Londres, Inglaterra. 07 de Janeiro de 1895.

(Dois dias depois...)

Esther carregava apenas uma simples bolsa. Ela caminhava confiante, olhando as pessoas na rua que a tratavam como uma mera mulher normal. Se soubessem quem, ao invés de um leque, ela trazia ali dentro um kit arrombamento, um revólver e duas facas...

Ainda assim, todos os dias ela orava, ainda dentro de sua casa, para que mais um dia se passasse sem que sangue fosse derramado, fosse o dela ou fosse de um estranho. Dado os negócios de sua profissão, era uma proeza e tanto que seu revólver não tenha sido acionado até agora.

Esther tinha marcado com o Agente Morrison às dez da manhã. Ele lhe dissera que jamais saía sem tomar seu sagrado café no Baden, um pub modesto perto da Agência. Ela torcia para que aquele dia fosse apenas mais um, em que ele lhe fazia piadas machistas antes, durante e depois de sua investigação, e que depois do serviço, cada um fosse para o seu lado, são e salvo.

Ao chegar no pub, como combinado, Esther percebeu que ele não estava.

Ficou na mesa que costumavam sentar. Pediu um suco de laranja. Passaram-se cinco minutos, dez minutos. E nada.

Até que finalmente Morrison apareceu.

Esther iria reclamar, em um tom brincalhão, sobre sua demora. Mas o semblante assustado e pálido dele não dava espaço para brincadeiras, algo que era até estranho em se tratando de alguém como Morrison.

–O que foi? – ela se permitiu perguntar.

Havia um quê de decepção em seus olhos, algo que ele tentava disfarçar. Ele pediu uma cerveja, a melhor da casa, e a tomou quase em um só gole. Nada disse. Esther preferiu, então, esperar que ele dissesse alguma coisa.

–Hoje é o dia da verdade, Katz. – ele disse, terminando com sua caneca. – Hoje é o dia da verdade.

–Do que está falando, Morrison? Eu juro que não entendo nada...

Mas Morrison nada disse. Apensas se levantou, deixando Esther atônita.

–Para onde está indo?

–Assunto pessoal. – ele disse, colocando duas moedas na mesa.

Esther tentou se levantar, mas ele a impediu de maneira um tanto rude.

–Que parte do “assunto pessoal” você não entendeu? – ele disse, de maneira agressiva. Ao perceber o olhar espantado e repreensivo de Esther, ele se desculpou.

–Perdoe-me...

Quando Morrison estendeu a mão, Esther virou o rosto. Embaraçado, e passando a mão por seus cabelos penteados, Morrison tornou a falar.

–Você sabe onde eu fico, não sabe?

Esther assentiu. Era um quarto alugado, na Regent Square. Morrison costumava usá-lo para se esconder – e também levar suas namoradas, dentre outras coisas que Esther preferia não saber. Seu tom permanecia sério.

–Encontre-me lá, daqui a uma hora. Creio que é tempo suficiente. De lá, voltaremos ao nosso trabalho.

Morrison colocou seu chapéu de volta à cabeça, e saiu.

Ainda no limiar da porta do pub, de repente ele se virou.

–E Esther?

A moça estendeu seus olhos para ele, e notou seu semblante triste.

–Você é uma mulher extraordinária. Merecia algo melhor do que trabalhar ao lado de um canalha como eu. Mais uma vez, sinto muito por qualquer comportamento inadequado que eu fiz você suportar. Não deveriam menosprezar pessoas como você. – ele disse, numa clara referência à Agência.

Esther assentiu, um tanto sensibilizada com as palavras de Morrison. Embora ela costumasse ser um tanto rancorosa, ela não conseguiu guardar qualquer raiva dele, apesar de sua canalhice e de suas cantadas fora de hora.

Na última conversa que tiveram, Morrison confessou que estava bebendo mais que o costumeiro nos últimos tempos por causa de um relacionamento sério, que estava prestes a desmoronar. Esther viu sinceridade em suas palavras, que escapavam do costumeiro cafajeste que ela conhecia, e revelava um homem de sentimentos feridos. Um homem que, sem querer, machucava as pessoas ao seu redor. Mas ainda assim, um homem honesto.

Esther pediu mais um suco de laranja ao estalajadeiro. Duas horas... Ambos tinham que seguir a esposa de um agente inimigo, e aquele era o melhor horário. O tal “assunto pessoal” de Morrison poderia comprometer o trabalho de ambos. O que afinal, estava acontecendo? Ele sempre pareceu ser um homem comprometido, dedicado...

Seria algum problema de família, relacionado a seus parentes que ele jamais mencionara, e que ela sabia que deveriam existir? Ou seria sua amada pretendente?

O que quer que fosse, ela deveria esperar.

E esperou.

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Duas horas e vinte minutos depois, lá estava ela.

A Follet Street ficava no coração da sempre fervilhante Londres, no bairro de Soho. Era uma rua comercial e bastante movimentada. Local perfeito para es esconder e se misturar à uma multidão, ela pensou.

O prédio indicado por Morrison era modesto. O térreo era ocupado por uma loja de conveniência. Na calçada, cada vez mais perto da entrada do prédio, ela percebeu algo estranho. Aquele prédio, geralmente com pouco movimento àquela hora, estava lotado de pessoas.

–O que está acontecendo? – ela perguntou, se acotovelando entre os demais.

–Parece que tem um homem morto lá em cima, dona. – disse um deles, de origens modestas. – Já chamaram a polícia.

Oh, não... Terá sido Morrison?

–Cavalheiros, por favor deixem-me passar... – solicitou Esther.

–Isso não é assunto de mulher, senhora... Fique onde está.

Um dos sujeitos tinha ordenado, sendo apoiado pelos demais. Percebendo que estava em minoria e que não conseguiria passar, Esther não pode fazer outra coisa senão recuar e esperar que a chegada da polícia lhe desse alguma brecha.

Em meia hora, esperando à beira da calçada, chegou a polícia.

Mas o que mais lhe assustou foi ver, entre os Yarders, dois homens da Agência.

Alguma coisa estava errada ali...

–Deem licença... – pedia um deles, de maneira rude e autoritária.

–Staines... – chamou Esther por um deles, após reconhecer.

–Miss Katz?! O que faz aqui?

–Eu estava prestes a encontrar Mr. Morrison e...

–Não me surpreende. – respondeu ele, de maneira sarcástica. Esther rolou os olhos com seu machismo bufando dos poros.

–Por favor, eu preciso entrar e saber o que aconteceu...

–Quando eu precisar de uma xícara de chá, Miss Katz, eu vou chama-la.

Enquanto dava uma risada debochada, o Agente Staines não pôde evitar uma joelhada frontal e discreta, que deixou-lhe atordoado o suficiente para dar passagem a Esther.

Em meio à confusão rotineira dos Yarders, Esther subiu até os cômodos, onde Morrison tinha um quarto alugado ali. Ela sabia que era o primeiro, à esquerda. Não foi surpresa encontrar a porta aberta, bem como uma cena desagradável.

Havia, de fato, um sujeito morto ao chão. Um tiro no coração, ela percebeu, mas não era Morrison. Usava roupas xadrez e tinha um bigode. Seus olhos ainda estavam abertos e um revólver pairava entre seus dedos.

–Morrison! – ela chamou, dentro do cômodo

Mal dera dois passos, porém, até avistar outro corpo, perto da janela. Ele estava de bruços. As roupas lhe indicavam serem as mesmas que Morrison usara em seu último encontro, mas isso não bastava a Esther, que se agachou para desvirar o corpo.

–Oh, meu Deus...

Aquele era o corpo de Morrison, caído ao chão, com um tiro nas costas. Perto de seu braço, estava abandonado um revólver, o mesmo que ele utilizava em serviço.

–Senhorita, você não pode ficar aqui...

Esther virou-se, para se encontrar com um engravatado, de rosto de buldogue e bigode que quase cobria-lhe os lábios. Os olhos eram castanhos e um tanto ressabiados.

–E-Ele era meu amigo...

–Saberia, então, identifica-lo?

E agora, o que eu falo?

–Er, inspetor Lestrade... – era a voz de Staines, vinda do corredor. – Eu sou Anthony Meyer, da Marinha.

–Oh... – limitou-se a dizer o inspetor. – E daí?

Staines parecia sério. – E daí que este é assunto das Forças Armadas. Não é do seu interesse.

–Está na área da minha Divisão, então é de meu interesse.

Staines fechou a porta com força.

–Esse é um caso de traição à Rainha, inspetor. Este homem pertence às Forças Armadas e foi se encontrar com um informante ilegal, que com toda a certeza era um agente inimigo que recebia informações do morto. Sabe o que é isso, inspetor?

Lestrade olhou seriamente ao objeto nas mãos dele. Parecia um distintivo, mas Staines o tirou de suas vistas antes que ele tirasse qualquer conclusão.

Ao perceber o silêncio do inspetor, Staines caçoou.

–Obviamente, um inspetor londrino insignificante jamais poderia saber o que é isso. Isso, caro inspetor, é um distintivo de um Pinkerton, e foi encontrado com o homem que está morto no corredor. E creio que, pelo menos, a fama desses americanos mercenários seja de seu conhecimento. Portanto, esse assunto é muito maior que sua jurisdição de meia pataca, então porquê não faz o imenso favor de recolher sua insignificância e retornar ao buraco de onde veio?

O inspetor sentiu-se ofendido, mas prosseguiu.

–Não saio sem saber a quem estou me reportanto. Disse-me que era da Marinha, mas não me deu provas legais alguma de tal fato.

Staines entregou ao inspetor suas credenciais. Contrariado, o inspetor não teve alternativa senão deixar o caso em suas mãos.

–Ah, e poderia fazer o favor de impedir que seus cãozinhos façam bagunça aqui?

Bufando, o inspetor retrucou. – Como quiser, Major.

O inspetor desceu. Estava tão furioso e humilhado que ate mesmo esqueceu-se da presença de Esther no lugar, que tentava analisar a cena do crime, já sabendo que seria expulsa a qualquer momento.

–Agora, vá embora, Miss Katz. Isso é trabalho de homens.

Ainda furiosa com o atrevimento de mais cedo, Esther chegou a cogitar outra joelhada, mas preferiu deixar para lá e fazer o mesmo caminho que o inspetor.

Sair como um cão com o rabo entre as pernas. Definitivamente, isso não era de seu feitio.

O lugar já estava cheio de Agentes do Serviço de Inteligência. Esther refletia se a alegação de Staines fora apenas uma desculpa inventada para espantar a polícia ou era mesmo verdade. A julgar pelo comportamento de seus “colegas”, que cochichavam pelos cantos a respeito da “Traição” de Morrison, isso era o que Agência estava acreditando.

Depois de anos de serviços prestados, com total entrega e dedicação, agora Morrison era um Traidor da Rainha.

Alguma coisa estava muito errada ali.