Laços de Sangue e Fúria

Cinzas às Cinzas, Pó ao Pó


Londres, Inglaterra. 06 de Janeiro de 1895.

Caía uma chuva insistente no dia do enterro de Morrison.

À medida que via o sacerdote tecer um sermão indiferente, citando o tempo todo o fato de que desconhecia Edgard Morrison, mas que tinha certeza de que ele estava em um “lugar melhor”.

“Por ter cessado sua existência terrena,

Entregaremos seu corpo a terra.

Terra a terra, cinza a cinza, pó ao pó.

O espírito nós os deixamos nas mãos de Deus.

Esse é o ponto final de uma vida.”

O som da terra batendo naquele simples caixão de madeira assustava Esther. Ela olhava para os lados. Não havia ninguém naquele cemitério de subúrbio. Por um instante, ela se perguntou se seu funeral seria assim também. Reservado, misterioso, escondido.

Ela lançou uma última flor, antes de dar meia-volta e finalmente suspirar aliviada. Já estava do lado de fora, quando avistou seu chefe, Mr. Sparks, do outro lado da rua. Como fazia uma leve garoa, como em quase todos os dias de Londres, ele se refugiava em um guarda-chuva imenso, negro como a noite. Esther se aproximou dele.

Os dois não trocaram uma palavra, mas Esther tinha as ensação de que deveria acompanha-lo.

–O nome dele era Basil Revington. – disse Sparks, já sentado em uma confeitaria, enquanto enchia a xícara de Esther com chá fumegante. – Ele entrou na Marinha aos dezoito anos. Era um tanto indisciplinado, mas tinha habilidades com Matemática e boa capacidade de se disfarçar. Além de...

–Charme com as mulheres, eu posso imaginar. – disse Esther, dispensando o sexismo.

–Sim. E isso o fazia se aproximar de muita gente, por intermédio de suas mulheres.

–Ele era casado?

Sparks ponderou por um tempo. – Foi. Por um bom tempo. Mas ficou viúvo há pouco tempo, pelo que consta.

–Quanta canalhice para um homem só. – ela disse.

–Você também é casada, e isso não a impediu de dar um basta no jogo de sedução de seu amigo, não é? – acrescentou Sparks, maliciosamente, deixando Esther ruborizada e chocada. Como ele poderia saber?

Seu chefe riu. – Eu sempre sei de tudo, Esther. Mais até do que você imagina ou gostaria, mas não se preocupe, eu não gosto de lembrar isso aos meus agentes o tempo todo.

Enquanto seu chefe bebia mais chá, Esther se perguntava... Será que ele sabia sobre seu casamento com Sherlock Holmes? Ao que parecia, sim.

–Não se preocupe, minha cara, o que acontece na Agência, morre na Agência.

–Assim como Morrison.

–Assim como Morrison. – repetiu Sparks. – Você está inconformada, não é? Posso ter a certeza de que irá prosseguir em seu trabalho ou terei de coloca-la de licença mais uma vez?

–Prosseguir? Então quer dizer que...

–Ordens superiores, Esther. Acredite, até eu tenho a quem obedecer quase cegamente. Eu sinto muito, mas terá de voltar ao trabalho burocrático. Eu ainda acredito em seu potencial, mas... Há gente demais querendo sua cabeça, e eu quero resguardá-la, “esperar a poeira baixar”, como dizem.

Esther deu mais um gole em seu chá.

–O que pensam dessa situação toda?

–Não é óbvio? Traição à Rainha, Traição ao Império Britânico. Isso dá forca, mas ele morreu antes disso, em virtude de seus próprios erros. Não há como negar, Esther. Ele foi morto junto a um Pinkerton, e não há maior mercenário que esse tipo de gente...

–Morrison jamais mencionou qualquer Pinkerton. – Esther retrucou.

–Assim como não mencionou que tinha um irmão. – Sparks rebateu, deixando Esther surpresa. –Os Pinkerton são como raposas, estão sempre atrás de algo, farejando por nossos campos por galinhas gordas. Há gente poderosa por trás deles, embora o Governo sempre negue. E é essa gente que costuma colocar mão no dinheiro dos Pinkerton e comprar nossos agentes... E para completar, esse Pinkerton não tinha qualquer negócio a fazer aqui. Sua própria Agência desconhecia suas motivações a estar aqui, na Inglaterra. Ele não estava a trabalho – oficialmente, pelo menos. Não há jeito à imagem de Morrison. A Agência perdeu a confiança e a estima ao sabermos desse envolvimento altamente irregular e desonroso.

–Por isso o enterraram com a falsa identidade. E a família dele, o que pensa disso? Ser privado do mero direito de um funeral...

–Não pensa. A partir do momento que você escolhe essa vida, tal como Revington escolheu, você abdica do direito de esperar pelo sofrimento de alguém. E aliás, que diferença faz ser enterrado como Morrison ou Revington se a terra irá nos devorar de todo o modo?

–O senhor é asqueroso, Mr. Sparks.

O homem deu um sorriso. Não parecia ser a primeira vez que alguém o chamava assim. – Tenha um bom dia, Mrs. Sigerson. Ou devo chama-la Mrs. Holmes? – ele cochichou em seu ouvido.

Esther congelou momentaneamente, ficando completamente pálida. Quando o homem já estava longe, ela levantou-se, visivelmente perturbada.

Acalme-se, Esther! Você trabalha para ele! Ele é um homem do governo! Certamente, sabe tudo sobre sua vida... Lembre-se, ele é um homem de confiança...

Esther estava mais calma, depois de repetir essa frase a si durante várias vezes. Já em Baker Street, ela abriu a porta e adentrou. Enquanto fechava a porta, acabou avistando seu marido Sherlock Holmes, sentado em sua poltrona, analisando o que parecia ser uma peruca.

–Um ramalhete de cravos sempre é uma boa opção a um enterro, Esther. – disse Holmes.

Ela suspirou. Não estava com humor para aturar suas observações certeiras a respeito dos últimos acontecimentos e por isso não pediu explicações quanto às suas deduções. Na verdade, seu rosto ainda estava pálido, o que despertou a atenção de Holmes.

–O que lhe assustou a esse ponto, Esther? – ele perguntou, deixando a bela peruca de cabelos vermelhos no braço da poltrona.

–Saber que meu chefe, Mr. Sparks, sabe sobre nós dois.

Holmes analisou a questão.

–Ele é um homem de confiança, Esther.

–Sei disso, mas... Céus, o homem é tão perverso...

–Pessoas más não são necessariamente criminosas. Elas podem trabalhar no Governo também, e Mr. Sparks tem um impressionante senso de patriotismo e também de maldade. Era ótimo com torturas.

–Eu já sei disso.

Holmes se aproximou de Esther e lhe afagou os ombros, num raro gesto de carinho. Aproveitando-se de seu lampejo de “marido carinhoso”, Esther permitiu-se amolecer e recostou sua cabeça ao seu peito acolhedor. Ambos ficaram assim, intimamente abraçados, por minutos que mais pareciam uma eternidade.

–Há algo incomodando você. E isso não é uma pergunta. – disse Holmes.

Esther sentiu uma leve vontade de rir. Era impressionante o quanto ele lhe conhecia, sendo capaz de entende-la com pouco esforço.

–Essa morte de Morrison... Sinto que há algo de errado nisto.

Holmes a retirou levemente de seus braços, e com suas leves mãos, segurou o delicado rosto de Esther, permitindo que seus olhos verdes estivessem diretamente mergulhados em seus olhos cinzentos.

–Quero muito te ajudar, mas preciso de suas lembranças, Esther. Preciso que me conte exatamente o que seus olhos viram. Você pode ter perdido alguma coisa.

Esther fechou seus olhos suavemente.

–Está tudo tão fresco em minha memória... Acho que ainda posso sentir o cheiro de sangue impregnando aquele lugar... Eu encontrei primeiro o corpo de um homem. Estava caído no chão, no corredor. Ele... Ele usava um terno xadrez, algo de muito mau gosto... Bigodes... Costeletas... Os olhos dele... Acho que eram castanhos. Estavam vidrados pela morte. Havia uma marca de tiro em seu peito.

–Ele estava no corredor, não é? Mas com os pés virados para a entrada ou para dentro do corredor?

–Para... Dentro... A cabeça dele estava virada para a porta...

Holmes assentiu, analisando o fato. – Continue, minha cara. Você está indo muito bem. E quanto aos seus próximos passos?

–Eu... Eu me desviei dele. Não quis olhar muito para ele. Encontrei a porta de um apartamento aberta...

–Havia muitos apartamentos?

–Acho que duas ou três, além daquele. Não sei precisar.

–Continue.

–Eu entrei. A primeira coisa que vi foi um corpo, de costas. Estava perto da janela.

–Se ele estivesse em pé, estaria de frente ou de costas para a janela?

–De frente, sem dúvida. Havia um tiro em suas costas.

–Interessante.

–A arma dele... Ele me falava tanto desta arma, que ganhara do pai dele... Eu o reconheci por meio dela, mas precisava confirmar... O corpo estava de costas, então, eu retirei a arma da mão direita dele e o desvirei...

De repente, Esther ficara em silêncio, pensativa. Holmes tomou-lhe pela mão, até que ela finalmente lhe respondeu.

–Oh, mas que tola eu fui! Tola! Agora, que estou repassando tudo que vi, está bem claro o que verdadeiramente se passou lá.

Holmes pareceu surpreso.

–Acho que você chegou à mesma conclusão que eu, minha cara. – ele disse, orgulhoso, enquanto pegava em sua mão e lhe dava um beijo.

–Havia mais alguém lá! – exclamou Esther. – Morrison era canhoto e o revólver dele estava na mão destra! Ele jamais a usou nesta mão! Alguém tirou o revólver e forjou a cena da morte! Morrison e esse Pinkerton não foram mortos atirando um no outro! Impossível se chegar a tal conclusão!

–Espere, você disse Pinkerton? – surpreendeu-se Holmes.

–Sim, ele era um Pinkerton. Usava um distintivo...

Holmes pareceu analisar a situação.

–Seu amigo, Morrison.. Por acaso ele foi morto em Soho?

–Sim, exatamente! Você está começando a me assustar, Sherlock! – exclamou Esther, num tom de brincadeira. – Como pôde ter chegado a essa conclusão se eu não mencionei Soho em qualquer momento?

Holmes suspirou.

–Parece que eu lancei esse Pinkerton aos braços da Morte, minha cara. Mas enfim, é uma longa história.

Esther ficou indignada. – Ah, mas agora você irá me contar...

–Minha cara, por favor, se esqueça disso...

–Nem pensar! Meu amigo está sendo acusado de Traição porque supostamente estava com este Pinkerton! Um Pinkerton que, ao que parece, não tinha nenhum motivo para estar aqui na Inglaterra, se não por um trabalho mercenário. Sherlock Holmes, a honra de um homem está a depender de sua resposta!

Holmes se levantou, contrariado.

–Tudo bem. Esse Pinkerton se chamava Ian Mackenzie. Eu o encontrei enquanto eu estava investigando... Quem lançou rato em nossa comida.

Esther ficou horrorizada.

–Outra vez essa história, Sherlock? Eu já disse que não importa mais o que aconteceu...

–Acontece, minha cara Esther Katz, que a mim importa muitíssimo. Ao que me parece, esse sujeito que eu estava investigando é bem mais perigoso do que pensei. É um foragido da polícia dos EUA e um criminoso daqui, da Inglaterra. Tem uma vasta ficha criminal na América e há uma recompensa por sua cabeça. Então, os passos desse sujeito, que sabe-se lá a intenção que teve em lançar um rato em nossa comida, me importa sim.

Esther ainda tentava absorver todas as informações que Holmes lhe entregara.

–Mas... Que tipo de laços esse homem poderia ter com Morrison?

Holmes, que já tinha acendido um cigarro, respondeu.

–Eu não gosto de admitir isto, mas... Eu não sei. Talvez seu amigo fosse mesmo um Traidor, talvez não. Talvez tenha sido morto por engano, mas... A maneira como os corpos foram dispostos... Creio que seu amigo era o alvo.

Esther virou-se para Holmes. – Por quê diz isso?

Holmes soltou uma baforada.

–O primeiro a morrer, sem dúvida, foi Morrison. Um militar treinado, Agente da Rainha, só poderia ter sido abatido de surpresa. Dada a distância dos corpos, se o Pinkerton fosse o primeiro a ser morto, o deixaria alarmado e dificilmente ele morreria com um tiro pelas costas. Sem dúvida foi surpreendido. Quanto ao Pinkerton... Bem, o local não foi exatamente o que eu lhe entreguei, o que me faz pensar que ele estava seguindo alguém. Um homem chamado Bruce Finnegan, na minha suspeita. Ouviu o tiro dado por Morrison e... Foi surpreendido também, mas pela frente. Talvez, por má sorte, não tenha sido rápido o suficiente para sacar sua arma antes do assassino de Morrison. Por isso morreu com a arma em mãos.

Holmes deu mais alguns passos.

–Logo, Morrison recebe um tiro pelas costas, seu atirador sai do cômodo e se depara com o Pinkerton e, ainda com a arma em punho, dá mais um tiro. Ele vê que matou duas pessoas, o que acaba por ser uma vantagem, porque os mortos não falam, então ele rapidamente forja uma cena. O Pinkerton, certamente, estava com a arma sacada, mas não Morrison. Ele tira a arma do coldre de Morrison e coloca em sua mão direita. É só o que faz para forjar, pois tem pouco tempo. Certamente, os disparos chamaram a atenção das pessoas.

Holmes suspirou.

–Parece, minha cara, que seu amigo era o alvo, e que havia realmente uma terceira pessoa na cena do crime.

–Eu sabia. – analisou Esther. – Sabia que não havia nada de errado com Morrison. Ele é inocente.

Holmes estranhou o tom alarmado de Esther.

–O que houve? Posso ver que esta cabecinha está tonta de tanto trabalhar. – disse Holmes, batendo sutilmente em sua têmpora. Esther riu com o gesto. Holmes não costumava ser um homem romântico, muito menos afetuoso, mas sem dúvida era espirituoso e parecia lê-la perfeitamente.

Ela deu-lhe um beijo suave.

–Não é apenas a sua que gosta de trabalhar mais do que devia.

–Tem toda razão. – ele retribuiu, também com um beijo. – Do contrário, não estaríamos juntos.

–O que é isso? – perguntou Esther, ao ver a peruca de Holmes, sob uma cadeira. – Um novo disfarce ou um presente?

–Uma evidência. O que pode dizer?

Esther o observava.

–Pouco. Confesso que não gosto muito de perucas.

–Quantas você possui? – perguntou Holmes.

–Três. Uma de cada cor, mas confesso que esse cabelo vermelho me é familiar...

–Exatamente. Diria que é idêntico ao de Miss Hunter.

A mera menção fez Esther se irritar. Holmes achou graça.

–Bom, ao menos admita que sim.

Ela bufou, pegando a peruca nas mãos.

–Sabia que havia alguma coisa errada naquele “cabelo luxuriante”.

Holmes se divertia com a situação. – Não, não há. O cabelo dela é realmente daquela cor. Eu mesmo já... Já toquei nele.

–O QUÊ?!

Ao perceber o semblante chocado e furioso de Esther, Holmes tentou apaziguar. – Calma, eu fiz isso no caso das Faias Cor de Cobre, e foi ainda assim de maneira bem sutil.

–Hunf... Tudo bem. Vamos admitir, então, que não era Miss Hunter a dona da peruca. Mas... Realmente, essa falsa Miss Hunter deve ser uma ratazana, a julgar pelo leve mau-cheiro que exala dessa peruca...

–Foi lançada ao lixo.

–De fato? Bem, mais uma evidência, então. A dona dessa peruca tem recursos para se desfazer de tal maneira de uma peruca bem feita como esta. Ou ela foi obtida por meios ilegais. Roubo, provavelmente.

–Possivelmente. Acredito na segunda possibilidade. Não à toa, coloquei um anúncio no jornal, relatando que encontrei essa peruca. Veremos se aparecerá alguém.

–Holmes...

–O que foi? – ele perguntou, diante da cautela de Esther.

–Eu acho que há piolhos nesta peruca. – ela disse, lançando o objeto longe. Holmes olhava aturdido.

–Oh... Bem, eu a encontrei na cabeça de um dos Irregulares...

–E só agora você me diz isso?! – reclamou Esther, ajeitando seu belo cabelo loiro, com repulsa. – Oh, meu Deus...

Holmes achava graça da situação.