Laços de Sangue e Fúria

Segredos Não Fazem Bem A Matrimônios



Após o fechar pesado da porta, apenas o silêncio seguiu-se. Pequenas gotas de suor transpareciam na testa de Holmes. Esther notou-o estremecido, como poucas vezes ela vira.

Por fim, ele rompeu o silêncio.

–É a primeira vez que eu conto isso para alguém, Esther. Nada mais justo que seja para minha esposa.

–Holmes... – Esther percebeu que ele estava abalado, como ela jamais imaginara vê-lo, e tentou impedi-lo de se machucar, mas ele insistia.

–Eu... Bem, eu não sei dizer quando tudo isso começou, mas... Enfim, meu pai tinha um meio-irmão, filho de seu pai com uma prima que era de uma parte rompida de nossa família. Um irmão bastardo. Mas meu pai foi criado com esse irmão, como se ele fosse seu primo. Esse meio-irmão de meu pai era inglês, morava na classe média de Cambridge, enquanto meu pai era de uma família de fidalgos de Yorkshire. Os dois perderam o contato quando jovens. Um dia, quando meu pai já estava casado e com dois filhos – Mycroft tinha oito anos e estava precisando de um tutor – esse meio-irmão de meu pai reapareceu. Tinha acabado de se formar em Matemática em Cambridge e estava desempregado. Meu pai não conseguia compreender o porquê, afinal ele tinha se formado com louvores. Ainda assim, meu pai o aceitou como tutor de meu irmão Mycroft. Na época, Sherringford...

–Espere... – interrompeu Esther. – Quem é Sherringford?

–Meu irmão mais velho. Na verdade, Mycroft é o irmão do meio, seis anos mais novo que Sherringford. Sherringford Albert Scott Holmes é o primogênito da família Holmes. Quando esse irmão bastardo de meu pai chegou a Cambridge para ser tutor, Sherringoford tinha catorze anos e não tinha mais idade para um tutor, e meu pai tinha outros planos para ele que não incluíam o estudo. A vida acadêmica, eu quero dizer, mas sim, estava destinado a cuidar da propriedade da família. Um tempo depois da chegada dele, eu nasci.

Holmes pareceu desconfortável. Depois continuou.

–Lembro-me de uma ocasião em que você queria saber porquê eu me chamo Sherlock... Eu...

Esther percebeu que Holmes estava constrangido, e pegou em sua mão.

–Holmes... Você não precisa contar nada, eu realmente não preciso saber disso. Isso não é condição para o nosso casamento. Nunca foi.

Ele olhou em seus olhos, e viu alguma força para continuar.

–Meu pai, Siger Holmes, era loiro. Minha mãe tinha o cabelo castanho claro, quase loiro, como os de... Como os de Catherine. Sherringford é loiro como o meu pai, e Mycroft tem o mesmo cabelo que minha mãe, embora ele já esteja grisalho. Meu pai estava em Londres e ouviu essa “expressão”. Ele sempre gostou de nomes exóticos, dizia que era uma tradição de família. Minha mãe detestava isso, e só aceitava contanto que ele nos registrasse com um nome normal, para nos dar a opção de escolher se queríamos um nome exótico, ou um nome comum. O meu segundo nome é Willian. O de Sherringford é Albert e o de Mycroft é... Percival.

Esther não resistiu e riu.

–Percival? Sinceramente, não consigo imaginar seu irmão ser chamado assim.

–Mycroft sempre detestou esse nome. E eu detestava o sobrenome Willian porque o apelido de Willian é Will, ou Billy... Algo que por coincidência é o nome do meu cachorro agora. Isso sem contar que eu acho Willian em qualquer lugar. Cheguei a estudar com dois Willians. Enfim, meu pai decidiu me chamar de Sherlock, porque acreditava que eu nasceria loiro, ou com o cabelo castanho claro, como de minha mãe. De fato, eu nasci com alguns poucos fios loiros, porém, não por muito tempo. Mais tarde eu fiquei assim: cabelos escuros, negros.

Esther percebeu onde Holmes estava querendo chegar.

–Mas você também tem os mesmos olhos que Mycroft...

Ele também tinha os mesmos olhos que meu pai. Ele também tinha os cabelos escuros, Esther. Tanto como... O meu.

Esther engoliu em seco.

–Eu sempre fui rejeitado, de alguma forma. Nada que eu fizesse poderia deixar meu pai Siger satisfeito, nada. Eu tinha um bom comportamento, era talentoso e ele pouco se importava. Pouco conversava comigo. Queria que eu me formasse advogado e seguisse os passos de Mycroft no governo. Cresci querendo ser diferente, e hoje não tenho certeza se só queria chamar atenção, especialmente quando eu fugi...

–Você fugiu de casa? – Esther perguntou, chocada.

–Duas vezes. Com catorze anos, fui para Londres pela primeira vez. Fiquei quatro meses na rua. Era praticamente um moleque, igual aos Irregulares, quando Sherringford me encontrou perto do porto, perdido e roubando alguns pedestres com relativo sucesso. – Holmes riu com a lembrança. – Aos dezessete, eu estava participando de uma Companhia de Teatro em segredo quando fugi para a América e não tencionava voltar. Só voltei um ano depois, quando recebi uma carta desesperada de Sherringford, mas esta é uma outra história. Mas o fato é que eu já não suportava aquela mansão imensa e sombria de Yorkshire, ainda mais depois da... Da morte de minha mãe.

Esther ficou em silêncio.

–Depois que eu nasci, ele foi embora. Voltou dois anos depois. Pelo que contou, estava dando aulas em uma Universidade, mas como professor substituto, um trabalho bem aquém de suas reais perspectivas e ambições. Ficou em nossa casa de Yorkshire mais um ano, no posto de professor interino, ajudando um amigo que estava em licença na Universidade de Yorkshire. Creio que Catherine nasceu um pouco depois de sua partida. Ele reapareceu anos depois, outra vez como meu tutor. Eu já tinha oito anos e detestava o meu tutor na época, o achava medíocre. Disse que tinha se arriscado a lançar uma nova teoria, mas que esta teoria era tão revolucionária que acabou custando seu emprego na Universidade onde lecionava. Mais uma vez, a família Holmes estendeu a mão à ele. Ele foi meu tutor até os nove anos. Foi apenas um pouco mais de um ano, mas suficientemente... Marcante. Foi então que...

Holmes sentiu a mão de Esther sobre a sua.

–Minha mãe foi flagrada, er... Intimamente, com ele. Os dois foram pegos juntos, em uma situação bastante... Comprometedora. A suspeita tornou-se, então, verdade. Meu pai tentou mata-lo, mas o covarde se protegeu com ela, utilizando minha mãe como escudo humano. Meu pai atirou de maneira certeira no coração dela. Minha mãe morreu na hora, e meu pai ficou tão atordoado que o desgraçado se aproveitou e fugiu. As armas naquele tempo eram mais rudimentares que dos dias de hoje. As mãos de meu pai tremiam quando ele tentava recolocar munição no cano da pistola, e isso deu tempo de sobra para ele fugir. Tudo isso na minha frente. Eu tinha um pouco mais de nove anos.

–Adonai... E o que aconteceu com esse homem?

Holmes riu, sombriamente. – Não está óbvio para você?

Estava, mas Esther não queria acreditar.

–Ele forjou sua própria morte, e meu pai sabia disto, mas consentiu, pois foi chantageado. Afinal, ele sabia demais. Ele poderia acabar com a reputação da família Holmes. Ambos chegaram a um acordo de nunca mais se encontrarem, e nem de qualquer membro dos Holmes se aproximar dele. Então, ele continuou com sua vida como se nada tivesse acontecido, professorando em universidades, lançando teorias matemáticas e fazendo relativo sucesso com isso, ainda mais quando lançou a teoria binominal...

–Não... – murmurou Esther.

–Ele mudou de identidade. Não mais chamava-se Terry Cales. O meu pai Siger dizia que ele achava seu nome muito simplório. Adotou o nome de... James Moriarty.

Esther levou sua mão á boca, em consternação.

–Esta era a arma mais preciosa de Moriarty, e também a mais destrutiva contra si. Além do fato de que ele verdadeiramente nutria algum tipo de sentimento por minha mãe, ou ao menos culpa por sua morte, é claro, o que o impediu de me atingir por essa via.

–Muita coisa faz sentido... Vocês estavam em um mesmo patamar intelectual, tinham habilidades parecidas...

–E caráteres completamente distintos, cabe observar.

–Com toda a certeza.

Holmes estava de pé, abastecendo seu cachimbo à beira da lareira.

–Foi cerca de cinco anos antes de Reichenbach quando ocorreu a primeira vez que seu nome surgiu em minhas investigações. Pedi conselho a Mycroft a respeito de um caso que envolvia seu nome, e para minha surpresa, meu irmão me desaconselhou a investiga-lo. Ele jamais fez isso. Como eu não entendi o porquê de seu pedido, eu continuei. Uma semana depois, meu pai estava à porta, acompanhado tanto do mano Mycroft quanto de meu irmão mais velho, Sherringford. O que ocorreu naquele dia foi uma verdadeira reunião familiar. Meu pai contou-me da confusão entre o Professor Moriarty e minha família, mas não com todos os detalhes, obviamente. Mycroft deixou-me a par do resto mais tarde, e assim pude chegar às conclusões óbvias de que... Eu sou um bastardo, mas ainda assim eu sou um Holmes.

Esther parecia estar absorta, quase em estado de choque.

–Eu matei meu próprio pai, Esther. Eu o empurrei daquela catarata. Meu próprio pai...

–Não pense assim, Holmes...

–Eu matei minha irmã, também.

–Não havia o que fazer por ela... Ela era desiquilibrada, doente...

Os olhos de Holmes estavam lacrimejados, mas ele não chorara.

–Eu não sei que tipo de homem eu sou, Esther. Acho que cheguei ao nível mais baixo que poderia imaginar a mim mesmo. Devo estar no mesmo nível que Moriarty, certamente. Talvez ter filhos comigo não seja uma boa idéia...

–Sherlock... – tentava confortar Esther, agachada próximo a ele, acarinhando-o no ombro.

–Seus filhos terão o sangue de assassinos. O sangue de um homem covarde, que é capaz de enganar seu próprio irmão, seduzir sua cunhada e ter dois filhos com ela. Que foi tão covarde a ponto de usar a mulher que ama como escudo, apenas para se defender. Capaz de fugir, e deixa-la agonizando... Diante de mim. Porque ele sabia que eu estava lá. Ele tinha olhado em meus olhos. Não havia remorso, eu vi. Apenas a sensação de que a sorte estava ao seu lado. E isso me deixou impressionado. Em suas lições, ele sempre dizia do quão prejudicial eram os sentimentos, e eu tive uma prova disso. Ele era um monstro. Naquele momento, eu desejei ser diferente dele, mas apenas naquele momento. Passei, então, a culpar meu pai. Não me pergunte o porquê... Eu transferi a culpa da morte de minha mãe à Moriarty, mas também a meu pai. As pistas estavam lá. Os olhares que os dois trocavam, as tardes intermináveis que ele dizia que precisava sair para a cidade e que minha mãe se demorava na modista ou na Igreja... Meu pai fora cego e deixara aquilo acontecer. E perdera a mulher que amava. Embora à contragosto, passei a ver meu tutor como o verdadeiro vencedor da situação. Passei a desejar ser assim também. Como ele. Seu comportamento me tornou o que sou hoje, me fez ser bom em minha profissão. Até eu saber quem eu era, quem ele era. Ele tornou-se um rival. Alguém que eu deveria derrotar, no tempo certo. E esse tempo chegou à cinco anos atrás. Quando eu vi Watson ser enganado e mandado para longe de mim, na Suíça, eu sabia que nossas diferenças seriam, enfim, resolvidas. Com a morte de um, ou de ambos. E quando eu o derrubei, pensei que sentiria alívio. Mas seu grito... – Holmes pareceu emocionado. – Seu grito de pavor, ecoando naquela catarata... Como isso me perturbou por muitos anos... Eu percebi que não venci coisa alguma. Que na verdade eu tinha me tornado como ele. Parti da Suíça, foragido, desejando minha vida de volta, mas confesso que nem sabia ao certo para quê.

Esther ajeitou-se perto de Holmes, tentando confortá-lo, enquanto ele continuava a desabafar.

–Quando Mycroft me deu a identidade de John Sigerson, eu pensei em abandonar tudo, ter uma vida nova. Poderia ter começado a derrubar Chevalier desde ali, mas eu estava em conflito comigo mesmo. Fui para o Tibete, para perder o rastro de Moran. Fiquei lá por meses, até ir à Pérsia. Visitei Mecca, continuei caminhando pela Terra Santa. Talvez eu estivesse atrás de algum tipo de paz espiritual. Então, senti falta de Paris. Decidi ir até lá, para desanuviar minha cabeça. Conheci você no meio do caminho, e percebi que... Eu jamais seria como ele. Eu sentia por Watson, por meu irmão, por você... Tentei me enganar, dizendo a mim mesmo que eu não sentia nada por você, que jamais sentiria qualquer sentimento por mulher alguma, mas não era verdade. Essa foi uma verdade que estava construída dentro de mim mesmo, mas não fora concebida por mim. Fora concebida por Moriarty e suas lições. E quando eu vi que estava prestes a te perder para o meu amigo Watson...

Holmes passou seus dedos no rosto de Esther.

–Eu decidi que era hora de quebrar este laço com aquele homem, e ficar com você. Porque embora eu tenha duvidado de minha capacidade de cultivar uma relação amorosa e um cérebro racional ao mesmo tempo... De pensar que o... Amor me enfraqueceria racionalmente, eu vi mais uma vez o quanto você é importante para mim. E eu precisei ver você quase destruída por um crápula qualquer para notar isso.

Esther deixou escapar uma lágrima.

–Então... – Holmes pigarreou. – Você ainda tem... Certeza? Eu quero dizer... Hum... Nós dois, juntos... Depois disso tudo? Compreenderei se disser “não”...

Esther riu, em meio à lágrimas.

–Você não é perfeito, Sherlock Holmes. Não como dizem os contos de Watson. E deseja mesmo saber? Eu fico muito contente de eu, apenas eu, enxergar as suas imperfeições, mesmo as mais profundas. Porque eu escolhi amar um homem, não um personagem. E não há ninguém melhor que uma judia para entender os seus tormentos. Somos o tempo todo julgados, chamados de “sangue ruim”, “matadores de Cristo”, “parentes de Judas”...

Holmes sorriu, satisfeito, enquanto Esther envolvia sua delicada mão na dele.

–Para mim, este Moriarty jamais foi seu pai. E embora Siger Holmes não tenha sido o melhor dos pais, ele é o seu pai. E eu tenho certeza de que você também será um bom pai. Quando chegar o momento.