Londres, Inglaterra. 08 de Janeiro de 1895.

–Bom, parece que Sophie precisou ir ao trabalho mais cedo. – disse Watson, lamentando a ausência dela, para sua prima Diane. – Então, minha prima, caberá a mim lhe apresentar melhor a cidade, e também te levar a uma agência de emprego.

Watson não parecia muito satisfeito em exercer seu dever de primo. Sua noite com Rose tinha sido frustrada pelo chamado de última hora de um cliente. Tal chamado acabou sendo um alarme falso, que o fez voltar para Baker Street mais cedo que esperava. Por um lado, isso foi bom, pois ao menos ele pôde receber sua prima Diane. Entretanto, ele ainda devia um encontro a Rose Willians, e planejava deixar Diane na Agência e seguir para o apartamento dela.

–Tudo bem, John. – respondeu a moça, com aparente calma.

–Então, assim que você terminar seu café, nós iremos.

–Chá ou café? – perguntou Mrs. Hudson, educadamente.

–Chá verde. – exigiu Diane, ignorando o fato de que havia apenas chá preto na mesa. Mrs. Hudson pareceu embaraçada.

–Er... Eu irei preparar, se é de teu agrado.

–Muito obrigada. – respondeu Diane à senhoria, com exagerada autoridade. Tanto Holmes quanto Watson pareceram desagradados com as maneiras de Diane, sempre a ditar ordens às pessoas como se todos fossem seus meros empregados.

–Você vem, Holmes?

–Terei assuntos a tratar mais tarde, meu caro Watson. – disse Holmes, ainda atento ao seu jornal, ignorando a situação ao seu redor. Watson assentiu.

–Então, até mais ver.

–Até mais, meu caro. E, Miss Watson?

A moça pareceu momentaneamente estremecida, quando Holmes dirigiu-lhe a palavra. Era a primeira vez que ambos se observavam face a face, olho no olho. Pela primeira vez, Diane pôde perceber que os escritos de Watson eram verdadeiros: os olhos de Holmes realmente eram cinzentos. Ela jamais tinha conhecido alguém com olhos cinzentos, e estar diante de um par nitidamente cinza era... Fascinante.

Holmes continuou.

–Se deseja conseguir alguma boa posição nesta cidade, ou melhor, neste país, precisa parar de agir como se estivesse em uma fazenda de algodão, onde todos são seus escravos e subalternos. Do contrário, jamais terá sucesso com essa arrogância que não faz o menor sentido.

Watson arregalou seus olhos azuis, aturdido. Diane parecia ofendida, mas preferiu permanecer em silêncio. Por final, foi o próprio Watson quem fechou a porta.

–Ele não deixa de ter certa razão, minha prima. – observou Watson, enquanto conduzia sua prima por Londres.

–Ora esta, mas só porque eu pedi chá verde?

–É mais do que isso. É a própria maneira com que você se dirige aos demais, e mais ainda, àqueles que você acredita que estão em posição inferior a você.

–Ora, e o que há de mal nisso? O que espera, que eu trate uma criada como se fosse minha amiga íntima?

Watson parecia desapontado. Ele nutria grande simpatia e admiração por Mrs. Hudson, e jamais a considerou uma “criada”. Aliás, ele odiava o uso do termo. Sem dúvida, Diane teria muito que aprender quanto aos modos britânicos e mudar sua mentalidade de colona. Isso não seria nada fácil.

–Ela não é uma criada, Diane. E não a julgue por alguém que está em uma condição inferior que você. Ouso dizer que Mrs. Hudson encontra-se em situação financeira até melhor do que a minha. Ela tem este prédio em Baker Street, mas também uma fazenda na Escócia e uma casa em Devon.

–Oh. – Diane pareceu surpresa. – Mas ela tem alma de criada.

Watson rolou os olhos. Que desafio ele teria pela frente.

–Enfim, você não poderá exercer tal mentalidade aqui, ou será malvista. Inclusive por mim.

–Tudo bem. – disse Diane, acenando sinal de paz. – Eu prometo que vou guardar, por enquanto, meus pensamentos para mim.

–Isso já será de bom tamanho. –disse Watson. – Venha, vou te levar a uma Agência de Emprego.

Watson e Diane esperaram pelo cabriolé, que finalmente apareceu.

–Er... Minha prima...

–Sim?

Watson parecia tímido.

–Bem... Hoje estaremos indo de cabriolé. Infelizmente, você não poderá ir de cabriolé todos os dias. É que ando com minhas finanças em situação crítica e...

–Tudo bem, John. Eu não me importo de abdicar de um luxo. Afinal, não me encontro em situação de reclamar de nada. Não quando sou um verdadeiro estorvo, sem qualquer utilidade.

–Não diga isso... – pediu Watson, penalizado. – Eu... Eu estou muito feliz com sua presença aqui. Uma pena que já não tenha mais minha casa e... Nem mais a minha Mary, para te recepcionar como devia.

Diane ficou surpresa.

–É verdade! O que aconteceu com Mary? Até agora você não a apresentou...

–Ela faleceu, há alguns anos. – disse Watson, com tristeza.

–Oh. Eu sinto muito.

Um silêncio estranho e desconfortável se seguiu pela viagem. Fazia um pouco de trânsito, o costumeiro naquela parte da cidade.

–Diane? Se incomodaria se eu te perguntasse uma coisa?

Recebendo uma negativa, Watson continuou.

–O que o meu tio Don disse a você, sobre mim? Ele... Ele gostava de minhas cartas?

Diane pareceu levemente alegre.

–Meu pai falava coisas maravilhosas sobre você, John. Ele se lembra de você, quando era pequeno. Disse que você era um menino levado e que gostava muito de ler.

–Realmente. – concordou Watson. – E o que mais?

–Eu lia suas histórias, John.

–É mesmo?

–Sim! E elas me deixavam fascinadas, e muito desejosas de te conhecer. Eu tinha uma curiosidade enorme de conhece-lo, por causa de suas histórias. Você era muito corajoso e leal nelas, e eu sentia orgulho de ter um primo assim. Eu sempre dizia a todos, inclusive, que você era o meu primo.

Watson ficou corado, com os elogios. Sempre ficava assim, quando elogiado.

–Eu fico feliz que você não tenha tido uma má impressão de mim, mesmo com o que o meu pai fez ao seu pai.

–Isso é tudo passado, Watson. Tudo passado. Eu jamais o culpei pelos erros de seu pai, você não teve nada haver com isso. Os erros e problemas de nossa família não reduziram minha curiosidade de conhecer o destemido e corajoso Dr. John Watson das suas histórias, por isso estou aqui. Porque eu sabia que tinha um familiar de enorme coração que poderia me ajudar em um momento de tão grande necessidade.

Watson apertou as mãos de sua prima.

–É uma honra, minha prima, te ajudar a reconstruir sua vida. Eu espero que Londres se torne seu lar, definitivamente, e que você jamais se separe de mim.

Diane sorriu. – É o que eu espero também.

Os dois se abraçaram. Foram interrompidos, entretanto, quando o cocheiro anunciou que já tinham chegado ao destino.

–Aqui está, Diane. Esse dinheiro será suficiente para você pegar um cabriolé na volta. Basta pedir que lhe deixem em Baker Street. – disse Watson, dando um beijo na mão de sua prima, durante a despedida. – Até logo, e boa sorte.

–Obrigada, John. Até mais.

Ao ver sua prima adentrando à Agência de Emprego, Watson acenou ao cocheiro.

–Para Westminster. Growler Street.

Algumas horas depois...

Diane vinha caminhando por Baker Street sentindo-se derrotada. Mais uma vez, fora recusada em uma entrevista de emprego. O motivo não era difícil de se saber: ela era uma americana. Bastava falar e deixar escapar o sotaque texano, carregado, nitidamente norte-americano, que franziam o cenho. Nem sua habilidade com artes, seu conhecimento de música, e o fato de saber Francês ajudava. Ela perdia para qualquer londrina, ou inglesa que fosse, sem qualquer esforço. Ela já estava cheia disso.

Para Diane, era um alívio finalmente encontrar-se em Baker Street, depois de um dia tão ruim. Parou, no entanto, quando percebeu uma cena muito curiosa.

Sherlock Holmes, removendo maquiagem do próprio rosto?

–Incrível!

A exclamação veio dela, cuja presença Holmes sequer notara, tamanha era sua concentração em usar a maquiagem. Ao perceber a presença da moça, ele não pôde deixar de se sentir incomodado. Afinal, era um homem usando maquiagem, acessório completamente feminino.

–O senhor está irreconhecível! – disse a jovem, ainda pasma, circundando-o, e notando que ele estava disfarçado como um idoso.

–Er... Miss Watson... – ele disse, fechando o extenso estojo de maquiagem e sentindo uma vontade súbita de se esconder no primeiro buraco que pudesse encontrar. Mas a moça insistia, se aproximando dele.

–Que belo kit de maquiagem... – ela disse, fitando-o. – Posso?

Holmes assentiu com a cabeça, enquanto se levantava. Ainda estava embaraçado pela situação. Nem mesmo Esther o tinha presenciado se maquiando (apenas formular a frase na mente já lhe causava asco), e agora, Diane o tinha visto fazendo tal coisa tão íntima e secreta.

O que mais falta agora? Ela pedir um blush emprestado?

Sossegue, Holmes. Mulheres de família não usam maquiagem.

–Sinto ter que interrompê-la, Miss Watson, mas tenho negócios a fazer. – disse Holmes, esperando que a moça parasse de admirar seu kit.

–O senhor já trabalhou no Teatro?

–Faz parte do meu ofício, apenas isso. Agora, se me dá licença... Er, Miss Watson! O que está fazendo?

Holmes ficou horrorizado, ao perceber que a jovem pegara um dos blushs e passara em suas próprias bochechas. Mas dado a falta de prática da moça, o resultado saiu pior que o planejado, deixando a bochecha dela completamente rosada e disforme.

–O que pensa que está fazendo, Miss Watson? – disse Holmes, a repreendendo. – Sabia que maquiagem não é coisa para uma mulher correta?

–Algo que acho uma pena. Isso poderia valorizar nossa beleza.

–Da valorização à vulgaridade, basta apenas um passo... – murmurou Holmes, enquanto fechava o kit de maquiagem.

–Você acha que mulheres que usam maquiagem são vulgares?

Holmes ficou surpreso com a pessoalidade da pergunta.

–No que eu pude notar, sim.

–Se eu a usasse, eu pareceria vulgar?

Onde essa maldita conversa está levando?, perguntou-se Holmes.

–Provavelmente. À exceção do presente momento, onde você está mais para o ridículo que o vulgar.

Ela riu, levando seu comentário como uma brincadeira, não como uma sutil hostilidade. – Devo estar parecendo um palhaço.

–Se foi este o resultado desejado, você conseguiu.

–O senhor tem um bom senso de humor, Mr. Holmes.

Holmes guardou seu estojo de maquiagem, sob o olhar atento de Diane. Pôs, por final, seu chapéu elegante.

–E por favor, não mexa nele. Seu primo não gostará de saber que eu estou desvirtuando-a. Tenha um bom dia. – disse Holmes, levantando-se apressadamente.

Mulheres, resmungou internamente o detetive. Diane Watson era, sem dúvida, um dos exemplares mais intrigantes e insuportáveis de sua espécie (se Esther lhe ouvisse chamando as mulheres de “espécie” certamente o faria dormir no sofá) Agora, ele era obrigado a suportá-la, por causa de sua amizade com Watson. Afinal, ninguém escolhe os parentes que tem. Holmes sabia muito bem o significado dessa frase.

Ainda bem que ela não fez mais perguntas a respeito dos motivos que lhe fizeram se disfarçar. As ameaças de Finnegan deixaram Holmes intrigado e alerta. Quando soube que ele poderia estar envolvido na morte do parceiro de trabalho de Esther e do Pinkerton que lhe investigava, Holmes acendeu o alerta amarelo. Agora, ele estava nas ruas de Soho, procurando pelo apartamento apontado por Esther por possíveis provas ou evidências que ligasse Finnegan à morte dos dois. Seria um trunfo, caso uma batalha estivesse prestes a ir – algo que Holmes pressentia que estava por vir. O rato foi um mero aviso de um adversário sedento por vingança, e agora Holmes precisava estar vigilante.

Entretanto, suas excursões foram nulas. Pelo fato de a Agência de Espionagem Britânica estar envolvida, boa parte do prédio foi devidamente “limpo” de qualquer vestígio. Foram mais eficientes em destruir qualquer prova do que a tropa de Yarders mais desastrada de Londres, e o que é pior, tinham realmente a intenção de assim o fazer. E foram bem-sucedidos. Não à toa a Agência tinha lá tanta importância no Governo.