A respiração de Holmes estava quase inaudível, como se ele fosse um cadáver. O ar daquele apertado armário de vassouras até parecia pesado. Pelas frestas do armário, ele podia ouvir apenas os passos de Watson e do outro médico se distanciarem, o que provocou alívio em seu peito. Por sorte, o armário passou despercebido pelos dois.

Preciso sair daqui o quanto antes, pensou de maneira calculista.

Sabendo que seria impossível passar despercebido com aquele sobretudo branco e chapéu de abas largas extremamente chamativo, Holmes o retirou e passou a leva-los a mão, enrolados. Tirou também parte da barba, deixando apenas um pouco de seu bigode. Como estava escuro e sem qualquer espelho para se inspecionar, Holmes torceu para que não tivesse deixado nenhum penacho de pelo em seu rosto que o deixasse estranho.

O hospital estava agitado. Enfermeiras soltavam gritos histéricos, assim que eram informadas a respeito de um “criminoso foragido” dentro do St. Mary Hospital. Holmes dava passos rápidos, evitando olhar diretamente em quem quer que fosse, sempre verificando por trás de seus ombros se alguém lhe estava seguindo.

Parou, por final, em uma ala, a dita “Ala dos Loucos”.

O último lugar que alguém são desejaria passar. E também o último lugar que desejariam procurar. Apenas se todo o restante do hospital estivesse inspecionado e descartado a polícia faria uma busca ali.

A imensa porta branca parecia ser forte o bastante para esconder os gritos e lamentos dos loucos do Hospital, notou Holmes. Quando seus ouvidos foram inundados pelos sons emitidos pelos loucos, em suas sessões de “tratamento” (os sons de voltagem e gritos de dor já lhe diziam o que seriam tais sessões) ou mesmo as ditas punições – como se o tratamento em si já não o fosse. Holmes imaginava que tipo de pessoa poderia suportar tal tarefa sem se tornar tão louco quanto seus pacientes.

Ele logo chegou a uma sala, que mais parecia ser uma espécie de “recreação”, avistando alguns tipos incomuns interagindo. Havia de todos os tipos ali: um homem brincando de boneca, uma mulher mexendo nervosamente em uma cadeira, um rapaz gritando qualquer coisa em um idioma estranho e uma jovem obcecada, conversando com sua própria sombra.

De repente, surgiu-lhe a idéia.

Ele sentou-se perto do mais “normal” – o que era até um elogio, para um homem já barbudo alimentando duas bonecas com uma mamadeira. Agachou-se, ficando à mesma altura que o sujeito, de cabelos desgrenhados, muito absorto em alimentar suas bonecas e alheio ao ambiente.

Holmes sabia dos riscos de tal aproximação. O louco poderia avisá-lo rapidamente, causar tumulto e atrair atenção a si. O tiro literalmente poderia sair pela culatra. Ah, mas se isso não der certo...

–Er... Com licença?

O homem não se moveu. Preciso tentar outra coisa.

–Belas bonecas.

–Não são bonecas, são minhas filhas. – o louco corrigiu.

–É mesmo? Er... Qual o nome delas?

–Barbara e Jolie.

Com bastante cuidado, e temendo uma reação agressiva do louco, Holmes aproximou o seu ouvido de uma delas e fingiu escutá-las.

–É mesmo, Barbara? Hmmm... – disse Holmes, embarcando na loucura do sujeito.

–O que ela te disse? – ele pareceu curioso, nervosamente curioso.

–Ela fez uma aposta comigo.

–Aposta? Barbara, quantas vezes eu não te disse que isso não é coisa de Deus? – resmungou o louco, com raiva, para a pobre boneca. Holmes o ignorou e continuou.

–Ela disse que você não é capaz de correr pelo jardim do Hospital sem ser alcançado por alguém.

O louco pareceu ponderar – se é que isso era mesmo possível.

–Claro que sou. Já fiz isso duas vezes e ninguém me viu.

–Mas ela disse que você é muito bom nisto, mas duvida que você consiga fazer isso usando esse chapéu e esse terno. – disse Holmes, apontando para as vestes de John Sigerson.

–Mas que filha insolente! – resmungou o louco. – Isso não é nada para mim!

Holmes sorriu, maliciosamente.

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Holmes se aproximou de um canto e ajudou o louco a vestir-se. O homem parecia inquieto, incomodado em vestir um sobretudo branco pesado. Holmes tentava apressá-lo, em vão. Ele precisava ser rápido, ou seria logo desmascarado, pois não tardariam em inspecionar a Ala dos Loucos.

E isso não tardou a acontecer.

Quando estava tentando colocar o chapéu de abas largas na cabeça do louco, logo Holmes ouviu vozes, vindas do outro lado da sala. Eram vozes masculinas. Certamente policiais.

–Lembrem-se, homens. Não mexam com os loucos. Sabemos muito bem quem é o nosso suspeito...

Mas que droga...

–Eu acho que estou pronto. – disse o louco, de repente convicto enquanto se inspecionava.

Holmes suspirou de alívio. Finalmente!

–Então... 1, 2, 3 e já! – contou Holmes rapidamente, fazendo o louco entrar em disparada.

Ainda dentro do banheiro, Holmes pôde ouvir o desespero dos policiais, ao confundir o louco com o suspeito, John Sigerson. Logo começou-se um tumulto por todo o Hospital, com pessoas fugindo do homem e meia dúzia de policiais correndo atrás do louco. É hora de escapar, pensou Holmes, descendo pela janela, ainda vestindo roupas do hospício, uma vez que cedera as suas ao lunático.

Pular o muro do hospital não foi difícil, mas Holmes sabia que seria muito complicado andar pelas ruas com aquelas roupas hospitalares sem ser notado. Nos poucos passos que deu pelas ruas foi logo notado pela pequena multidão que andava por ali. Ao perceber uma mulher chamar a atenção de um policial para um “sujeito esquisito” andando na rua, ele logo adentrou em um beco sujo, dando caminhadas rápidas. Logo encontrou um mendigo, procurando comida em uma lata de lixo.

–Ei! – chamou Holmes. – Eu tenho uma oferta a fazer.

O mendigo olhou preocupado para Holmes. Certamente o imaginou como um ladrão de comida.

–Cheguei primeiro. – disse o sujeito, rispidamente.

–Não estou interessado na lixeira, mas em suas roupas.

O mendigo pareceu atônito.

–O sinhô quer me assaltar, é isso? Mas que filho da...!

–Não! – negativou Holmes. – Nada disso, apenas desejo o seu terno. E eu posso pagar... – disse Holmes, mostrando algumas moedas, que ele retirou a tempo do fundo de seu bolso.

Imediatamente, o mendigo pareceu mais interessado.

Até que não seria mau negócio...

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Pall Mall. Londres, Inglaterra. 05 de Janeiro de 1895.

–Mas que confusão, meu irmão!

Mycroft Holmes enchia duas pequenas taças de licor. Enquanto ouvia todo o relato de seu irmão, a respeito de suas confusões desde o início do dia, o mais velho dos Holmes ficava pasmo e fazia observações. Ele logo imaginou que algo complicado se passou para Sherlock Holmes aparecer na porta de sua casa, vestindo um terno fedorento e calças hospitalares, mas não imaginava nem um terço de toda a confusão, muito menos a causa delas.

–Nestas horas, meu irmão, eu me congratulo por não ter sua energia. Certamente, se você tivesse deixado essa traquinagem do rato passar em brancas nuvens, nada disso teria acontecido. – disse Mycroft, entregando a Sherlock uma pequena taça de licor.

Holmes bebeu-a com um trago. Já estava devidamente limpo, de banho tomado e vestindo um conjunto de ternos que sempre deixava na casa de Mycroft, como precaução.

–Eu não estou nem um pouco arrependido, meu irmão. Afinal, essa minha investigação, apesar dos percalços, deu resultados. Eu já sei que devo procurar um homem chamado Bruce Finnegan, frequentador do pub The Irish Dragon e que se veste igual a um americano. Quer busca mais refinada?

Mycroft olhou com asco.

–Eu jamais desejaria investigar em qualquer pub que se chame Irish. “Irlandês” e “pub” em uma mesma frase é risco de morte para pessoas como eu. Imagine como deve ser o ambiente do lugar, a comida, os frequentadores...

Holmes riu. – Por isso fiquei com toda a energia da família.

–E eu, com o juízo. – disse Mycroft. – Mas então, fará isso agora?

Holmes estava sentado em uma poltrona, amarrando seus sapatos.

–Essa noite, talvez, mas já estamos perto do horário do almoço. Creio que minha presença faz-se necessária em Baker Street, ao menos por agora. Estou curioso para rever Watson depois desse incidente do hospital.

Mais uma vez, Mycroft pareceu enojado.

–Você quer tripudiar em cima do sofrimento de seu melhor amigo? Francamente, Sherlock, você não tem vergonha ou compaixão?

Holmes se limitou a rir.

–Não tripudiarei, meu irmão. Apenas desejo ver o que ele achou de descobrir que seu grande suspeito era, na verdade, um lunático que brinca com bonecas.

Mycroft negativou com a cabeça.

–Só desejo saber o que ele fará quando souber a verdade. Porque um dia, você terá de contar. Não pode viver escondido o resto da vida...

–Meu irmão, é hora de ir. – interrompeu Sherlock, dando um leve afago no ombro de Mycroft. – A conversa foi ótima. Até mais.

Holmes voltara a Baker Street, com jornal debaixo do braço e pequeno pacote de compra no outro. Assobiava uma peça de Beethoven, alegremente, quando encontrou seu amigo terminando o almoço, com o semblante nada agradável.

–O que foi? – ele perguntou. – Onde será o velório?

–Isso eu ainda irei providenciar, meu caro. – respondeu Watson, furioso. – Aquele calhorda do John Sigerson esteve aqui, em Baker Street.

–Oh, é mesmo? – perguntava Holmes, enquanto abastecia seu chinelo persa com mais tabaco. – E como foi esse encontro?

–Não houve encontro – ao menos não aqui. Ah, mas quanta audácia! Ainda aparecer aqui, depois de tamanha desconsideração à sua própria esposa!

Enquanto fumava, Holmes mostrava indiferença.

–E ela o recebeu, ainda por cima. E confessou que... Que passou a noite com ele. – disse Watson, tristemente.

Oh, meu caro Watson. Entristece-me vê-lo sofrer de tal maneira e saber que sou o responsável. Mas eu amo aquela mulher tanto como você, e esconder isso é mais que necessário à sua segurança...

–Natural, meu caro. Os dois são casados.

Watson bufou. – Ela está enfeitiçada, isso sim! Enfeitiçada pela vida de aventuras que esse aventureiro possui, com suas histórias a encher-lhe o ouvido...

–Watson, não acha que está na hora de você deixa-la em paz? – perguntou Holmes, francamente.

–E desistir dela? Jamais! Não enquanto meu coração ainda bater!

Holmes soltou uma baforada, ainda fingindo indiferença.

–Por isso me distancio de tais sentimentos. Eles só servem para nos maltratar.

–E ainda não contei tudo... – continuou Watson. – Eu estive essa manhã no St. Mary Hospital para devolver um livro a um colega de faculdade quando esbarrei com um sujeito no lugar. Um sujeito estranho... Alto, magricela, vestido com um sobretudo branco e chapéu largo também branco... Lembrei-me da descrição de Mrs. Hudson de imediato! Quando eu o chamei, ele pôs-se a correr. Sem dúvida era ele, eu tenho certeza!

–Quem? – perguntou Holmes, cinicamente.

–Quem mais? – resmungou Watson, visivelmente irritado. – John Sigerson, ora! Em carne e osso! Quanta audácia, aparecer por ali, em um dos locais que frequento... Sem dúvida esse sujeito está me provocando...

–Será que você não se confundiu, meu caro?

Watson negativou. – Eu tenho certeza de que era ele. Ora, o sujeito correu de mim! Quer prova maior? Quem não deve, não teme! Decerto tem medo de mim.

Holmes segurou um sorriso, e disfarçou.

–Mas o que aconteceu? Vocês encontraram o sujeito?

–A polícia recebeu um alarme falso. Parece que ele foi esperto e trocou de roupa com um louco, que pôs-se a correr pelo hospital. Acabou confundindo a polícia. Com certeza aproveitou a brecha para escapar.

Holmes ergueu uma sobrancelha, surpreso pelo raciocínio de seu amigo. Parece Watson, que você está aprendendo comigo. E mais do que eu gostaria, infelizmente.

–Você deveria me ouvir com mais frequência, Watson. Siga sua vida, deixe Mrs. Sigerson e seu marido em paz. Isso não é mais de sua conta.

Ao receber um suspiro nada amigável de Watson, Holmes mudou de assunto. Logo, Mrs. Hudson serviu-lhe o almoço, que ele, como sempre, pouco apreciou, fazendo-lhe um prato modesto e dando nada mais que algumas garfadas. Watson estava em tal estado de humor que pouco se importou com a falta de apetite de seu amigo, lamentando a chance de ouro de colocar as mãos no maldito John Sigerson e ter, finalmente, o caminho livre para Esther.

Terminando de fumar o cigarro pós-refeição, Holmes imediatamente se levantou de sua poltrona.

–Meu caro Watson, eu tenho assuntos a resolver. Se me dá licença...

–Toda, meu caro. Adoraria lhe acompanhar, mas tenho uma consulta marcada daqui a duas horas. Tenha um bom dia.

Depois de pôr sua cartola sobre a cabeça e vestir seu terno, Holmes pôs-se a descer as escadas. Quase esbarrou em Esther, também elegantemente vestida. Ainda pôde fazer uma observação, aproveitando-se de que não havia ninguém por perto.

–Indo para o campo de batalha?

–Algo assim. – ela disse, antes de dar uma breve piscada a ele. Holmes deu um passo adiante e abriu a porta.

–Primeiro, as damas. – disse, com o olhar divertido.

Do lado de fora, cada um seguiu para um lado oposto, submerso em seus negócios profissionais.