pugilistas costumam contar.

–Nove. – ele soltou outro grunhido de dor. – Caramba, Esther!

Esther apertou seu ferimento com mais força ao ouvir o que ele disse.

–Perdeu a noção do perigo, chamando meu nome verdadeiro aqui, e em voz alta? – ela cochichou em seu ouvido, de maneira ríspida. – Para você, é Mrs. Sigerson, no máximo!

–Tudo bem, tudo bem... Mrs. Sigerson...

–Nove socos... Você deixou ser socado nove vezes, apenas para cansar a mão de um desgraçado qualquer?

–Exatamente.

–E posso dizer como chegou até lá?

Holmes lhe contara de todo o episódio.

Ao explicar como se deixou adentrar em uma armadilha, Esther ficara furiosa.

–E então, você antecipa uma armadilha, mas se deixa levar por ela...

–Era uma estratégica. Precisava conhecer melhor o criador dela. – disse Holmes, abotoando a camisa.

Esther suspirou forte.

–Acho que vou convidar o inspetor Reid para um jantar, qualquer dia desses. Porque ele foi um anjo mandado por Adonai para sua vida. E francamente, Sherlock, às vezes você consegue ser completamente estúpido.

Holmes ficara surpreso com o xingamento. – Ora, mas há que convir que...

Ela ignorou suas apelações.

–Seu plano de atuação foi o mais ridículo que eu já escutei em toda a minha vida, e sabe o que é pior? Com toda a certeza não foi a primeira vez que fizestes algo semelhante.

Holmes assentiu. – De fato, não foi. Eu já me coloquei em tal situação umas duas vezes, e obtive bons resultados.

–E que bons resultados teve desta vez, além de um gelo na barriga?

–Dado as pessoas envolvidas, eu consegui delimitar que Bruce Finnegan é mais astuto do que pensei. Certamente o rato em nossa comida é uma brincadeira de criança perto do que ele pode fazer, tendo tantos “amigos”.

Esther mexera em seu cabelo. – Sherlock, por favor... Já passou.

Holmes levantou-se, ignorando a dor.

–Não posso ignorar uma ameaça, Esther. Eu vou até o fim. Não vou descansar enquanto não neutralizá-lo.

Ao perceber que ele estava vestindo seu terno, Esther não resistiu e lhe perguntou.

–Onde está indo?

–De volta aos arredores do The Irish Dragon. Sinto que perdi alguma coisa.

Esther parecia não acreditar.

–Sherlock Holmes, você quer tomar outra surra? Porque se quiser, eu mesma posso surrá-lo.

Holmes desejava rir, mas permaneceu sério.

–Não se intrometa em meus assuntos, Esther. Foi isso que combinamos, naquela Igreja em Sussex. Nosso casamento quase afundou quando fizemos o contrário.

Esther retraiu-se.

–Está bem. Mas volte vivo, ao menos. Para que eu te mate, quando chegar aqui.

Ele sorriu, antes de sair disfarçadamente, aproveitando-se de que não havia ninguém passando pelo corredor.

oooooooooooooooo

Ele precisou de cerca de duas horas para tornar-se completamente irreconhecível.

Metido em vestes de segunda mão, de cabelos completamente brancos e uma barbicha evidente, Holmes colocou, satisfeito, o par de óculos, que lhe dava um ar ainda mais idoso. Suas bochechas foram artificialmente coradas, dando a impressão de que, embora idoso, ele ainda era um trabalhador de rua. Faltavam apenas seus sapatos gastos, para compor o visual.

Passando pelos fundos, Holmes viu dois moleques, coincidentemente dos Irregulares, revirando o lixo. Aquela seria uma cena comum – dada a realidade das crianças – se não fosse algo curioso ali.

Um deles estava com uma peruca ruiva sobre a cabeça.

–Hey! – gritou Holmes.

Quando os dois moleques estavam prontos para correr, se detiveram ao perceber que era Mr. Holmes, que endireitou o andar e o semblante, tornando-se reconhecível outra vez. Imediatamente as crianças se aproximaram.

–Oi, sinhô Olmes. – disse um deles, num cochicho.

–Onde conseguiram essa peruca? – ele perguntou, diante dos dois meninos estáticos, como soldados aguardando ordens.

–Tava no lixo, eu juro.

–Não precisa jurar, só diga a verdade.

O Irregular assentiu.

–A gente viu um sujeito jogando fora.

–Como era esse sujeito?

–Er... – O Irregular parecia pensar. – Branco, loiro... Usava um terno xadrez.

Terno xadrez. Só poderia ser Bruce Finnegan.

–Você já o viu alguma vez?

–Acho que sim. Vez ou outra, por aqui.

–Tudo bem. – disse Holmes, estendendo uma moeda. – E tem mais uma, se me der essa peruca.

O Irregular – que só olhando atentamente, no meio daquela poeira no rosto e na boina, Holmes percebeu que era uma menina! – não hesitou em tirar a peruca de sua cabeça e entrega-la a Holmes.

–É só isso, crianças.

Os dois moleques correram em disparada, satisfeitos com as duas moedas. De posse da peruca, Holmes a analisava. Estava desgrenhada, mas dava para perceber, claramente, que era de boa qualidade. Pensava em três peruqueiros, daquele nível. Ao menos sua busca naquela manhã não fora tão inútil quanto ele pensava. Já tinha por onde começar.

–Alto lá, velhote!

Holmes já tinha dado alguns passos por aquela rua imunda da cidade, mas acabou por hesitar em continuar. Curioso, ainda com a peruca em mãos, ele virou-se. A cerca de dez metros, estava um homem, parecendo nada amigável.

O sujeito, de cerca de dois metros de altura, vestindo um terno xadrez amarronzado (pura deselegância, concluiu Holmes) e que usava bigodes que quase lhe cobriam os lábios o observava, olhos semi-cerrados. Com cigarro na boca, ele deu uma última baforada e deixou a pimba do cigarro cair no chão, sem antes pisá-la com suas botas de pontas de aço.

Seria ele Bruce Finnegan? Não pode ser ele, não é loiro.

–O que é que tens na mão? – ele perguntou, mexendo no terno e deixando à vista seu revólver. Holmes sorriu levemente em resposta a este gesto nada amigável para alguém que o chamou de “amigo”, e lhe respondeu.

Não. Não era.

–Uma peruca. Não está óbvio para você, “Pinkerton”?

O homem arregalou seus olhos verdes, como se tivesse sido desnudado, mas tentou voltar à aparência hostil, em vão. Já estava desmoralizado ali mesmo.

Holmes pouco se importou com a aparente hostilidade, e deu mais passos para perto dele.

–Reconheço um Pinkerton de longe. Andando por essas ruas com essa roupa caipiresca e colonial, fazendo perguntas deslocadas, ameaçando com um revólver Chimmigan .30, fumando cigarro haitiano, pensando que a Inglaterra é uma terra sem lei igual à sua terra natal... – disse Holmes, visivelmente tentando fazer o homem perder a cabeça.

–Se de fato conhece um Pinkerton, então o senhor deve ser um demente para dirigir-me à palavra dessa forma. Ou talvez a vida na Terra já não lhe seja interessante, velhote.

–Não mesmo. Afinal, eu posso saber algo que deseja saber. Matar tiraria sua oportunidade e dificultaria seu trabalho. O que seu contratante poderia dizer disso?

O Agente Pinkerton direcionou seus olhos a Holmes, com fúria no olhar.

–Eu não sou mercenário.

–Oh, deveras... – disse Holmes, com deboche. – Enfim, não estou aqui para discutir seu caráter, Pinkerton. O que lhe trás aqui, a terras tão longínquas como as da nossa Amada Inglaterra?

–Eu que faço as perguntas, tira.

Holmes riu, com desdém. – Sua agência tem fama de possuir bons detetives. Juro que tento acreditar nisto, mas é tão difícil...

O Pinkerton ignorou o deboche. – Cale-se, ou arranco-lhe as unhas do pé...

Mas antes que ele completasse a ameaça, Holmes roubou-lhe o revólver rapidamente do coldre, como um pivete habilidoso da Oxford Street, deixando o Pinkerton surpreso e até um tanto embaraçado por ter sido pego de surpresa.

–Devolva o meu revólver... – ele disse, de maneira ameaçadora, pouco importando a Holmes.

–Não gosto de conversar estando em desvantagem. – disse Holmes, com o revólver dele em punho. – Em primeiro lugar, Pinkerton, eu não sou um maldito tira. Não pertenço nem à Polícia Metropolitana, nem á Scotland Yard. Em segundo lugar, porquê me abordou de maneira tão hostil?

O Pinkerton retirou de seu bolso mais um cigarro.

–Estou procurando um suspeito. Chama-se Manson. Cometeu alguns crimes em Nova York. Tem uma ficha extensa. Descobrimos que a identidade era fria e que ele é um inglês. Seus amigos em Five Points nos relataram que ele vivia aqui, em Londres, antes de ir ao meu país aprontar das suas. Satisfeito, Mr. ...?

–Holmes. Sherlock Holmes.

O Pinkerton pareceu surpreso. – Seu nome não me é estranho... O senhor já esteve em Chicago?

–Sim, há muito tempo. – Holmes respondeu, com o rosto mais amigável. – Imagino que deva conhecer o inspetor Oscar Kennway...

O Pinkerton riu. – Claro que conheço aquele bastardo!

O clima de hostilidade entre o inglês e o americano dissipou-se.

–Mas o senhor é mais velho do que presumi.

Holmes sorriu. Estava convincentemente disfarçado, enganando o Pinkerton. Tirou o nariz falso, brevemente, e ocolocou no lugar, causando espanto no agente. Como metade do sucesso de seus disfarces se devia não apenas a trques de maquiagem, mas também a interpretação, ele rapidamente se desfez de sua postura decaída, de um ancião, retomando aos seus quase dois metros de altura, vigorosamente.

–Maldito bastardo! – exclamou o Pinkerton. – O senhor é mesmo bom nessas coisas. Embora eu não te inveje por usar maquiagem.

Holmes pigarreou como um velho, voltando ao disfarce.

–Um pouco de pó no rosto não me torna menos homem. – respondeu rispidamente. – Mas enfim, Pinkerton...

–Mackenzie. Ian Mackenzie. – finalmente o detetive Pinkerton se apresentou.

–Mr. Mackenzie, eu espero que tudo tenha se esclarecido. Não somos inimigos. Estou aqui para outros assuntos. Na verdade, procuro por um casal, não necessariamente de americanos.

–Mas perguntou por um americano. Eu ouvi no bar.

–De fato, mas da mesma forma pode ser que seja um inglês que tenha passado por alguma estadia na América e que ainda veste roupas de lá. Um criminoso vulgar, que andou a me importunar... Certamente nada tão sério a ponto de provocar a atenção de um Pinkerton. Aliás, o que exatamente esse sujeito, “Manson” de Five Points andou a aprontar?

–Um assalto a banco frustrado em Manhattan. Ação criminosa audaciosa e violenta, foi felizmente fracassada graças ao Departamento de Polícia Local, juntamente à nossa Agência, que já andava monitorando a quadrilha a qual Manson pertencia.

Holmes ergueu uma sobrancelha, surpreso.

–O senhor poderia ser mais sincero. – ele disse.- A julgar pela gravidade do crime, creio que seus passos em Londres foram direcionados por uma evidência muito mais sólida do que um mero codinome.

Aturdido, o Pinkerton parecia avaliar as palavras de Holmes.

Por fim, cedeu. – Segundo apurado em Five Points, o sujeito se chama Bruce Finnegan.

Holmes fechou seriamente os olhos. Sabia quem era o rapaz. O que ele estava procurando há dias, e que tinha aprontado a traquinagem do rato. Então, o sujeito era uma verdadeira ameaça. Holmes só queria entender o por quê. O Pinkerton deu mais detalhes a respeito de sua ficha criminal. Não era de se espantar que estivesse se aventurando pela América, depois de ser detido duas vezes pela Yard por crimes menores, mas sem dúvida aquilo era só uma superfície de sua verdadeira face criminosa.

–O maior agravante é que o calhorda matou duas mulheres no meio da ação, incluindo a filha de um banqueiro poderoso. Wall Street quer a cabeça dele espetada no poste. Acredite em mim, Mr. Holmes, esse sujeito à solta por essa cidade enorme será um problema à sua “Amada Inglaterra”.

Holmes assentiu.

–Seu relato a respeito deste Bruce Finnegan apenas me dá uma certeza de que não estamos tratando da mesma pessoa. – mentiu Holmes. – Estou procurando uma mulher, em específico. Algo me diz que ela é a mentora de seu parceiro. Dificilmente um assaltante de bancos se permitiria a ser comandado por uma mulher.

–Cérebro não costuma ser o que faz um homem se permitir a tal situação, Mr. Holmes. – observou Mackenzie.

–De fato, isso ocorre em geral. E a mulher que procuro possui uma beleza distinta, creio que ressaltada por essa peruca. – disse Holmes.

Mackenzie olhou Holmes, como se o avaliasse.

–Por um momento, pareceu-me que o senhor o conhecia.

Holmes assentiu. – Gostaria muito de ajuda-lo a livrar Londres de um calhorda como esse, Mr. Mackenzie, mas não posso dizer que efetivamente o conheço. O senhor deve saber que Finnegan é um sobrenome irlandês, e que Londres está lotada deles. Já devo ter topado uma ou outra vez com um Finnegan em todos os meus casos...

O Pinkerton franziu a testa.

–Se eu te dissesse que esse Bruce Finnegan em específico é da região de Soho, o acharia mais familiar?

Oh, bem o que eu queria saber. Muito obrigada, Pinkerton.

Holmes disfarçou seu próprio contentamento, ao perceber que recebera uma informação valiosa do agente. Mackenzie continuou.

–Me apontaram a United Street ou uma rua... Fleet Street, eu acho que era assim que se chamava... Enfim, eu não conheço Londres tão bem quanto minha Nova York...

–Se o senhor procura por um irlandês criminoso, sugiro que comece pela Fleet Street. Há muitos orientais na United Street e os irlandeses não costumam gostar muito de se envolver com eles. Mas o que mais me deixa surpreso é o fato de o senhor, Mr. Mackenzie, ainda estar perdido, depois de ter recebido orientações de nossa polícia e...

Holmes interrompeu sua própria fala. Percebeu outro raciocínio.

–Isto é... – ele mudou o rumo. – Se realmente a polícia londrina sabe de sua busca aqui...

Pinkerton pareceu momentaneamente irritado.

–A cabeça dele vale um bom dinheiro na América. Ele será mais útil embarcando em um maldito navio do que preso por estelionato e embriaguez, crimes pelo qual está foragido aqui.

Holmes assentiu brevemente, entendendo o interesse do Pinkerton.

–E pode-se dizer que seus superiores também não sabem de sua busca aqui na Inglaterra...

O Pinkerton desviou os olhos momentaneamente de Holmes, entretido enquanto acendia um cigarro. Holmes percebeu que tinha tocado em um ponto sensível.

–Ninguém acreditou em minha fonte em Five Points. Minha fonte foi desacreditada por lá, pois está sendo acusada de assassinar um policial. Mas eu aposto que são falsas acusações, para desacreditar minha investigação. Por isso, estou aqui. Para enfiar a bunda desse Bruce Finnegan na cara do meu chefe.

Holmes pareceu ainda pouco acreditar em sua afirmação.

–O senhor mencionou duas mortes, nessa tentativa de assalto a banco de Finnegan... Duas mulheres mortas...

Finalmente, Mackenzie desabafou.

–Minha esposa era uma delas. Creio quer motivo o suficiente para degolar esse marginal, não?

Holmes apenas assentiu. Não queria mexer na ferida do obstinado agente e mudou de assunto.

–Mas afinal, eu suponho que esse pub tenha sido referência dada pela Scotland Yard?

–Sim, além desses dois locais de Soho, dos quais eu te falei. Como ninguém aqui desembucha, não tenho outra alternativa senão dar uma olhada lá, onde o senhir sugeriu.

Holmes assentiu outra vez.

–Mas em todo caso, podemos entrar em contato. – disse Holmes, devolvendo o revólver ao Pinkerton.

–Claro. – ele assentiu. – Confesso que me sinto perdido nesta cidade. Vocês, “chá com biscoitos”, são muito refinados e recatados para o meu gosto.

Holmes soltou uma risada fraca em resposta.

–Cá está o meu cartão. – disse Sherlock Holmes. – Boa sorte em sua caçada, Pinkerton.

Holmes pareceu um pouco mais aliviado. O mesmo homem que tinha lançado um rato em sua comida estava sendo caçado por um Pinkerton. Certamente, a ameaça seria neutralizada, sem que ele fizesse qualquer interferência além de colocar o Pinkerton na pista certa. E ele sabia que o Pinkerton iria lhe procurar, para agradecer e contar vantagem. Que fosse. Ao menos, ele estava satisfeito em saber que Bruce Finnegan tinha um incansável e feroz predador em seus calcanhares.