Fulham. Londres, Inglaterra. 15 de Janeiro de 1895.

O corpo de Holmes era pesado, de modo que Richard precisou carrega-lo sozinho e com muito esforço. Esther precisou abrir a porta daquela casa modesta, no subúrbio daquele bairro tranquilo, também às margens do Tâmisa. Para sorte de todos, o movimento daquela rua era muito fraco, e ninguém pôde assistir a cena de ambos carregando um homem praticamente morto e ensanguentado.

Richard pousou o corpo ensanguentado e imundo de Holmes sobre o sofá. Começou a despi-lo das roupas.

–Precisamos limpá-lo antes. Depois, colocaremos seu marido sobre minha cama. Se ele sobreviver, eu duvido que sairá de lá por um bom tempo, e creio que não gostará de estar deitado sobre fezes. – disse Richard, enquanto era ajudado por Esther. – Acho que você também precisará de roupas limpas.

–Me dê algumas, por favor. Podem ser masculinas, eu pouco me importo.

Richard estranhou a idéia. Ao perceber sua reação, Esther retrucou.

–Ora, esqueceu-se de que eu sou espiã? Roupas masculinas não são novidades.

–E-Eu vou buscar algumas para você. – ele disse, ainda resignado.

Esther terminava de tirar as calças de Holmes, quando uma vontade intensa de chorar passou-lhe pela mente. Ela lembrava-se do jeito tímido de Holmes, e agora lá estava ele, inconsciente a ponto de sequer protestar ou se mostrar envergonhado com sua atitude.

Quando Richard retornou, tendo uma muda de roupas masculinas além de álcool, encontrou Esther enxugando as lágrimas de seu rosto. Preferiu fazer um comentário otimista.

–Parece que conseguimos conter o sangramento. – ele disse, observando a ferida. Agora, completamente limpa, era possível perceber sua extensão. Certamente não foi causada por uma faca normal, mas sim, um objeto pontiagudo e de espessura fina. A ponta do dedo indicador cabia perfeitamente na ferida, Esther notou. Que tipo de objeto foi usado para feri-lo desta forma? E quem poderia ser capaz de fazer isso, ter tal sangue frio?

–É verdade... -disse Esther, com a voz embargada. – Não está mais sangrando tanto, como antes. Ao menos isso.

Tendo Holmes já despido de suas roupas e limpo rapidamente com álcool e sabão, tanto Esther quanto Richard perceberam a gravidade do ferimento.

Uma facada tinha lhe atravessado a região do tórax por completa. Era um corte pequeno, mas muito preciso. Sem dúvida, precisou de força para atravessar toda a carne. Esther tremeu ao imaginar a dor que Holmes sofrera enquanto tinha a carne atravessada por uma faca – ou o que quer que fosse.

–Será que atingiu algum órgão? – ela disse, cobrindo-o com um lençol depois de feito um curativo.

–Pela posição do ferimento, não. Como se... Alguém soubesse exatamente onde não causar dano a nenhum órgão vital. Ou ele teve sorte, ou fora tudo bem premeditado para que ele não morresse. Não de imediato, ao menos. – pensou Richard. – mas oq eu mais me preocupa é a perda de sangue dele.

–Eu quase não o sinto respirar...

–Ele está fraco. – concluiu Richard. – Demorou demais a ser socorrido, e como se não bastasse, ainda foi lançado ao Tâmisa.

Enquanto Esther contemplava o corpo pálido de Holmes, Richard se dirigiu até uma pequena gaveta, de onde retirou uma caixa.

–O-O que é isso?

Esther ficou curiosa, ao perceber que Richard retirara uma série de objetos estranhos e perfuráveis dali.

–Alguma vez já ouvira falar de transfusão de sangue, Miss Katz?

–Sim, mas... Não sei muito. – confessou ela.

–Acho que seus conhecimentos sobre o assunto serão, digamos, aprofundados esta noite, para dizer o mínimo.

Richard exibia uma agulha grossa, que amedrontou Esther.

–Acalme-se. Não pretendo ferir ninguém. Apenas curar.

Isso não era o suficiente para ela. – Richard...

–Escute... – Richard disse, tentando se acalmar. – Aprendi essa técnica na Universidade. Era algo experimental, que deveria ser utilizado em último caso, como o de seu marido. Lá, fazíamos com animais, mas... Olha, depois eu fiz isso algumas vezes, quando eu clinicava. Duas para ser exato. Mulheres grávidas, que sofriam de hemorragia pós-parto. Eu passava o sangue do marido, ou mesmo da mãe, para o corpo dela. Uma sobreviveu, a outra... Bem...

Esther ficou chocada.

–Uma paciente morreu depois de uma transfusão. Por isso você parou de clinicar.

–Exatamente. – ele disse, num suspiro de confissão. – Você sabe, isso... Isso ainda é experimental, por isso fui impedido de clinicar depois disso. Mas a transfusão de sangue pode ser eficaz, é inegável.

Pode ser eficaz... Esther parecia hesitante. Era uma técnica rudimentar, a julgar pelo aparato, desconhecida e duvidosa. Pessoas se salvavam, mas também morriam disso.

Ela olhou para Holmes. Ele estava pálido, mais do que o normal, e mais parecia um cadáver que um vivente. E a enorme poça de sangue que ela encontrara na casa de Derek ainda não lhe saía da cabeça.

Ela suspirou, por fim. – Está bem. Seja feita a vontade de Adonai.

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A agulha já estava enterrada em seu braço. Não tinha sido uma agulhada normal. Diga-se de passagem, a agulha usada por Richard para captar o sangue tinha uma espessura considerável.

Tudo parecia incrivelmente rudimentar. O sangue de Esther saía imediatamente de suas veias, passava por meio de um tubo e direto para as veias de Holmes. Ela só precisava manter o pulso fechado, deixando o sangue fazer o caminho até o corpo ferido de Holmes, que já estava em uma aparência cadavérica tão impressionante que ela ainda se perguntava, amedrontada, se ele ainda estava vivo.

–Acalme-se, Miss Katz. – dizia Richard ao perceber a tensão de Esther quanto ao real estado de saúde de Holmes, ao passo que ele também estava tentando esconder o seu próprio nervosismo. No fundo, não queria ser responsável pela morte de mais uma pessoa.

–Quando iremos saber se isso deu certo ou não?

–Nas próximas horas. O corpo reage, quando há rejeição do sangue.

Esther pareceu surpresa. – Então, não pode ser qualquer sangue?

–Isso ainda não tem estudos concretos, mas já sabemos que há incompatibilidades em alguns casos.

Percebendo que Esther estava ainda mais nervosa do que antes, Richard se arrepender do que dissera.

–Escute, vamos torcer para que tudo dê certo, tudo bem? – ele disse. – Acredite, essa é a melhor chance que seu marido, o Mr. Katz, está tendo. Em um hospital sequer cogitariam essa possibilidade.

Alguns instantes depois, finalmente Richard interrompeu a transfusão. Quando Esther tentou se levantar, sentiu-se um pouco tonta, como se o chão cedesse sobre seus pés.

–Talvez você se sinta um pouco, fraca, Miss Katz... Afinal, você perdeu um pouco de sangue no processo... É melhor ficar em repouso. – ele disse, pedindo que Esther permanecesse mais um pouco deitada na poltrona.

Verificando que o olhar de Esther não deixava Holmes, nem por um segundo, Richard começou a conversar, tentando acalmá-la.

–Sinais de melhora apenas serão visíveis daqui a algumas horas, Miss Katz.

–Assim como os de piora. – ela disse, ainda temerosa.

Richard assentiu. – Confio que ele irá melhorar. Agora, só o que eu recomendo é um bom descanso. Para os dois, para ser exato. – ele disse.

Antes de se deitar, Esther perguntou. – E sua sobrinha?

Richard sorriu. – Eu a deixei na casa de meu tio Bernett, desde que comecei a investigar a assassina de meu irmão. Talvez ela venha daqui a alguns dias, mas não se preocupe. Ela é inteligente e obediente. Saberemos lidar com ela.

A menção de Richard quanto ao assassino de Morrison fez Esther despertar de repente. – O caderno...

Mas Richard a deteve. – Depois, Miss Katz. Depois. Agora, descanse.

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Esther não sabia por quanto tempo tinha dormido. Um cobertor fora lançado sobre si e ela sequer notou. Assim que despertou, ainda deitada na poltrona inclinada, ela virou-se para Holmes. Ele parecia dormir, embora sua cor pálida ainda atestasse seu grau de enfermidade. Mas ao menos ela era capaz de, agora, ver seu peito arfar e contrair, ainda que levemente, em um claro indicativo de que ele estava respirando.

Um cheiro de comida estava começando a impregnar o ambiente. Decerto Richard estava preparando alguma coisa. Ela levantou-se, tentando caminhar até a cozinha.

–Ei, você deveria estar em repouso! – reclamou Richard.

–Que horas são? – foi a primeira pergunta de Esther.

Richard assentiu, em compreensão. Ela desejava saber se já tinha passado tempo suficiente para saber se não havia nenhum dano colateral causado pela transfusão.

–Doze horas.

Esther soltou um forte suspiro de alívio, e deixou escapar um sorriso. Richard sorriu de volta. – Ele não teve má reação, e duvido que a tenha. Vocês eram compatíveis. É só o que posso dizer. Seu marido é um homem de sorte!

Os dois riram juntos. – Muito obrigada, Richard! – disse Esther, com sinceridade.

–Não há de quê, senhora Katz. Aliás, você deveria estar de volta à cama...

–Eu me sinto melhor. – ela disse. – Melhor e com fome, para ser sincera.

Richard riu. – Já esperava por isso. Estou preparando uma refeição reforçada.

Diante da afirmação de Richard, Esther sentiu uma curiosidade.

–Richard?

–Sim? – ele perguntou, enquanto terminava de mexer na panela, levantando um saboroso cheiro de carne.

–Er... Se eu passei o meu sangue para o meu marido... Isso significa que somos irmãos?

Esther recebeu como resposta uma sonora gargalhada, que fez sentir-se burra por uns instantes.

–Não leve a mal, minha cara Mrs. Katz, mas... Bem, isso é improvável. Digamos que, em uma linguagem mais leiga, o seu sangue apenas repôs o que ele perdeu. Nós, humanos, precisamos de um mínimo para sobreviver. Mas acredite, o sangue que você tinha aos onze anos não é o mesmo que tem agora. Como posso dizer... – o médico parecia refletir. – Ele se... Bem...

–Regenera?

–Se é o termo que consegue entender. Mas o que eu quero dizer é que ele não terá o mesmo sangue que você. A quantidade que você deu é insuficiente para torna-lo seu irmão.

Esther considerou o argumento de Richard.

–Como faremos para alimentá-lo?

–Que mal lhe pergunte, mas esta é a primeira vez que cuida de um moribundo em tal estado não? Bom, foi o que eu pensei. Por enquanto, ele não comerá como nós dois. Ele está inconsciente, porque eu optei por dar-lhe uma dose generosa de morfina.

Esther contraiu-se. Odiava a mera menção da droga.

–Não se preocupe, apliquei uma dose generosa, mas insuficiente para mata-lo. Além de quê... Ele deve estar acostumado a isso.

Claro. Richard deve ter percebido as dezenas de cicatrizes de agulhadas ao redor do braço de Holmes.

Esther suspirou. – Infelizmente, sim. Ele a usa para... Fins recreativos.

Richard assentiu. – Não faço parte dos médicos que recomendam morfina e cocaína para recreação, Miss Katz, e sinceramente, eu os reprovo. São medicamentos perigosos, mais trazem dano do que benefício quando em uso inadequado. Mas enfim, eu o alimentarei por via venosa, e caso necessário, ele fará suas necessidades por uma sonda.

Enquanto Richard retirava todo o aparato e se preparava para colocar em Holmes, Esther estremeceu. Nitidamente, o estado de Holmes era grave. O grande cérebro da Europa, o mais tenaz dos homens, estava agora reduzido a um corpo inerte e indefeso, dependendo de pessoas para fazer mesmo a mais básica das necessidades fisiológicas.

–Acredite, será melhor assim. Com o ferimento que ele tem, ele preferirá ficar inconsciente. A menor movimentação poderá abrir ainda mais a ferida, que é pequena, mas profunda.

Esther assentiu, ainda triste, sentando-se à mesa da cozinha.

–Preciso voltar à Baker Street. Ao menos para pegar algumas roupas minhas, e se possível dele também.

Richard franziu o rosto. – Você mora em Baker Street?

Ao perceber que falara demais, Esther não teve outra alternativa senão confirmar.

–Sim, eu moro lá.

–Na mesma rua que Sherlock Holmes do Strand? Que ótimo! Você pode me dizer se ele é real? Você já o viu?

Esther ficou atordoada com a série de perguntas. – Não, eu não o vi! Meu D’us!

–Desculpe... – disse Richard, diante do incômodo de Esther. – É que... Eu leio as histórias do Dr. Watson. Acho legal. Tentava imaginar se meu irmão fazia coisas assim. Sabe, trabalhos de detetive...

Esther assentiu, aceitando as desculpas. – Sim, ele fazia. Não era o mesmo trabalho, mas era algo parecido. Ao menos não deixa de ser investigação. Enfim, eu terei de voltar para casa...

–Em roupas masculinas?

Só naquele momento Esther notou o problema. Estava vestida com uma calça, que quase cobria seus pés, além de camisa e colete. Seria difícil passar desapercebida daquela maneira.

–Escute, há uma senhora aqui nesta rua que pode nos ajudar. Ela pode te emprestar algumas roupas para você usar, e ir até sua casa.

–Sim. Eu terei de mentir. Direi que estou cuidando de uma amiga doente. Não posso falar sobre ele enquanto não souber o que ele estava fazendo ali.

–No mesmo lugar que a gente. – afirmou Richard. – Será que procurava pelo mesmo?

–Não sei, e confesso que estou catatônica em encontra-lo em Londres. Ele estava em Plymouth, até onde sei. Enfim, vamos procurar por essa mulher.

Richard espalhou pela mesa a série de identidades que eles encontraram no apartamento da amante de seu irmão. O nome dela de qualquer uma delas poderia estar ali.