Laços de Sangue e Fúria

Conselhos de Irmão Mais Velho


Pall Mall. Londres, Inglaterra. 14 de Janeiro de 1895.

Mycroft estava com os olhos semi-cerrados. Estava completamente sonolento. Embora quase cambaleante de sono, ele insistia em se manter acordado, sentado em sua poltrona. Era um homem apegado à horários e rotinas – o oposto de seu irmão mais novo, Sherlock – e o relógio lhe avisava que ainda era sete e trinta e sete. Ele só se deitava às oito, no máximo ás nove.

O bater da porta, então, lhe despertou por completo. Não costumava receber visitas, que dirá àquela hora. Quem poderia ser?

Saindo de seu conforto, Mycroft se levantou e se dirigiu à porta, reveleando, enfim, uma surpresa.

Seu irmão, Sherlock, carregando uma pequena mala.

–Problemas com a mais nova membra de Baker Street, meu irmão?

Holmes assentiu, a contragosto, finalmente adentrando ao apartamento de seu irmão.

–Sim. – ele disse, de maneira desconfortável. – Aquela mulher é louca.

–Todas são. – disse Mycroft, com graça. – Pensei que sua convivência com Miss Katz tivesse lhe ensinado a entende-las.

–Esther é diferente. Ela é racional, não tanto como eu, mas racional em uma medida adequada.

Mycroft riu. – Oh, mas é preciso ser na medida. Imagine como seria se estivesse casado com alguém de mesma racionalidade que você, ou mesmo eu?

Deixando sua pequena mala em um canto, Holmes pareceu ponderar.

–Seria o inferno.

–Boa noite, meu querido irmão. – disse finalmente Mycroft, dando-lhe um abraço sem braços, limitado a toque leve da ponta do dedo no ombro. Algo típico de si.

–Espero não estar incomodando sua preparação ao Sono dos Justos... – disse Holmes, sentando-se à cadeira.

–Nem um pouco, meu irmão. E se quiser, posso pedir à Mrs. Joventine que prepare um jantar frio a si. Afinal, a comida do Fleury Champer é tenebrosa! Sinceramente, eu não sei como consegue comer capim no jantar...

Holmes riu com a dedução de seu irmão mais velho, de que ele tinha jantado em um restaurante vegetariano.

–Não é capim, é brócolis. E muito obrigado, meu irmão, mas deixe sua senhoria dormir. Uma boa noite de sono fará bem à sua artrite...

–Artrose, meu irmão. – disse Mycroft, dando um afago em Holmes, enquanto corrigia sua dedução. – Artrose.

Holmes pigarreou, sentindo-se levemente derrotado, mas satisfeito. Uma conversa com seu irmão, mesmo a mais simples, parecia um duelo de espadas. Sensação esta que ele gostava de ter desde menino.

–Mas o que lhe aconteceu? – disse Mycroft, sentando-se quase solenemente à sua poltrona. – A moça jogou-se aos seus braços?

–Ela foi mais longe, meu irmão. – disse Holmes, hesitante. – Ela me beijou.

–Oh, por St. George! – exclamou Mycroft. – E Watson viu, eu presumo.

–Exatamente. Creio que está se sentindo ofendido, algo que não posso recriminar. Preciso me afastar, Mycroft. Ou posso acabar sendo forçado a...

Mycroft lhe negativou. – Oh, mas isso jamais iria acontecer. Não mesmo. Seria bigamia. E se você não lhe contasse a verdade, eu contaria.

–Mycroft! – exclamou Holmes, surpreso. – Jamais imaginei que fosse de seu feitio se envolver em assuntos tão particulares...

O semblante de Mycroft era sério, como se falasse no Parlamento.

–Esse assunto escapa ao privado, Sherlock, porque envolve o Governo. Sim, envolve. Afinal, são duas identidades falsas sendo usadas de maneira indevida. E eu sei que essa confusão envolvendo o passado de sua esposa irá se dissolver. Homens como o Conde Ivanov morrem de uma hora para outra. E quando o Conde morrer, não há mais empecilho entre vocês dois. Você terá de se casar com ela, terá de transformá-la em Mrs. Holmes!

Holmes pareceu, para ojeriza de Mycroft, atemorizado com a idéia.

–Mas...

–E sem “mas”! Sherlock! – recriminou Mycroft, indignado. – Sua atitude é extremamente... Indecente! Para mim, você não age diferente do que um homem que se envolve com uma mulher casada, ou mesmo que se relaciona com uma solteira sem compromisso!

Holmes se sentiu ofendido.

–Você está exagerando...

–Estou?! Olhe para você! Parece ter medo de encarar uma real vida de casado! Ou melhor, você não quer perder sua vida como homem solteirão, tendo uma cama inteira só a si, mostrar-se o Ser Superior, não sucumbido à carne, uma Perfeição da Lógica. Mas você não é exatamente isso! E nem mesmo eu sou... E digo mais! Se quisesse, meu irmão, você já teria derrotado esse Conde. Obstinado como és, teria arranjado uma brecha para arruiná-lo, assim como tanto fez ao Professor Moriarty. Mas não é isso que desejas, não é? Para quê, se podes se relacionar com Esther e deixar que todos pensem que é um homem disponível? Você deseja os dois!

Holmes suspirou, baixando a cabeça.

–Desculpe meu comportamento, meu irmão...

Mycroft assentiu. – Está bem. Eu vejo-me obrigado a dizer tais coisas, Sherlock, porque episódios como essa “prima” de Watson não poderiam acontecer se você fosse o que é de fato: um homem casado. Enfim... – disse Mycroft, levantando-se. – Creio já ter deixado às claras a minha opinião quanto a isso. Eu reprovo essa união estranha entre vocês dois desde o princípio. Só permiti porque Miss Katz não se importou.

Holmes assentiu.

–Onde irá dormir, meu irmão?

–No sofá, Mycroft. Apenas terei um cochilo. Meu trem parte meia-noite para Plymouth. – disse Holmes, já se acomodando.

–Ao menos tire os sapatos. Ou irá emporcalhar o estofado com poeira de cais. – repreendeu Mycroft, com mais uma dedução brilhante. – Bem, tenha uma boa-noite, meu irmão.

Holmes riu sozinho. A poeira em seus sapatos, que Mycroft gentilmente chamou de “poeira de cais” nada mais era que um vestígio de sua ida a um pub daquela redondeza. Como era de se esperar, seu agente no submundo do crime estava lá e atendeu ao seu sinal rapidamente. Contou que ouvia o nome de Marjorie Eccles por entre os marginais, para pasmo de Holmes, com certo medo. Era consenso de que ela era uma mulher de posse e contatos, capaz de apagar vestígios e destruir qualquer um que passasse seu caminho.

Deitado, tentando relaxar, Holmes se lembrava da conversa com Johnson.

–Lembra-se de Edgard Flint?

–Aquele que desviou dinheiro de um Ministério? – disse Holmes, lembrando-se de um famoso caso de corrupção envolvendo um famoso estelionatário londrino. – Claro que me lembro dele. A Scotland Yard jamais conseguiu prendê-lo por nenhum de seus crimes.

–Ele está... Digamos, “fora de mercado”?

–Fora de mercado? Flint? – Holmes parecia não acreditar. Afinal, Flint tinha uma clientela fiel e o negócio era lucrativo.

–Sim, Mr. Holmes... Parece que essa tal de Marjorie simplesmente disse que o negócio agora era dela e que ele deveria se retirar. Ninguém sabe exatamente o que ela fez, mas Flint foi embora da Inglaterra e nega qualquer pedido. Dizem que ela está mono... mono...

–Monopolizando. – corrigiu Holmes.

–Sim, isto mesmo. A gangue dos irlandeses assaltadores de banco foi também exterminada. Um tiroteio, há um mês atrás. A Scotland Yard anda dizendo que foi trabalho deles, mas todos nós sabemos que foi Marjorie, atuando às escondidas.

Holmes parecia descrente. A mulher era mais perigosa que ele poderia imaginar. E tudo estava acontecendo em Londres, bem debaixo de seu nariz!

–Então, estão todos mortos? Todos que se envolviam com estelionatários e assaltos a banco?

–Quase todos. O único que ainda atua livremente é Derek Noles. Ele está intacto, o que todos nós achamos suspeito. Acreditamos que ele está aliado a ela, e entregando seus concorrentes.

–Uma probabilidade... – concordou Holmes. – De qualquer modo, suas informações foram valiosas, Johnson. – disse Holmes, entregando algumas notas ao marginal. – Haverá mais, se me der mais detalhes. Quero todas as conexões dela. Saber como e de onde surgiu essa mulher. Quero que entenda, Johnson: isso será perigoso.

–Eu sei disso, Mr. Holmes. Mas estou disposto a fazê-lo, em troca de uma recompensa justa.

–Ótimo. Posso contar convosco, então?

–Sim. – disse o marginal. – Creio que em uma semana, poderei dar-te algo importante.

–Sherlock! Os malditos sapatos! – gritou Mycroft, já irritado, de dentro de seu quarto, retirando Holmes de suas lembranças.