Laços de Sangue e Fúria

Fragmentos Pelo Chão


Londres, Inglaterra. 20 de Fevereiro de 1895.

221-B. Baker Street.

Watson estava sentado, em sua escrivaninha, com a pena à mão.

Havia diante de si uma folha de papel, em branco. Ele sentia-se hesitante em começar, como jamais se sentira. Sequer teve coragem de começar a primeira linha, não diante das consequências trágicas que aquele caso, em especial, tinha trago às pessoas que ele amava.

As palavras de Lestrade, culpando-o pela exposição que ele trouxera à Sherlock Holmes, transformando um homem talentoso, obviamente, mas humano, em mito, ainda lhe martelavam à cabeça. Aquele caso poderia se tornar emblemático, lucrativo. Mas seria também o fim do pouco vestígio de intimidade que o detetive ainda preservava: sua própria família.

Ao lado da folha, estava a fotografia que Holmes lhe entregara.

Seu tio, Donald Watson, metido em um terno de corte americano, velho, lembrava vagamente seu pai, Henry. Se não fosse a semelhança, era difícil dizer que aquele homem, tão americanizado com aquelas botas e chapéu, era seu tio.

E tinha também sua prima, a verdadeira Diane Watson.

O retrato revelara muito do que ele poderia imaginar. Embora preto e branco, era nítido que a moça tinha a pele morena, e traços de seu rosto que lhe lembravam fortemente aos dos negros. Estava explicado o completo silêncio em sua família a respeito da existência dela, ou mesmo do próprio Don Watson. Não era filha de uma prostituta, como alguns diziam, mas de uma negra. Era sabido a relação hostil do homem branco com os negros na América, e da intensa confusão que permeava os dois povos. Só mesmo seu tio, um homem de bom coração, para aceitar se casar com uma negra sem pensar em diferenças.

Ao seu lado, estava a autópsia realizada no corpo de Catherine, procedimento padrão em crimes e criminosos. Ele conseguira uma cópia do arquivo a pedido de um colega seu, no Instituto Médico Legal. Para sua surpresa e também infelicidade, a autópsia revelara que Catherine estava grávida de dois meses. A criança – sobrinha de Holmes, era estranho pensar – poderia ser filho tanto de Bruce, um criminoso, quanto de Morrison, o agente secreto que acabou por revelar a verdade, mesmo depois de morto. Ele duvidava muito que a moça soubesse a verdadeira paternidade, e algo lhe dizia que, se Holmes não tivesse sido tão rápido em resolver o crime, ela o teria acusado de ser o pai da criança. E o que era mais vergonhoso, ele teria acreditado nela. Da mesma forma como acreditou no beijo, algo que poderia nem ter existido, e se tivesse, não foi consensual. Ainda assim, independente disso, Holmes não merecia saber disso. Não mesmo.

Levando os papéis da autópsia à mão, Watson os lançou ao fogo da lareira, e guardou seu bloco de notas. Aquele não era dia de fazer anotações, ele refletiu. Mas dia de recolher seus restos e retornar á sua vida normal.

Olhando pela janela, para o movimento costumeiro de Baker Street, Watson só conseguia pensar onde diabos poderia estar Holmes. Desde o enterro da moça, ele não mais retornou para casa. Só esperava que ele estivesse bem.

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Londres, Inglaterra. 21 de Fevereiro de 1895.

The Lion Pub. 07:40 a.m.

O Lion Pub estava prestes a fechar as portas, mas um frequentar insistia em ficar ali. Sozinho, sentado em uma mesa afastada. Sua aparência tinha se alterado substancialmente desde que chegara. Suas roupas estavam ensopadas de suor. Seu terno negro e de boa costura tinha desaparecido. Ele estava em mangas de camisa, dobradas, com algumas gotículas de suor e sangue salpicando. O pano tinha sido lançado sobre seus hematomas recentes, conquistados em rodadas e mais rodadas de combate nas arenas. Estava quase invicto, e fora apenas derrotado por seu próprio esgotamento, que o fizera desmaiar após uma luta. Parte de seu torso estava enfaixada, ainda devido ao ferimento recente, mas Holmes fora cuidadoso o bastante em evitar que seus oponentes o golpeassem ali, não dando muita chance a eles. Todo o dinheiro obtido nas apostas – uma pequena fortuna – foi logo roubado por um esperto qualquer.

Agora, ele estava ali. Sozinho, em um pub prestes a fechar as portas. O estalajadeiro, que o conhecia, jamais o vira em tal estado. Ele estava ali há quase vinte e quatro horas, sem se alimentar, apenas desejando lutar e lutar. Sabia que, se ninguém mais aparecesse para retirá-lo dali, ele entraria no ringue outra vez, mesmo sem condições. Poderia ser sua morte. Seria uma pena, pois ele era um bom lutador.

Holmes deu um gole forte em sua cerveja. Sentia-se embriagado, ou algo perto disso. Sentado, do outro lado do pub, estava apenas um irlandês, mais bêbado do que ele, cantarolando alguma coisa em sua língua materna, com um violino desafinado no ombro.

–Se me permite, senhor.

Holmes ergueu seus olhos do copo.

Esther. Seu semblante não era dos mais felizes.

–Antes que pergunte “o que faz aqui”, eu te pergunto o mesmo.

–Lutando.

Esther olhou em volta. – Não era esse o tipo de luta que eu esperava de você.

–Foi o melhor que eu pude. Boxe ainda é um esporte depreciado.

–Vamos embora. – ela disse.

–Não. – foi o que ele respondeu.

Mas Esther o levou pelo braço, como se ele fosse uma criança.

–Isso não foi um pedido, Mr. Holmes. Obrigada, senhor, por avisar ao Dr. Watson. – disse Esther ao estalajadeiro deixando um soberano sobre a mesa.

–Patterson, seu grande cretino... – murmurou Holmes, enquanto deixava a estalagem.

O estalajadeiro sorria. – Tenha um bom dia, Mr. Holmes.

Já dentro de um cabriolé, Holmes percebeu que o cabriolé estava se deslocando para longe de Baker Street. Quando ele seguiu por uma principal, ele logo imaginou qual era o destino.

–Por que Pall Mall? – ele perguntou.

–Seu irmão, Mycroft, estava preocupado. – disse Esther. – Ele já sabe de toda a história a respeito de Catherine. E ele te deixou um recado: “segredos não fazem bem a matrimônios”.

Holmes assentiu, suspirando fortemente.

–Bem, o que quer que isso queira dizer, eu admito que me deixou curiosa, e por isso eu estou aqui, depois de visitar metade dos pubs de toda Londres, receber cantadas e propostas indecentes, até te achar neste pub asqueroso. Você sentiu o cheiro de urina daquele local?

Holmes achou diversão disso. – A latrina está em manutenção.

–Quando você chegar em casa, irá pôr fogo nessas roupas... – disse Esther, enojada.

Londres, Inglaterra. 21 de Fevereiro de 1895.

Pall Mall. 08:15 a.m.

Mycroft trazia o mesmo semblante neutro, quase relaxado de sempre. Estava habitualmente virado à lareira, fumando seu sofisticado cachimbo entupido com algum tabaco raro e valioso. Mas ainda assim, sua aparente calma era a mesma que ele usava para resolver problemas políticos. Nada mais que uma camuflagem, que aprendera a usar desde os tempos de jovem, essencial ao seu trabalho no Governo.

–Sherlock! – ele exclamou, ao ver seu irmão descomposto e com alguns hematomas no rosto.

–Como vai, mano Mycroft? – perguntou Holmes, sentando-se ao sofá, acompanhado de Esther. – Creio que não irá se importar em compartilhar seu tabaco jamaicano comigo, não?

Mycroft estendeu a Holmes um punhado do tabaco. Enquanto o detetive abastecia seu cachimbo, o mais velho dos Holmes dava curtos passos pela sala, contemplando seu irmão.

–Estou admirado com essa história, Sherlock. Deveras admirado. Não me espantas que tenha encontrado na luta refúgio para seu sofrimento interior.

–Claro, pois alguém nesta maldita família precisa sofrer por um dos nossos! – exclamou Holmes, demonstrando raiva de seu irmão a ponto de assustá-lo, não só ao pacífico Mycroft mas também Esther.

–Você não pode entender a minha dor, Mycroft. Quantas vezes você viu Catherine? Duas vezes, no Natal, se muito! Pois bem me recordo que passou a não mais ir a Yorkshire nem mesmo para tais ocasiões, mandando seus presentes como se estes substituíssem sua presença...

–Sherlock... – pedia Mycroft, claramente ferido.

–E não me contou do enterro encenado! Nem mesmo isso!

–Falar dos Morgan é sempre muito delicado a mim, Sherlock. Porque eu detesto admitir isso, meu irmão, você deve imaginar, mas a eles eu devo minha entrada na Política. – Myctoft suspirou pesadamente. – Eu não estaria onde estou se não fosse o primeiro passo...

–Você está se subestimando.

Mycroft negativou. – Não mesmo. A humildade é passo essencial do caráter. A influência da família Holmes não passava dos campos e das lavouras. Talvez, graças ao nosso avô, Sheridan Holmes, até se estendesse um pouco ao Exército, mas... Não preciso comentar que nem eu, muito menos você, teríamos vocação para tal. E foi necessário interferência dos Morgan, sendo esta não retribuída. Sempre me sinto impotente quando penso nisto.

–Catherine mencionou que Moriarty destruiu os Morgan.

–Isso é verdade. Os Morgan estavam endividados e precisavam das trezentas libras do acordo. Moriarty os roubou, dias depois. E ameaçou destruir-lhes a fazenda se eles o denunciassem. Não era necessário, pois eles já estavam arruinados. Tiveram a fazenda confiscada pelo banco, perderam o bom nome... Acho que agora só tem um mero escritório de advocacia. Mas você entende porquê Moriarty levou Catherine?

Mycroft olhou diretamente nos olhos de Holmes. Como não recebeu respostas – algo que lhe era mais uma afirmação naquele momento – Mycroft virou-se para Esther.

–Creio que você recebeu meu recado...

–“Segredos não fazem bem a matrimônios”. – disse Holmes.

Mycroft ficou parado, diante dos dois, recebendo olhares atentos.

–Algo assim arruinou o casamento de nossos pais, e levou nossa família a ser o que é, embora quase ninguém saiba disso. Mas você sabe disso, Sherlock. Você sabe o que você é. Você sabe o que era Catherine, o que eu sou. O que Sherringford é. E então?

Esther queria entender onde aquela conversa estava chegando. O que ele queria dizer com isso?

–Eu vou deixa-los às sós. – disse Mycroft, trancando-se em seu quarto.