–Mais que diabos! – murmurou Richard, estupefato. – É um caso sobrenatural!

–Melhore seu linguajar, Mr. Revington. E não, este não é um caso sobrenatural. Simplesmente estamos lidando com um dos poucos remanescentes da gangue de Moriarty, senão a única remanescente.

Esther estava igualmente perturbada.

–Pensei que todos tinham sido presos, ou mortos.

–Nem todos. Eu derrubei Chevalier, em Paris, e depois Sebastian Moran. Entretanto, esses eram os maiores peixes remanescentes, e os únicos que poderiam criar ou mesmo ressuscitar uma força criminal e ainda me matar assim que eu voltasse ao mundo dos vivos. Ainda há outros criminosos (peixes menores) a circular pela sociedade. Capturar a todos é extremamente complicado, senão impossível. A rede de criminosos de Moriarty era imensa e ultrapassava o Continente, chegando com timidez à América quando eu a monitorei por completo. E não se assustem: eu ainda os monitoro, constantemente, e pelo que percebi nos últimos tempos, nenhum deles mostrou-se apto ou disposto a retomar a organização. Mas pelo que vejo, não esta moça: Scarlett Simpson.

–Me soa nome de americana. – disse Richard.

–A mãe dela era, de fato. O pai era inglês. Ela era afilhada de Moriarty.

–Afilhada? O que é isso? – perguntou Richard, inocentemente.

–Perdoe-me por não explica-lo. Esqueci que vivemos em um país predominantemente anglicano. Afilhado é um termo praticado na Igreja Católica. Quando você batiza um bebê, os pais geralmente costumam escolher padrinhos.

–Como testemunhas de casamento? – refletia Richard.

–Exatamente. E Moriarty era padrinho dela, assim como sua esposa também exercia posto semelhante. Enfim, o que pude apurar da história dela, o pai dela era um dos fundadores da organização criminosa de Moriarty, e faleceu em decorrência de suas próprias atividades obscuras. Essa moça, pelo que soube, era uma criança pequena quando ficou órfã, e Moriarty passou a ser responsável por sua educação. Ela estudou e dizem, tinha notável inteligência. Apenas não avançou mais porque sua condição natural a impediu.

–Ela era uma mulher. – observou Esther, com desgosto.

Holmes riu do feminismo de sua esposa. – Exatamente. Para muitos, mulheres estão destinadas a pouquíssimas coisas, não importa seus talentos. Ademais, eu tomei pouco conhecimento dela. Não presumi que ela fosse uma criminosa, mas... A gama de identidades falsas, e os crimes que vejo que ela está por trás não me fazem atestar outra coisa, senão de que eu errei meu julgamento na época.

–Você já a viu alguma vez?

–Não. – disse Holmes. – Muito embora eu tenha feito uma... “Visita social” à Moriarty e tenha saído de sua casa com a sensação de que ela estava lá. Digo isso porque as maneiras hostis dele estavam muito acentuadas do que o costume, e era de meu conhecimento o seu apreço por esta mulher. Um carinho, tal como de um pai para uma filha.

–Não posso acreditar que vocês se encontraram outras vezes...

Holmes riu da observação curiosa de Richard.

–De fato, já. Mas éramos, até então, adversários leais. Ele veio à Baker Street, desarmado, e ameaçou me matar. Eu fui à casa dele em Windsor também desarmado, porém mais com o intuito de observar suas instalações do que de ouvir outras ameaças – embora elas tenham retornado. Ele me ofereceu xerez e também uma partida de xadrez, mas eu recusei, e fui embora. Escoltado por cinco capangas, mas fui embora.

–Meu bom Senhor... – murmurou Richard. – Mas se você já sabe quem ela é, o que ainda quer com o relatório de Marjorie Eccles?

–Ele ainda pode ser útil, porque certamente meu informante traçou suas conexões. Amigos, lugares, endereços... Enfim, pelo que conheço dele, daria umas três páginas de informação, não menos que isso. Mas o relatório de Scarlet Simpson também seria de grande ajuda, Esther.

Esther levantou-se, decidida. – Está bem. Eu vou até lá.

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Assim que pôs seus pés em Baker Street, Esther acabou surpreendida por Mrs. Hudson.

–Mrs. Sigerson! – saudou a idosa.

Oh, Mrs. Hudson, péssimo momento para nos encontrarmos.

–Olá, Mrs. Hudson. Como vai?

–Muito bem. Então, vejo que sua amiga conseguiu se recuperar, eu presumo?

Esther manteve-se neutra. – Não necessariamente. Preciso pegar mais algumas roupas. – ela disse. – Mas onde está Watson, ou Holmes? Ele já voltou?

O semblante de Mrs. Hudson tornou-se sério.

–Ainda não. Nem mesmo mandou notícias. Com a polícia à sua espreita, aparecendo aqui quase todo o dia, eu temo que ele tenha fugido.

Esther tentou confortar a pobre senhora, preocupada. Agora ela sabia como era mentir às pessoas a respeito de assuntos tão sérios.

–Não fique assim, Mrs. Hudson. Ele irá aparecer. Você sabe como ele é, teimoso e obstinado. Deve estar metido em alguma investigação, ou em uma pista nova.

–Ele nunca ficou tanto tempo sem dar notícias. A não ser quando... – a pobre idosa começou a soluçar e ameaçar choro. Esther prontamente a abraçou.

–Oh, Mrs. Hudson... Como eu sinto por deixa-la aqui, sozinha... Os Watson estão lhe dando a devida assistência?

A velha respondia em prantos. – O Dr. Watson está sendo gentil, como sempre. Já Miss Watson... Sempre distante, indiferente. E...

Esther franziu a sobrancelha. Parecia que Mrs. Hudson sabia de algo sobre Diane, mas estava com vergonha de dizer. Por fim, ao olhar para os lados e perceber que não havia ninguém por perto, a senhoria cochichou-lhe.

–Eu estive em minha modista ontem, perto do Candem Park e... Encontrei Diane com um homem.

Esther abriu a boca, em pasmo.

–Um homem? Mas quem seria?

–Não sei. Mas os dois pareciam... Íntimos. Conversavam enquanto caminhavam, e em sussurro. Ela praticamente lhe dizia coisas em seu ouvido. Realmente uma situação embaraçosa para uma moça solteira se encontrar! Por favor, Mrs. Sigerson, não conte isto ao Dr. Watson! Realmente, não pretendo abordar tal assunto!

Para quê o esforço? Nem saberíamos dizer em quem ele acreditaria, pensou Esther.

–Tudo bem, Mrs. Hudson. Eu não vou contar.

Depois de confortar Mrs. Hudson, Esther preparou uma bagagem pequena, carregando-a de roupas masculinas, aparentemente pertencentes á Mr. John Sigerson. Ela ainda precisava encontrar um jeito de entrar sem ser detectada, ou pelo menos alegar um motivo muito forte. Mas qual?

Mrs. Hudson tinha lhe dito que não tinha certeza se Diane Watson estava em casa. Ela sempre saía sem dizer para onde ir, ou mesmo que horas voltaria, no que a senhoria chamou de “falta de educação desses americanos”. Não havia jeito, senão arriscar.

Ela lembrou-se de uma luva, que tinha deixado na mesa na última vez que tomara café. Pronto, esse seria seu pretexto para adentrar aos cômodos de Holmes.

–Oh, como vai, Sophie? Veio buscar as roupas do velório? – ela disse, provocante e desaforada como de costume, mas Esther se conteve. – Porque se está aqui, significa que sua amiga deve ter batido as botas.

Essa americanazinha e seus maneirismos caipirescos.

–Não, Miss Diane, posso lhe assegurar que não estou aqui para isto. E nem dar-me-ei o trabalho de dizer porque esse assunto, simplesmente, não é da sua conta.

Diane mostrou-se ofendida.

–O que te mordeu hoje, garota?

–Deveria perguntar o que estou prestes a morder, e não o que me mordeu... Ei, espere... O que é isso, na sua mão?

Uma das mãos de Diane estava fechada. Imediatamente, ela levou as mãos para trás do seu corpo.

–Oh, isso... – ela disse, estendendo uma delas.

–A outra. – pediu Esther, desconfiada.

De imediato, Diane ficou irritada.

–Ora, e o que importa isso? Você é a intrusa aqui, se intrometendo em meus aposentos.

–Aposentos de Mr. Holmes e Dr. Watson, não seu. Você está aqui puramente de favor. – corrigiu Esther, com aspereza.

–Por pouco tempo. – ela disse, levando sua mão à barriga. – Depois da notícia que darei a Mr. Holmes, depois que ele retornar à esta casa, não tardará para que me torne definitivamente a Mrs. Holmes. Diane Watson Holmes, um nome bem apropriado, não acha?

–Do – que – você – está – falando ? –perguntou Esther, pausadamente, e irritada com a insinuação completamente infundada da moça.

–Eu estou grávida, e meu primo Watson irá acreditar em mim quando eu disser que Sherlock é o pai.

Sherlock?! A desgraçada ainda o chamava assim?! Como ela ousava?! Apenas ela e Mycroft tinham esse direito!

–O-O-O que você está dizendo, mulher? Quanta sandice! – exclamou Esther. – Certamente esse filho que você carrega deve ser de algum rapaz que você anda se encontrando enquanto vai às suas “entrevistas de emprego”. Ou pensa que eu não sei que você não vai a nenhuma delas a muito tempo? Afinal de contas, não há nenhuma Agência de Emprego no Candem Park.

Foi a vez de Diane ficar horrorizada.

–Você anda me espionando? Francamente, Mrs. Sigerson, você não tem o que fazer? Por quê não vai arranjar um homem, já que seu marido está sempre em falta?

Sem pensar duas vezes, Esther deu-lhe um tapa.

Obviamente, Diane revidou. Em instantes, as duas estavam brigando, terrivelmente atracadas, finalmente colocando e resolvendo suas diferenças.

Não foi surpresa notar que Esther levou a melhor, quando derrubou Diane e a deteve agarrando-lhe os dois braços, deixando a moça ensandecida completamente sem movimentos.

O barulho fez a porta se abrir, para revelar Mrs. Hudson, horrorizada em se deparar com suas duas inquilinas atracadas feito dois moleques de rua.

–Parem com isso! Parem! – implorava Mrs. Hudson, segurando Esther. – Miss Watson, Mrs. Sigerson, o que está havendo?

–Essa mulher... – dizia Esther, esbaforida. – Ela me provoca o tempo inteiro!

–Mentira! – gritou Diane.

–Parem com isso, as duas! – pediu Mrs. Hudson, como se a duas crianças. – Olhe só, Diane, seu vestido está completamente rasgado... Venha, vamos ao seu quarto, que eu vou ajuda-la a vestir um mais adequado.

Ah, Mrs. Hudson, obrigada pela santa brecha...

–Vou mandar a conta da modista. – disse Diane, enquanto se dirigia ao seu quarto, acompanhada por Mrs. Hudson.

No mesmo instante que a porta se fechou, Esther correu para o catálogo.

Procurou pela letra “S”.

Havia sete pessoas com o sobrenome Simpson. Um batedor de carteiras, um negociante de arte, um envenenador, um carcereiro corrupto, um treinador de cavalos, um atirador de aluguel (sendo este o pai da procurada) e finalmente ela...

Oh não...

As tais três páginas de Scarlet Simpson estavam arrancadas!

Esther fechou o livro com raiva, e o colocou de volta à estante. Respirou, e teve vontade de contar até dez, ainda mais que a provocante da Diane Watson murmurava reclamações e xingamentos a seu respeito, muitas delas despudoradas e que citavam seu “marido ausente”.

Ela procurou pela mesa pelo tal relatório que Holmes dissera que poderia ter recebido. Mas não o encontrou. Talvez o seu informante ainda não tenha terminado.

Por fim, seu olhar se direcionou até um envelope, amassado jogado contra o chão.

Claro! Era isso que Diane estava na mão! No meio da briga, ela deve ter soltado e acabou se esquecendo por completo dele.

Esther se agachou e tomou-o do chão. Ele estava amassado, mas não rasgado.

Estranhamente, ela percebeu que o endereço era de Chicago, como remetente. Poderia ser de algum conhecido de Diane, mas não era isso que dizia o destinatário.

Mr. Sherlock Holmes.

221-B, Baker Street. Londres, Inglaterra.