Esther mal tivera tempo de subir para o café da manhã. Seu primeiro dia – de volta – aos serviços internos e burocráticos começava naquela manhã. Ela duvidava muito que fosse coincidência que sua transferência tenha sido justamente para o Setor de Despachos, presidido por Mr. Howard Hopkins, um verdadeiro ignorante e um dos mais arrogantes homens do governo.

Ele exigia que seus funcionários se apresentassem ao trabalho de maneira impecável. Esther ouvira histórias horríveis a seu respeito, pelos corredores. Desde seu destrato com algumas moças até mesmo segundas intenções.

Esther tentava se esquecer de tais comentários – especialmente a respeito do comportamento inadequado do seu novo chefe – concentrando-se em digitar aquela imensidão de cartas em sua máquina de datilografar. Aliás, o som das teclas batendo era o único som permitido naquele lugar. As conversas entre as funcionárias se limitavam a troca de olhares e palavras monossilábicas.

De repente, uma das moças saiu chorando de uma pequena sala, onde o nome de Hopkins estava gravado no topo da porta. Sabe-se lá que atrocidade ele cometera a ela.

–Oh, pobrezinha, de novo não... – murmurou baixo uma delas sentada atrás de Esther.

De repente, a porta se abriu, revelando apenas a cabeça gorda de Hopkins.

–Miss Katz, na minha sala, agora. – ordenou ele.

É agora.

Esther respirou fundo, levantando-se e ajeitando seu vestido, sob o olhar atento das outras, curiosas para saber como se comportaria a mais nova secretária do lugar.

Esther aproveitou que a porta ainda estava aberta e entrou. Tentou não demonstrar sua hesitação – mesmo temor, por não saber se controlar diante de mais um gesto arbitrário de machismo – e fechou a porta. Hopkins a olhava com arrogância, e apenas acenou com a cabeça para que ela puxasse uma cadeira e se sentasse.

O homem, que estava com uma pasta em sua mão, desviou os olhos do material e olhou atentamente para Esther.

–Miss Katz, fui colocado a par de seus últimos feitos aqui, no Ministério. Sua falta de disciplina, modos, insubordinação...

A própria Esther ficara chocada. Desde quando ela agira desta maneira?

–Pois saiba que este tipo de atitude não será tolerada aqui. Não no meu setor. – disse Hopkins, com a voz firme. – O que a senhorita precisa é de disciplina. Pois coube a mim esta tarefa: discipliná-la. Assim como faço com as demais. A senhora começará seu expediente pontualmente, e se subordinará às regras deste setor, que consistem em...

A listagem de todas as regras rígidas de Hopkins quase a deixara sonolenta.

–... Tudo, é claro, passivo de punição.

–Que punição? O tronco? Chibatadas? – perguntou Esther, não contendo o deboche do ridículo que aquele homem estava impondo sobre si.

Mas, para sua infelicidade, Hopkins não parecia se dar conta disso.

Ele abriu sua gaveta e colocou sobre a mesa um objeto, que Esther reconheceu como sendo uma palmatória.

–10 palmadas por desacato, 20 por conversar durante o expediente, 50 por comportamento impróprio e 2 por cada erro ortográfico em cada carta. E ao que me parece, Miss Katz, você infligiu a primeira regra...

Esther levantou-se, sentindo-se ultrajada. – Mas isso é um absurdo! Eu não vou me sujeitar a isso e...

Com destreza e agilidade impressionantes, Hopkins tomou-lhe a mão esquerda. Ele tinha uma força tão descomunal que Esther sequer conseguia se soltar.

–Me solte!

–Calada! Ou receberá o dobro!

Em seguida, vieram os golpes. A força de Hopkins era avassaladora. Ele mais parecia um feitor de uma fazenda colonial, e Esther suspeitava que talvez ele tivesse sido em algum momento de sua vida. A dor do golpe, até então subestimado por Esther, a fizera soltar um grito de dor mas Esther percebeu que isso apenas dava mais satisfação a ele, pois os golpes se intensificavam.

Contendo a dor, Esther começou a contar internamente...

.. 4... 5... 6... 7... 8... 9... 10.

Hopkins finalmente parara. Estava ofegante, com o rosto vermelho e duas discretas gotas de suor na testa. Assim que a soltara, Esther deu-lhe as costas, tentando esconder a mão ferida, e correu pelos corredores, sendo observada pelas demais secretárias. Como elas poderiam se sujeitar a isso, ela se perguntava.

–Dar-te-ei uma colher de chá, porque este é o seu primeiro dia. E o restante, de volta ao trabalho! Andem! Acaso isso aqui é algum parque? – ele dizia, como se todas as moças ali fossem gado.

Esther sentou-se no refeitório, ainda pasma com o que tinha lhe ocorrido. Nem mesmo seu pai tinha erguido a mão contra si, e agora aquele monstro achava-se no direito disto. Não. Ela não poderia suportar isso.

Ela observava sua mão, ainda muito vermelha. A dor começava a passar, mas a humilhação que passara doía ainda mais. Ela tentara enxugar as lágrimas.

–Mr. Hopkins pediu para te chamar, Miss Katz... – disse uma delas, tentando animá-la. – Vamos lá, pense no seu emprego.. Isso passa...

–Isso é um absurdo! – gritou Esther, em meio a lágrimas.

A moça parecia compreendê-la.

–Bem vejo que é a primeira vez que lida com um patrão desse tipo...

Esther assentiu.

–Acredite, eu já trabalhei em uma fábrica onde o supervisor usava um chicote contra nós. Uma palmatória não é nada.

–Como vocês podem se sujeitar a isso? Por quê não vão reclamar?

A moça soltou um sorriso divertido. – A quem? Quem seria capaz de ouvir a nós, mulheres? Pelo que vejo, você conhece pouco da vida.

–Se quer dizer “esse tipo de vida”, de fato. E não me arrependo de minha ignorância.

–Gostaria de ter o privilégio desta ignorância. – respondeu-lhe.

Esther levantou-se, tentando se recompor.

–Ei, para onde você está indo?

Mas Esther sequer deu-lhe ouvidos. Sem olhar para trás, sabia muito bem para onde estava indo.

Quem estava desejando por isso, conseguiu o que queria. Ela iria pedir demissão. Não havia razão de continuar ali, sem poder trabalhar como uma espiã, gastando seus dedos com uma máquina de datilografar, escrevendo as mesmas coisas todos os dias. Ela ainda poderia fazer mais coisa, ela dizia a si mesma. Poderia voltar a dar aulas, por exemplo. Ela gostara de ser professora. Não era uma profissão ruim, e além disso, ninguém lhe daria palmatórias ou chicotadas.

No corredor, andando desesperada, acabou esbarrando em um jovem, que carregava uma pilha de papéis. De imediato, milhares de folhas voaram por todos os lados.

–Oh, mil perdões! – exclamava o rapaz, se agachando para pegar os documentos...

–Espere, deixe-me ajuda-lo... – pediu Esther, agachando-se ao chão.

Era um homem de cerca de trinta anos, ela percebeu. Seus olhos estavam com olheiras, mas não por falta de sono, e sim por choro. Ele tinha olhos verdes e o cabelo castanho claro, num corte simétrico. Usava óculos, o que lhe dava uma aparência intelectual demais, além do jeito tímido.

Mas havia algo de familiar em seus olhos...

–Aqui está, senhor...?

–Revington. – disse o jovem, desajeitado, apertando a moça na mão errada, para depois apertar corretamente. – Richard Revington.

–Esther Katz...

Revington!

–Er, Mr. Revington? – pediu Esther.

O rapaz se virou. – Sim?

–E-Eu sinto muito por sua perda. De verdade.

O rapaz pareceu entender do que ela estava falando.

–Ao menos alguém deste lugar para me dizer isso. – ele desabafou. – Muito embora eu duvidasse de sinceridade, caso acontecesse.

–Se isso lhe consola, Mr. Revington. – continuou Esther. – Ele era um grande homem. Isso eu posso afirmar apenas do pouco que conheci.

O rapaz tornou-se triste, quase de imediato. Assentiu, dando meia-volta.

–Sabe... – disse Esther, mais uma vez, impedindo-o de prosseguir a caminhar. – O que acha de almoçarmos juntos?

O rapaz ficou ruborizado. Efeito indesejado, pensou Esther. Acho que almoçar às sós com uma mulher não deve ser algo comum na vida deste rapaz.

Que contraste com Morrison...

–Eu quero dizer, para falarmos mais sobre ele.

–Bom... Por mim tudo bem. – ele disse, timidamente.

–Mas não aqui, no refeitório. Que tal no Saucers?

O rapaz parecia analisar a situação. – Saucers está bem. E-Eu saio às uma da tarde. – disse, gaguejando.

–Eu também. – mentiu Esther. Uma da tarde era o horário que seu almoço acabava.

Os dois balançaram a cabeça, em concordância, e fizeram uma despedida sem palavras.

Ao chegar em seu setor, todas as secretárias já se encontravam em pleno vapor, digitando aquela imensidão de cartas de cada dia. E no limiar da porta, lá estava seu chefe, com o olhar sádico.

–Eu te chamei, e ao invés de você comparecer imediatamente ao meu chamado, simplesmente preferiu desaparecer. Serão, portanto, 50 palmadas.

Esther suspirou. Seria mais uma sessão. Mas ela não se abateria por tão pouco. Não importava mais quantas palmatórias ela receberia, ela seria firme. Não apenas por ela, mas por Morrison, e também por Justiça, uma das poucas coisas que o seu falecido pai pôde lhe ensinar antes de morrer.