Londres, Inglaterra. 29 de Abril de 1895.

O corredor da Secretaria de Relações Exteriores parecia infinito.

Os pés de Esther atravessavam-no hesitantes. Afinal, aquele era o dia em que o caso do Agente Morrison seria, finalmente, posto em julgamento. Ela caminhava aquele longo corredor, sozinha – como se sentiu ali, desde que Morrison morreu. Já usara algumas armas, mas daquela vez, tudo que tinha em mãos era uma pasta.

Sherlock Holmes, seu marido secreto, pareceu ter, finalmente, conseguido se redimir e lhe ajudara a preparar aquele relatório, com extensas provas a respeito da inocência de Morrison. Tudo fora feito com cuidado, de modo a evitar o envolvimento da família Holmes – ou melhor, do mais controverso membro da família: a até então morta Catherine Holmes.

Diane, ou Marjorie, ou melhor, Catherine... Pensar que sua maior inimiga esteve o tempo todo debaixo de seu teto, parecendo ser aliada. Foi uma bela estratégia, o próprio Holmes admitiu. Uma estratégia digna de um Holmes, pensou Esther em seu íntimo, em palavras que jamais dissera a Holmes, mas que ele certamente sabia que eram verdadeiras. Para seu alívio, Catherine não lhe impôs noites de pesadelos, como fizera Dmitri, o Conde Ivanov e Carlston Holmes. Para ela, já tivera pesadelos o bastante para uma vida inteira. Uma infância atormentada por pesadelos. Parte da vida adulta, também. Parte apenas, não inteira. O episódio Catherine Holmes era um caso encerrado.

Infelizmente, ela se lamentava, não para Sherlock Holmes.

Mesmo com a conversa densa e séria que tivera com ele, Catherine lhe abalara. Não só apenas saber que sua irmã estava viva o tempo todo, mas que fora criada por seu maior inimigo e mentor, Moriarty, e que herdara os mesmos instintos calculistas que ele. E que ele, o próprio Holmes, possuía. Esther tremia em imaginar até onde o plano de Catherine poderia alcançar. Grávida, poderia arrancar um casamento, fazendo pressão em Watson, que poderia, no fim das contas, aceitar de bom grado e ficar satisfeito em ver seu melhor amigo se casar com sua prima. Quem não ficaria, afinal? Um casamento com seu próprio irmão. Não havia maior maneira de ferir um homem tão sério e cheio de princípios como Sherlock do que um incesto. Até mesmo Moriarty mostrou algum limite, mandando-a à América assim que percebeu qualquer sentimentalidade profunda naquela moça.

Até mesmo Moriarty tinha limites. Ela, não.

Foi justamente esse ponto que mais afetou Sherlock Holmes. Ela a beijara mais de uma vez. Mesmo não sendo consentido, ele sentia nojo de si mesmo. E estava sendo uma batalha a Esther mostrar a ele o contrário. Ele estava nitidamente em um estado depressivo, letárgico. Ele a evitava mais do que nunca, e Esther sabia o porquê. Ele estava fazendo uso de seus malditos narcóticos. Ela não queria ver, e decidu dar a ele tempo. Mas ele permanecia distante, sequer disposto a participar do tribunal em sua defesa, avisando que pediria ao Inspetor Reid para dar um testemunho dos fatos, porque ele era de confiança. Certamente, repetir o acontecimento que culminou na morte de sua própria irmã deveria doer. Uma dor que ele queria evitar.

Finalmente, a porta do gabinete chegou. Esther se afastou de seus conflitos internos. Agora, era hora de resolver aquele problema, ela pensou, enquanto pôs sua mão delicada à maçaneta, para abri-la.

–Pensou que faria isso sem mim?

Veio, por trás de si, a voz que ela mais conhecia.

Não. Ele não a abandonara.

–Sherlock... – ela disse, quase em um suspiro. Holmes assentiu, colocando sua mão sobre a dela à maçaneta e, finalmente, abrindo a porta.

Defronte os funcionários de alta patente do governo, Sherlock Holmes adotou a farsa de detetive frio e distante que Esther já conhecia e se acostumara. Pouco se importava, pois ela sabia que, quando às sós, ele retribuía a ela quase em dobro.

–Senhores. – cumprimentou Sherlock Holmes a todos os presentes.

O julgamento seguiu. Esther apresentou as provas. A análise de Esther, concisa e segura, durou cinco horas, até que chegasse a vez do depoimento de Sherlock Holmes.

–Mr. Sherlock Holmes... – disse o chefe do júri. – Consta aqui depoimento de próprio punho do Inspetor de Polícia, Edmund Reid, a respeito da morte de Marjorie Eccles, uma foragida dos Estados Unidos da América. Poderia nos dizer, em suas palavras, o que aconteceu nos seus aposentos, em Baker Street?

Holmes suspirou fundo, aparentando calma.

–Miss Esther Katz estava conduzindo esta investigação e acabou por chegar ao nome dessa moça. Por terrível coincidência, ela estava infiltrada em minha residência, se utilizando do nome de uma prima de meu colega e parceiro, o Dr. John Watson. Eu a ajudei a encurralá-la, e ela acabou por confessar que matara Morrison porque ele descobriu tudo e pretendia me avisar a respeito de sua farsa... E acabou por conseguir, mandando-me uma carta criptografada contando sobre os planos dela.

O juiz estendeu uma carta. – Mr. Sparks, o que tem a dizer do anexo em questão? A caligrafia desta carta criptografada condiz com a do Agente Morrison?

–Sim, senhor. – confirmou o chefe de Esther.

–Prossiga, Mr. Holmes.

O depoimento de Holmes durou cerca de duas horas. Foi conduzido de maneira brilhante e exemplar, percebeu Esther. Ele tinha boa retórica e falava com autoridade, dando pouca brecha a perguntas, fazendo-se bem entendido e longe de contradições. Mesmo omitindo a verdadeira motivação de Catherine e seu verdadeiro grau de parentesco, ele pareceu dizer a verdade. Todos os presentes pareciam satisfeitos.

Finalmente, o Júri se reuniu, deixando apenas Esther e Holmes às sós.

–Será que conseguimos?

–Eu acredito que sim. – disse Holmes.

–Graças a você. – disse Esther, com ternura.

–Graças a você. – retrucou Holmes. – Você acreditou nisto desde o princípio. Mesmo quando eu te desencorajei. Como sempre fiz, aliás, o que acredito ter sido... Uma falha minha. – ele confessou, com certa hesitação. Detestava admitir que estava errado, mas... O fato era que Esther era brilhante, e ela precisava saber disso.

–Vejam, eles estão voltando... – ele disse.

Ambos se colocaram de pé, em reverência, depois voltaram a se sentar.

–O Júri declara Mr. Basil Revington, codinome Morrison, como inocente da acusação de Traição ao Reino Unido e à Rainha. Revogam-se às penalidades em vigor.

Esther suspirou com alívio. Finalmente, o nome de Morrison – de Revington – estava limpo. Finalmente, sua filha Charlotte poderia voltar a receber a pensão de seu pai, que tão bem serviu ao Reino.

Conseguimos... – ela sussurrou a Holmes, sem olhar diretamente em seus olhos. – Conseguimos...

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Plymouth. 30 de Abril de 1895.

Leonard caminhava por aquelas ruas com pressa. Seus passos curtos, condizentes com seu peso, se tornavam um impasse à sua pressa. Estava escuro, e o local que seu encontro fora marcado era deveras inóspito, intimidador. Seu coração disparava a cada passo seco dado naquela quase escuridão. Seus passos estavam cada vez mais duvidosos, desejosos de retornar logo para casa.

Afinal, era tudo muito estranho para ele.

Desde que a morte da namorada de seu sobrinho Bruce foi divulgada nos principais jornais e a inocência de Sherlock Holmes finalmente comprovada, Bruce não dera sinal de vida, o que era algo estranho de se esperar de alguém como ele. Ele não seria o tipo de sair de tal situação com as mãos livres e iria se parasitar no primeiro que pudesse. Nesse caso, o próprio Leonard. Desde que vira a manchete nos jornais, Leonard já esperava por seu sobrinho, batendo à porta, chantageando-o. Afinal, seu nome não aparecera. Diane Watson, ou qualquer que fosse seu nome, manteve segredo disso.

Mas de Bruce Finnegan, ele só escutou silêncio.

O recado que ele recebera via telégrafo, marcando aquele encontro poderia ser o fim de seu silêncio. Leonard respirou fundo, tocando no revólver escondido em seu paletó. Se Bruce lhe chantageasse, aquele seria seu fim. Seria o início de um ciclo vicioso, sem fim. Uma chantagem daquele nível jamais cessaria. Aquilo exigia uma medida drástica, definitiva.

Era, portanto, hora ideal de silenciá-lo. Mesmo que ele fosse seu próprio sobrinho.

Na escuridão daquela noite, Leonard tocou no local onde deveria estar sua orelha, se não fosse por aquele fatídico dia em que Holmes lhe dera um tiro. Ele tinha se tornado uma verdadeira aberração, por todo lugar que passava. “O Menino Sem Orelha”. Na faculdade, não escapara de ser importunado por isso. Desejava vingança, desde criança, e esteve tão perto de concretizá-la... Quase colocou Sherlock Holmes na cadeia, ainda que injustamente. Que fosse. O que ele mais queria era que o tal dito detetive pagasse pelo que fez de alguma forma, e que fosse desmoralizado, ridicularizado, ao menos um décimo do que foi durante toda a sua vida. Quando Bruce surgiu com a idéia, Leonard não hesitou em se juntar ao primo e sua misteriosa namorada – que estranhamente, parecia a grande mentora do plano. Afinal, Bruce não era tão inteligente assim para criar um plano daquela magnitude.

Finalmente, ele chegou à casa indicada.

Bateu duas vezes. Antes de bater a terceira, a porta se abriu bruscamente, e ele foi lançado para dentro por meio de duas mãos musculosas. Adentrou ao local, cambaleante e trôpego. Desnorteado com tamanho susto, acabou por se equilibrar em uma cadeira, onde viu, iluminado pela fraca luz de um lampião solitário, seu sobrinho, Bruce, completamente amarrado e amordaçado. Seu rosto estava repleto de hematomas, e o sangue estava seco, indicando que ele estava apanhando já há um bom tempo.

–Q-Quem são vocês? – perguntou-se Leonard, acanhado, diante daqueles três sujeitos nada agradáveis. Um deles segurava uma machadinha de açougueiro, intimidador. Pingava sangue dela.

–Homens de causa própria. – respondeu um deles, que era o mais bem vestido, usando um terno elegante e cabelo vigorosamente penteado, além de possuir ares de lídeer. – Mas a pergunta desta noite, caro Leonard Morgan, não é “quem é você”, mas sim, “o que você tem”?

Leonard parecia confuso.

–E-E-Eu não entendo...

O homem fez um gesto com a cabeça, e imediatamente os demais lhe obedeceram, pegando Leonard e o amarrando à outra cadeira. Ao mostrar o mínimo de resistência, um deles deu uma coronhada na cabeça de Leonard com um revólver.

–O senhor, Leonard Morgan, parece não gostar muito de Mr. Sherlock Holmes... – disse o homem, enquanto caminhava de um lado a outro daquela pequena sala. – Soube pelos jornais de sua “vingança”. Uma bela iniciativa, a sua, embora tenha sido uma pena que tenha contado com incompetentes para tal tarefa. Não demorei para achar o seu sobrinho Bruce Finnegan... – ele disse, agarrando Finnegan pelos cabelos. – e só quis fazer umas perguntas, mas ele se recusou a responder.

–Eu não sei de nada! – gritou Finnegan, aos prantos. – Eu já disse, eu não sei de nada...

–Eu julgarei isso! – gritou o homem de volta, dando-lhe um soco em seu rosto e imediatamente o silenciando. – Enfim, Mr. Morgan, eu espero que o senhor tenha a sabedoria de agir diferente de seu sobrinho teimoso e contar-me tudo que sabe.

–S-S-Sabe? A-A-A respeito de quê?

–Mr. Sherlock Holmes. Seus segredos mais densos e podres. Seus pontos fracos. Sua rotina... Ou então...

No mesmo instante, um dos guardas pegou uma das mãos de Bruce Finnegan, e quebrou-lhe um dos dedos. Naquele momento, Leonard notou que seu sobrinho estava sem dois dedos da mão, certamente cortados pela machadinha de açougueiro. Temorizado, ele suplicou.

–Por favor! Não faça nada comigo! E-E-Eu contarei tudo que sei!

O homem pareceu interessado. – Deveras?

–Si-Sim! – suplicou Morgan. – Sherlock Holmes e eu morávamos em fazendas vizinhas, na infância. Depois, estudamos na mesma faculdade! Acredite, senhor, eu tenho muito a contar.

–Ótimo. – ele disse, com frieza. – Então, o que tem de relevante para me contar?

Leonard contou quase todas suas lembranças a respeito de Sherlock Holmes, inclusive o polêmico episódio de sua orelha decepada – que para seu desgosto, arrancou risos dos capangas daquele sujeito misterioso – e também de seu noivado com sua irmã, Beatrice, já falecida.

Entretanto, o sujeito mostrou-se interessado ao saber que a mãe de Sherlock Holmes fora morta por seu próprio pai, Siger Holmes.

–Por que ele matou a própria esposa?

–Traição. Muitos dizem que foi o tutor, Terry Cales. Ele era primo de Mr. Siger Holmes e frequentava muito a casa. Nunca mais foi visto.

–Terry Cales... – anotou o sujeito em um caderno. – Creio que isso foi o suficiente, Mr. Morgan. – ele disse, levantando-se.

–Ju-Jura? – suspirou Leonard, enquanto o homem, já levantado, dava alguns passos para longe de si, de costas. – Quer dizer que posso ir, senhor?

–Sim, Mr. Morgan. O senhor pode ir. E pode me chamar de Mr. Jenkins.

No mesmo instante que terminara a frase, o misterioso Jenkins virou-se e desferiu um tiro sobre a cabeça de Leonard Morgan, matando o homem para sempre.

Horrorizado, diante do cadáver morto de seu tio, Bruce Finnegan sabia que não poderia esperar outra coisa, senão a morte. Ao menos, foi esta a sensação, quando Jenkins encostou o cano de seu revólver em sua testa.

–E-Eu já disse, eu não sei de nada... E eu prometo que não vou contar nada a ninguém sobre o que aconteceu... Eu juro...

–Apesar de você ser um imbecil, eu acredito em você, Bruce. – disse Jenkins, com sorriso malicioso. – Deve estar se perguntando “porquê vocês estão aqui”, não é? Acredite, você não fez nada para isto. Talvez estivesse ileso, se aquela vagabunda da Marjorie Eccles tivesse pelo menos sobrevivido. Eu investi alto naquela garota, rapaz. Ela morava em Washington, em uma casa caindo aos pedaços, desde que seu padrinho Moriarty morrera, e estava vendendo uma peça de arte quase todo mês apenas para pagar as contas mais triviais. Mas parece que você não sabia disso, não é? Achou mesmo que a menina era riquinha? Bom, eu gosto de dizer que nada nesta vida é completamente de graça. Eu vi potencial na garota, e apostei alto. Eu a coloquei na frente de alguns negócios relacionados a assaltos a banco que eu tinha me associado na América, e vi que a moça tinha potencial para o crime. Quando ela estava pronta para dar início a seu plano de destruir Sherlock Holmes, eu deixei claro que queria retornos: Holmes indo à prisão, no mínimo, mas não morto. E o que a garota me faz? Dá uma facada nele!

Bruce recebeu um súbito soco. Sem dúvida, estava recebendo toda a punição que Marjorie deveria ter recebido.

–E-E-Eu não tive nada haver com isso... Eu só queria que ele pagasse o que fez com a minha mãe...

Jenkins riu, estrondosamente.

–“O que ele fez com sua mãe”? Mas você é mesmo um tolo, rapaz! Mr. Holmes não foi responsável por nada. Toda a desgraça de sua família foi causada por sua própria mãe, que simplesmente era uma vadia que não se contentava apenas com o marido...

Bruce sentiu raiva, mas nada pôde fazer. Jenkins parecia se divertir com sua desgraça.

–Os homens a quem trabalho, Mr. Finnegan, são homens sérios. Meu chefe não ficou nada satisfeito em ver sua pequena fortuna sendo jogada fora em dois imbecis como vocês. Mas ao menos aquela vagabundinha foi sensata em não dizer para quem estava trabalhando.

Jenkins se levantou, e andou de um lado a outro, estalando os dedos. Depois, tornou a pegar o revólver.

–Não sou homem de fazer meias apresentações. – disse Jenkins, calmamente. – Meu nome é Daniel Alexandrovitch Jenkins. Sinta-se privilegiado, rapaz, porque não costumo me apresentar com meu verdadeiro nome. Uma boa parte de meus inimigos me conhecem com outras identidades. Poucos sabem que meu verdadeiro nome é este. Fique feliz, meu jovem... – ele disse, com o olhar psicopata. – Costumo dar uma morte silenciosa a quem me foi de alguma valia. Por isso...

O revólver desengatilhou, mais uma vez.

–Abrace seu Criador por mim.

Um tiro ecoou pelo local.

Diante dos dois cadáveres, Jenkins fez mais um gesto aos seus empregados.

–Hora da encenação, rapazes. Em breve, alguém chamará a polícia por conta dos tiros... – disse Jenkins, enquanto encaixava o revólver na mão de Leonard. – Uma tentativa de chantagem, da parte de Bruce Finnegan, não muito aceita pelo bom advogado Leonard Morgan. Uma discussão, os cavalheiros sacam suas armas e “fim”.

–Boa, chefe... – murmurou um.

–Poderemos voltar à Rússia, chefe? –perguntou um deles, em russo.

–Receio que não. Nosso trabalho está apenas começando por aqui, rapazes. – respondeu Jenkins, em russo. – Apenas começando.