Laços de Sangue e Fúria

Quando Uma Mulher Se Redime


Havia pouca gente naquele restaurante em Bunkley Street, mas Sherlock Holmes insistia em sentar-se na mesa mais distante e discreta do lugar. O cheiro do legume cozido e do tempero indiano tão sabidamente feito por Sahib Jamal impregnava o ambiente do restaurante Fleury Champer. Um prato com brócolis e tomates pairava em sua mesa, ainda intocado. Nem mesmo Jamal e suas mágicas com vegetais poderiam trazer à tona seu apetite. Holmes escolhera aquele restaurante não porque estava com fome, mas porque precisava de um ambiente sossegado para esperar o fim do expediente de seu irmão.

–Mr. Holmes?

Holmes ergueu seus olhos do copo, deparando-se com ninguém menos do que Miss Violet Hunter, em carne e osso, diante de si.

–Miss Hunter? O que faz aqui? – perguntou educadamente, escondendo o desprezo que passou a sentir pela moça.

Ela, é claro, parecia nervosa e envergonhada. Dado seu estado emocional, completamente surpreso, aquele era, sem dúvida, um encontro casual, decorrido das coincidências.

–Eu estou de férias e vim passar alguns dias em Londres, para reencontrar alguns antigos amigos. – ela disse, e Holmes pôde enxergar pouca verdade em suas palavras, devido às suas recentes atitudes terem sido meras mentiras.

–Eu... Eu soube que...

Conversar sobre os jornais era a última coisa que Holmes desejava.

–Se veio até a minha mesa e interromper o meu jantar para conversar sobre os últimos acontecimentos, eu...

–Não! – ela o deteve. – Nosso encontro aqui, Mr. Holmes, foi meramente acidental, eu juro. Não forjei tal situação. Além disso, eu... Eu estou esperando um amigo.

Holmes pareceu satisfeito e acenou para que ela puxasse uma cadeira, o que foi feito rapidamente por Violet.

–Um amigo? E quem seria esse amigo?

–Um irmão de uma de minhas amigas. Ele mora em Manchester, mas está trabalhando aqui em Londres e... Desejou me ver.

–Entendo.

Olhos desviando dos meus, mãos entrelaçadas, boca contraindo-se rapidamente... Aquela história estava muito mal contada.

–Mas afinal, Mr. Holmes, eu lhe devo um pedido de desculpas por... Aquela situação embaraçosa e vexaminosa que fiz o senhor passar em Manchester. Foi, de fato, uma infantilidade de minha parte.

Holmes apenas assentiu.

–Eu perdoo você, Violet Hunter, contanto que você se mantenha longe de criminosos.

Violet franziu uma sobrancelha. – O quê?!

–Realmente, Miss Hunter, a senhorita acredita mesmo que eu seria tão patético em presumir que aquele mirabolante plano de desviar dinheiro da escola deixando poucos rastros seria capaz de vir apenas de você? Acha que não sei que havia uma terceira pessoa, engenhosa e certamente estelionatária, por trás de suas ações indevidas em Manchester?

Violet ficou ruborizada.

–Quem está por trás da identidade de Judy Reinolds?

–E-Eu não...

–Vamos lá! Eu sei que ela usou uma identidade falsa para agir no banco.

–Eu juro que eu não sei!

Holmes pareceu irritado. – Não sabe? A senhorita contrata os serviços de uma golpista e...

–Foi idéia de Henry... Quero dizer, o professor Longbord. Ele sugeriu a idéia de desviar o dinheiro da escola... – Violet pareceu envergonhada. - Henry disse que conhecia uma mulher que poderia me ajudar com isto. Eu sequer sabia que ela tinha utilizado esse nome. Eu apenas a conheci como... Marjorie.

–“Apenas” Marjorie? – Holmes pareceu descrente.

–Está bem! – entregou-se Violet. – Seu nome completo era Marjorie Eccles. Eu só a vi uma vez em toda a minha vida. Henry marcou um encontro com ela. Ele realmente acreditou que eu iria desviar o dinheiro da escola e me indicou o nome dela. Mas eu desisti de prosseguir. Henry estava se mostrando um verdadeiro canalha e parecia simplesmente me usar para isto. Estar ao lado de um homem tão canalha quanto ele me fez lembrar de... Você.

Holmes pareceu momentaneamente envergonhado. Por que agora mais parecia que todas as mulheres do mundo queriam se declarar para ele? Se elas soubessem o quão destrutivo tinha o efeito de uma declaração de amor para ele...

–Bem, como eu já tinha marcado o encontro com ela, decidi prosseguir com o plano. Contei a ela das minhas intenções: eu era apaixonada por um detetive particular e queria arranjar um pretexto para que ele se aproximasse de mim.

–E o que ela achou disso? – perguntou Holmes, curioso.

–Ela riu de mim. Mas disse que “trabalho era trabalho” e que iria aceitar. Zombou, inclusive, dizendo que me faria um desconto porque “acreditava no amor verdadeiro”.

Holmes riu. – Ao menos tem senso de humor. Mas conte-me mais a respeito dela.

–Pelo que pude perceber por suas atitudes, essa Marjorie parece ser conhecida por serviços sujos no sistema bancário. Uma especialista em desvio de dinheiro, assalto a bancos, estas coisas.

Holmes parecia interessado. Afinal, ele jamais tinha escutado a respeito dessa mulher misteriosa e com uma ficha criminal tão sofisticada. Decerto ele precisava se atualizar sobre ela e ouvir mais de seus feitos no submundo do crime. A pessoa certa para isto, sem dúvida, seria Johnson, um raro homem de confiança que pratica crimes impunemente em troca de pequenas informações dadas a Holmes. Pedi-lo informações sobre Marjorie Eccles seria a primeira coisa que ele faria antes de ir para Plymouth.

–Conte-me mais.

–Ela marcou um encontro em um restaurante em Manchester. Não posso dizer de onde ela vem, pois mais parece ter um sotaque... Mundano. Um sotaque de alguém que já esteve por toda a parte. Não dá sequer para dizer que ela é inglesa.

–E o que mais?

–Eu paguei adiantado, a metade ainda naquele dia. Ela combinou que eu deixaria a outra metade... Aqui.

Holmes pareceu surpreso.

–Aqui?!

–Exatamente, marcamos neste restaurante. Mas porque o senhor...?

Holmes virou os olhos rapidamente para os lados, e seu olhar acabou atingindo a porta. Acabou percebendo, um tanto tarde demais, um vulto sair do lugar às pressas. Sem pensar duas vezes, ele se levantou, quase se esquecendo de suas malas.

–Cuide de minhas malas! – pediu a Violet, saindo do restaurante às pressas.

Holmes percebeu, em meio ao tumulto de fim de tarde londrino, uma mulher se misturar à multidão, destoando-se dos demais, entretanto, pelos passos apressados. Enquanto batia de ombros com muitos pedestres, que irritados lhe teciam resmungos, Holmes tentou alcança-la. Quase a perdeu de vista em muitos momentos. Realmente, a mulher era uma profissional, mas Holmes era um homem preparado.

Ela cometeu a ousadia de sair das vistas e adentrar a uma rua deserta e de pouca iluminação. Aquele era um conhecido reduto de bares difamados e também de pivetes. Apesar da distância, largamente ampliada pela habilidade da mulher em correr de vestidos, Holmes pôde perceber que ela usava roupas boas e escuras, e que os pivetes sedentos por uma carteira simplesmente ignoravam sua presença. Certamente já sabiam que ela não era nenhuma dama indefesa.

A alguns passos dela, já submerso na escuridão das ruas mais imundas de Londres, Holmes a viu cruzar uma esquina. Quando estava prestes a fazer o mesmo, acabou sendo agredido com um soco que poderia ter-lhe arrancado alguns dentes. Ele cambaleou, ainda surpreso pela agressão repentina partida das sombras. Seria alguém protegendo a “dama”?

–Feliz em me ver, detetivezinho?

Não era outro, senão Bruce Finnegan,

Maldição, estou sem tempo para provocações...

Tarde demais. Ela já se foi.

–Hora errada de aparecer, garoto. – murmurou Holmes, sentindo o queixo e frustrado por perder Judy Reinolds, ou simplesmente “Marjorie” de vista.

–Pode ser. Eu deveria ter aparecido em sua vida mais cedo, não é? Talvez seu império de mentiras sequer tivesse existido se eu tivesse tomado essa decisão de revelar sua canalhice há mais tempo.

–Não seja patético.

–Oh, mas eu posso ver que estás irritado! Deixe-me pensar... – dizia Bruce, enquanto rodeava Holmes, debochadamente. – Os jornalistas não estão deixando o senhor em paz, não é?

Holmes estava decidido a não cair em suas provocações. Talvez aquilo fosse uma armadilha. Seria maravilhoso se ele, Sherlock Holmes, simplesmente espancasse Bruce Finnegan enquanto há um processo em curso contra si. A imprensa o mandaria um buquê de flores por isso.

–Onde pensa que vai? – resmungou Bruce, impedindo a passagem de Holmes. – Ainda não terminamos.

Ao perceber as mãos de Bruce se aproximar de seu ombro, com intenções nada amigáveis, Holmes pegou-lhe o pulso esquerdo e o girou, manipulando os dedos do rapaz de uma forma que o colocava quase a ponto de ter seus ligamentos partidos. Com o movimento rápido e preciso, Holmes fez o rapaz choramingar feito um bebê e se prostrar de joelhos no chão, de tanta dor.

–De fato, ainda não terminamos. – disse Holmes, apertando os dedos do jovem com cada vez mais força a medida que falava. – Mas eu lhe garanto que quando terminar, será o primeiro a saber.

Ele estava humilhado. E o que era melhor: sem qualquer lesão visível.

–Você vai me pagar! – berrou Finnegan, ajoelhado no beco escuro e sozinho, enquanto os passos de Holmes pelas poças de lama tornavam-se mais distantes.