Laços de Sangue e Fúria

De Volta Ao Mundo Dos Vivos


Londres, Inglaterra. 17 de Fevereiro de 1895.

Holmes abriu seus olhos lentamente.

Sua visão ainda era turva. Não era exatamente o que ele esperava que seus olhos cinzentos encontrassem.

Uma criança. Cabelos e olhos castanhos, lhe observando.

Quando ele tentou dizer alguma coisa, ela deu alguns passos para trás, e disparou a correr. Será que ele a assustou? Mas o que ele estava se perguntando... Não era esta a pergunta, mas quem era esta menina? E que casa era aquela?

Uma vela, sobre um velho criado-mudo. Um relógio – seu relógio de bolso, ele reconheceu – e uma infinidade de frascos. Remédios, certamente.

Ele tentou se mexer, mas a dor o deteve. Preferiu continuar no mesmo lugar, estático. Sua mão pairou em seu tórax, no local onde fora ferido. Seus dedos tocaram levemente o curativo. Não fora alucinação. Ele realmente foi ferido seriamente.

De repente, um vulto se aproximou sobre ele, depois de soltar um suspiro de surpresa. Holmes sentira vontade de fechar seus olhos, mas ele resistiu. Foi bom, afinal. Pois ele estava diante de ninguém menos que Esther. A mulher que ele amava.

–Es...ther...

–Shhh... – ela disse, ternamente, acariciando sua cabeça. – Não se esforce.

–Eu... O que... Onde eu...?

–Acalme-se. Não tente se mexer, sua ferida pode abrir se fizer esforço. Eu sei, você quer respostas às suas perguntas, que não devem ser poucas. Vamos começar. Você está entre amigos. Esta é a casa de Richard Revington, amigo nosso. A menina que você viu é Charlotte, sobrinha dele.

Holmes assentiu, sentindo-se em paz com a doce e calma voz de Esther.

–Você está confuso por causa da medicação, é isso. Mas não são drogas. Ao menos, não mais.

Holmes deixou escapar um sorriso, praticamente zombando da ojeriza de Esther às suas recreações. Por final, ela riu.

–Maldito seja, Holmes, mas foram essas malditas drogas que te fizeram ficar vivo. Acho que você deve agora ter mais morfina nas suas veias do que sangue. E por falar em sangue...

Esther foi interrompida pela entrada de Richard.

–Então, parece que o senhor despertou! – disse o médico.

Holmes tossiu, inquieto.

–Acalme-se, Mr. Holmes. Eu sou o médico que cuidou de você. Meu nome é Richard Revington. Peço desculpas pelo meu jeito.

Holmes assentiu. - Está bem, doutor.

De repente, Holmes levara a mão à cabeça, até notar uma espécie de curativo na dobra de seu antebraço, cobrindo-lhe algumas de suas cicatrizes de viciado.

–O-O que é isso?

Esther e o médico se entreolharam, inseguros.

–Sherlock...

Holmes ficara pálido momentaneamente, e dera um olhar advertido a Esther, mas o próprio doutor interveio, tentando acalmá-lo.

–Eu sei quem você é, Mr. Sherlock Holmes. Sei de seu casamento secreto, sei de tudo. E não se preocupe, eu não falarei nada disso a ninguém. Esther está me fazendo um grande favor, eu devo isso a ela. Eu sou... Irmão do parceiro de trabalho dela, o Agente Morrison.

Holmes pareceu pensar, até mostrar um semblante mais aliviado.

–Enfim, eu me recordo de ter recebido uma facada, realmente, mas não no meu braço... – ele disse, com zombaria, examinando o curativo.

–Você perdeu muito sangue, Mr. Holmes. Conseguimos conter o sangramento, mas ainda assim, a perda de sangue faria o seu óbito ser uma mera questão de tempo. A melhor alternativa que encontramos foi a transfusão de sangue.

Holmes ficara assustado, mortalmente pálido e com seus olhos cinzentos arregalados. A julgar por sua reação, ele deveria conhecer o assunto, bem como os riscos que essa prática médica tão pouco conhecida ainda possuía.

–Quan-Quando foi isso?! – ele disse, nervoso a ponto de gaguejar.

–Há alguns dias.

Um suspirou de alívio. – Então, fora bem-sucedida. Muito obrigado, doutor, por ter doado o sangue.

Richard riu. – O senhor está agradecendo à pessoa errada, Mr. Holmes. Fora sua esposa quem doara sangue a ti.

Holmes pareceu pasmo, enquanto Esther lhe observava com olhar divertido. – Minha esposa? Uma mulher doando sangue a um homem?

Richard deu uma risada divertida do pasmo de Holmes.

–Asseguro-te, Mr. Holmes, que sua voz não irá afinar, nem terá seios a partir de agora. Um repasse de sangue não será capaz de tal coisa. Tampouco serão irmãos, como a sua esposa temera. O máximo que possuem em comum, e que sempre tiveram, foi certa compatibilidade sanguínea.

O semblante, então preocupado de Holmes, tornara-se mais ameno.

–Acredito que irei adicionar esse tópico à minha lista de futuras monografias.

Enquanto afundava seu rosto entre as mãos, Holmes notou que sua barba já estava um tanto crescida.

–Você está aqui a praticamente um mês. Um mês inconsciente e debilitado, sob nossos cuidados. Precisamos sedá-lo com calmantes e um pouco de morfina, mesmo à contragosto de sua esposa. Precisávamos poupar suas energias para sua recuperação.

–Se atrasássemos mais uma hora ou duas em nossa chegada à casa do falsário Noles, talvez sequer estivesse aqui, Mr. Holmes. – completara o doutor.

–Aliás, meu amor, o que fazia lá? Eu pensei que estava em Plymouth. – perguntou Esther.

Holmes ficou rapidamente ruborizado. Esther jamais o chamara de “meu amor”. Realmente, o que tivera foi grave.

–Bom, é que... Surgiu uma pista quente, que me levava a Derek Noles. Acredito que as cartas eram falsas e... Urgh! – Holmes soltou um suspiro de dor, chamando atenção imediata de Richard e Esther.

–Acho que já fez estripulia o bastante. – disse Esther, detendo-o.

–As cartas... – ele lutava.

–Shhh... – ela disse, levando-o de volta ao travesseiro. – Cada vez que fala, força a sua ferida. Depois conversamos, agora descanse.

Felizmente, ele obedecera a Esther, repousando sua cabeça no travesseiro. Esther pensava consigo quanto ao poder que ela exercia nele, fazendo aquele homem teimoso, talvez o mais teimoso de todos, obedecer-lhe, ainda que protestando bem pouco.

Londres, Inglaterra. 18 de Fevereiro de 1895.

Holmes tomara seu primeiro café da manhã naquele mês ainda na cama. Esther improvisara uma bandeja sobre seu colo – ele não queria se sentir como um bebê, sendo alimentado pela boca, assim ele disse – e tomara café com ele, sentada em uma cadeira ao lado de sua cama.

Mas Esther não estava sozinha. Charlotte insistiu em tomar café com o “Homem Urso”, como ela o chamara. E de fato, havia motivos para a menina ter tal impressão. Desde a primeira vez que o viu, ele estava deitado com as mangas das camisas dobradas e parte dos botões desfeitos, por conta dos curativos no antebraço e no abdomem, exibindo alguns pelos negros de seu corpo, além da barba que crescera rapidamente naquele mês. Mesmo já barbeado, ela ainda o chamava assim.

Curiosamente, Holmes pareceu cativado pela menina, que embora pequena, tinha olhos espertos (idênticos aos de Morrison, percebeu Esther) e uma curiosidade que mal cabia em si. Não uma curiosidade tola, mas fundamentada. Suas perguntas, tão inocentes e curiosas, quase sempre eram respondidas com embasamento teórico, até mesmo científico.

No dia seguinte, Holmes já estava dando passos sozinho. Charlotte insistia em ajuda-lo, embora ela mal tivesse forças para sustenta-lo. A medida que Holmes dava passos desengonçados, tentando disfarçar a dor da ferida, Charlotte lhe dava incentivos.

–O senhor está aprendendo a andar. Igual um bebê. – ela concluiu.

Holmes deu-lhe um sorriso, e afagou seus cabelos ruivos.

–Sabia que eu já ensinei um bebê a andar? – ela disse, cheia de si.

–É mesmo?

–O bebê de Miss Sarah. Ele deu os primeiros passos com a minha ajuda.

As conversas de Charlotte a respeito de coisas simples, como a cor do céu, a cor da água, brincadeiras e livros fazia a mente de Holmes se desprender dos assuntos que ele deixara, ainda pendente, e que exigiam sua prontidão. Algo que ele não conseguiria resolver, não quando uma menina de cinco anos lhe ajudava a firmar os passos.

Àquela altura, ele já estava a par do pedido de prisão, graças à queixa de Leonard Morgan, que desde sempre fora um covarde, mas que tinha conseguido agora uma bela superação de seu próprio status. Havia também a total ignorância de Watson, um assunto que sempre tocava Holmes particularmente, tanto pelos anos em que esteve dado como morto e que seu amigo chamara de “Hiato” (obviamente visando criar uma história sobre isso), tanto por deixa-lo sozinho cercado de abutres, dentre os quais a imprensa e a polícia.

–Watson insiste em dizer que não sabe meu paradeiro... E parece que todos acreditam nele. Bom trabalho, Watson. – disse Holmes, enquanto fechava a edição do “The Star” daquele dia.

–Acredito que pensam que, se você o enganou uma vez, pode fazer de novo. – disse Esther.

–De fato. Aliás, eu deveria parabeniza-la por sua escolha em deixa-lo fora disso. Se ele soubesse de toda a verdade, tenho certeza de que não soaria tão convincente. – ele disse, pegando levemente em sua mão. – Mas então, Doutor...

Richard Revington, que estava tomando seu café, pigarreou.

–Temos um assunto pendente. – disse Holmes, seriamente. – Creio que estou em condições de usar minhas faculdades mentais. Aliás, eu não vejo o porquê de ter sido renegado a dar continuidade às investigações.

Richard deu ombros. – Como impedir um homem mortalmente esfaqueado, jogado ao Tâmisa, que passa por uma transfusão de sangue e sobrevive? Está bem, tens meu aval.

Os olhos cinzentos de Holmes brilharam, em excitação. – Excelente.

–Mas sem estripulias. O que quer que seja a sua investigação, ela será dada aqui, nos limites dos cômodos desta casa. Puramente intelectual. Ademais, o senhor está foragido, e garanto que uma prisão não faria bem à sua recuperação.

Holmes levantou-se, ainda pesadamente, mas já mais sustentado.

–Creio que precisarei, então, de um par de pernas. – ele disse, olhando para Esther.

O olhar de Richard voltou-se para Esther. – Ela?

–Exatamente. Gostaria, minha cara, que você fizesse o enorme favor de ir até Baker Street e pegar uma carta recente, que certamente conterá uma espécie de relatório. Tenho certeza de que lá encontrarei tudo que preciso saber a respeito dessa “Marjorie Eccles”.

No mesmo instante, Esther e Richard mortificaram seus semblantes.

Obviamente, Holmes percebeu. – O que foi? O nome lhes é familiar?

Richard, em estado catatônico, começou a gaguejar. – E-E-E-E-Ela... E-Ela é...

–Marjorie Eccles é a mulher que procuramos desde o início. – disse Esther. – Ela era amante do Agente Morrison, irmão dele.

Holmes mostrou-se surpreso, e ao mesmo tempo contente. – Interessante.

–Tem certeza de que há mesmo alguma coisa neste catálogo sobre essa mulher?

–Antes de ir a Plymouth, eu deixei um de meus informantes levantando informações a respeito dela. Se bem o conheço, ele já terá entregue em Baker Street um relatório completo. – justificou Holmes. – O curioso é que acabei pr esbarrar com este nome aparentemente tão proeminente no mundo criminal em um caso menor, que lidei recentemente. E seria leviandade supor mera coincidência.

–Um caso recente? Qual? – tentou Esther.

–Miss Violet Hunter.

Esther mostrou-se surpresa – e também irritada – com a simples menção de Violet. Richard pareceu empolgado, pois conhecia Violet da história “As Faias Cor de Cobre”.

–Eu espero, Mr. Revington, que o teor desta conversa seja mantido em absoluto sigilo. – alertou Holmes, antes de continuar. – O que quero dizer é que Miss Hunter contratou os serviços de Marjorie Eccles. Uma fraude bancária, que fui resolver em Manchester naquela época. Meu informante já tinha me alertado que esta Violet Hunter era uma mulher poderosa, e que estava destruindo muitos estelionatários e assaltantes de banco. Mas apesar disso, suas reais intenções ainda não se revelaram. Até agora, nenhum grande assalto a banco digno de menção ocorreu. Diria que Londres está até mesmo... Calma, quanto a este tipo de assunto.

Holmes parecia pensativo.

–Mas como vocês obtiveram a conexão desta Marjorie Eccles com o caso do Agente Morrison?

–Os dois eram amantes. Chegamos a localizar um endereço provisório, que ela usava para receber os vestidos que meu irmão comprava. Mas a casa já estava desocupada e a sua dona sem dar quaisquer sinais de vida.

–Também descobrimos que ela é casada, ou tem um amante. Talvez um parceiro em seus negócios escusos. Ou os dois.

–Possibilidade mais provável, esta. – deduziu Holmes. – E quanto a este amante?

Esther suspirou. – Nada. A pista acabou neste ponto.

–Por que essa Marjorie Eccles mataria o meu irmão? Será que ele descobriu sobre seus reais negócios?

Holmes preferiu não responder.

–Perguntas sem qualquer resposta conclusiva. Parece que estamos estagnados, então. – concluiu Holmes, enquanto fumava. – Mas ainda temos o meu informante, Esther.

Esther assentiu. – Sim, eu sei. Passarei em Baker Street para conseguir estas informações, e para pegar algumas roupas também. Irei aproveitar a situação para tentar pegar algumas roupas para você. – ela disse, observando os calcanhares de Holmes, que ficavam fora da calça que pertencia à Richard e que eram bem menores que suas pernas.

–Mas não pense que nossa ida à casa dessa Marjorie Eccles foi de todo perdida. Fizemos uma busca e encontramos numa fresta do assoalho uma caixa.

Com a mera menção de Esther a respeito da caixa, Richard se levantou para pegá-la, em seu quarto.

–Aqui está, Mr. Holmes. – ele disse, entregando-o.

–Ora, ora... – observou Holmes, direcionando um breve olhar afetuoso e admirado a Esther, enquanto abria a caixa.

Dentro da caixa, havia pelo menos uma dezena de identidades falsas, relacionadas a uma mulher sempre entre a idade de 20 a 30 anos.

Marjorie Eccles.

–Ela de fato é uma criminosa eficiente e sofisticada. Duvido muito que Noles não saiba mais sobre ela do que ele menciona em seu caderno de anotações. Vejam: todos esses documentos foram feitos por ele. Identidades suecas, portuguesas, austríacas... Boa parte de países pequenos, sem relevância, cujo controle e fiscalização são irrisórios. Meus senhores, esta não é uma criminosa comum. Não mesmo. E eu tenho certeza de que foi ela que me esfaqueou, pois ela tapou minha boca no momento em que eu recebi a facada. Era uma mão feminina, eu percebi pelo tamanho e cumprimento dos dedos, mas não pude avaliar muito, sentindo tanta dor... Uma dor lancinante, foi esta. – avaliava Holmes. –Depois, eu desmaiei. Se eu tivesse resistido um pouco mais...

–O desmaio é uma maneira de defesa do nosso organismo às dores fortes. Acredite em mim, você deveria estar grato ao seu cérebro por ter te poupado de mais exposição à dor de ter sua carne dilacerada lentamente até atravessar seu abdômen por completo.

A mera descrição fazia Esther estremecer.

–Maneira esta de me poupar que me serviu inutilmente. Mas quem sou eu para discutir os caprichos da Natureza...

–De fato, você é mesmo Sherlock Holmes. – observou Richard, divertido.

–O fato é... – assinalou Holmes. – Vocês encontraram algo útil nesse livro?

–Eu não o li... Estava ocupada na época. – disse Esther.

Holmes estendeu sua mão até o livro.

–Bom, não faz mal. Este livro de anotações possui registros dos últimos três anos, pelo que notei. Se tivermos sorte, essa Marjorie Eccles pode ter sido criada neste período. Pelo que meu informante me informou, há grande possibilidade de Derek Noles ter se associado à ela. E como sabemos que ela surgiu recentemente e que Noles é um dos melhores de seu ramo na Inglaterra, é possível que ela tenha requisitado seu documento com o próprio em pessoa. Conhecendo a astúcia de Noles, ele iria desejar uma contrapartida nesta empreitada. Um trunfo, como a verdadeira identidade dessa mulher, que pode estar aqui. – disse Holmes, com o caderno em mãos, dando ligeiros tapas. – Todos os segredos de Noles estão aqui. Há homens e mulheres de toda a Inglaterra aqui, todos catalogados com suas assinaturas e digitais registradas aqui, abaixo da descrição do “serviço” encomendado. E nossa Marjorie Eccles pode ter se sujeitado ao mesmo, como modo de obter a confiança de um verdadeiro Mestre Falsário. Torcemos para que sim.

–E se ela pediu o documento com uma identidade falsa?

Holmes olhou com diversão. – Uma possibilidade. Mas vamos testar nossa teoria primeiro, depois partiremos para as hipóteses remanescentes, caso esta venha a falhar.

Holmes passou os últimos vinte minutos, observando página por página. Seu semblante, notava Esther, enquanto ele fazia a busca, estava mais vivo. Claro, ele ainda estava pálido, ainda mais por passar quase um mês deitado em uma casa, quase sem sol. Mas ao menos, seu olhar era esperto, atento.

Mas num dado momento, não foi isso que ele aparentou.

Seu semblante se mortificou, como se ele voltasse a ser aquele quase cadáver que eles resgataram do Tâmisa. Richard pareceu temeroso.

–Mr. Holmes, o senhor está se sentindo bem?

–Parece, Esther, que você terá de procurar por outro nome em meu catálogo, muito embora algo me diga que... Estamos lidando com um inimigo muito maior do que poderíamos prever.

–Quem? – ela perguntou, curiosa.

–Moriarty.