Laços de Sangue e Fúria

A Verdade Que Tanto Quero Saber


O velho Arthur Morgan era um homem de detalhes, concluiu Sherlock Holmes. Ele não lhe poupou de nenhum, começando sua narrativa desde os tempos de amizade e parceria entre os Holmes de Yorkshire e os Morgan de Devon. Duas famílias que tinham o mesmo status social, porém com algumas diferenças. Notoriamente, os Holmes detinham mais terras, e os Morgan, contatos na Política. Depois daquela narrativa detalhada e bastante entediante a respeito dos numerosos contatos dos Morgan no Império ao longo do século XIX, Holmes passou a ter certa certeza quanto ao embarque de Mycroft no governo ter sido, em parte, obra dos Morgan.

–Seu irmão jamais teria tal posição se não fosse pelo jantar que eu organizei na Manor Morgan, em outubro de 1863, quando chamei o Secretário de Finanças do Império...

–Neste ponto, o senhor está errado. Se Mycroft fosse medíocre, ou meramente um homem normal, ele estaria ocupando um mero cargo burocrático, ao invés de fazer as vezes de cérebro do Governo em muitas situações. Seu irmão teve sim, sua cota de merecimento por estar onde está.

O velho continuava, ignorando as observações de Holmes.

–O seu tutor, James Cales, fizera um trabalho esplêndido com Mycroft, esplêndido mesmo. Aos dez anos, Mycroft era capaz de resolver questões de mestrado de uma universidade. Isso enchera seu pai de expectativas. Ele passou a me procurar pedindo minha ajuda para inserir seu irmão no meio político. Seu irmão tinha dezesseis anos. Naquela época, as entrevistas se davam por indicação, algo que eu poderia conseguir com algum esforço. Então, pedi uma contrapartida.

Holmes já fazia alguma idéia de que contrapartida era esta.

–Eu tive uma única filha, Beatrice. Queria arranjar a ela um bom casamento. Sua mãe queria que eu a desposasse com um sobrinho dela, mas eu sabia que o casamento seria ruim. Como os Holmes me deviam um favor, pensei que era aquele um bom momento de cobrar.

–E o que o meu pai achou da proposta?

–Perfeitamente normal. Sabe, aqueles tempos eram diferentes dos de hoje. Meus filhos escolheram suas esposas, e isso aconteceu depois de formados, já adultos. Meu casamento estava arranjado desde os dez anos. Tenho certeza que algo assim aconteceu entre seu pai e sua mãe, Violet Holmes.

A mera menção do nome de sua mãe sempre causava desconforto em Holmes, a ponto de fazê-lo assentir brevemente.

–Ele aceitou prontamente, e eu consegui colocar Mycroft no Governo, aos dezessete anos. Conseguiu um pequeno estágio no Gabinete da Prefeitura de Oxford enquanto não se encontrava na Universidade, se mostrando um aluno e profissional exemplar, pelo que soube. Mais tarde, ele foi para Sussex, você deve saber, justamente para aprender um pouco de Finanças Públicas com Harold Hynn, um dos grandes especialistas na época. Foi a indicação de Hynn que o colocou no Governo Central, mas volto a repetir, ele só conseguiu isso porque eu o indiquei primeiro.

Holmes já estava cansado de ouvir Morgan repetir a mesma coisa: o quanto os Holmes (especialmente Mycroft) deveriam lhe ser gratos.

–Você deve se lembrar de minha menina porque ela costumava brincar com sua irmã, Catherine.

Holmes assentiu. Catherine era outro assunto doloroso, mas que ele deveria suportar para chegar à verdade.

–Sim, eu me lembro. Minha irmã Catherine tinha verdadeira adoração por Beatrice. Acredito que a enxergava como uma... irmã mais velha. A irmã que ela não tinha.

Morgan deu de ombros. – Natural, ainda mais por ser a única menina dentre irmãos. Como volto a afirmar, o casamento entre vocês dois chegou até alguns detalhes ajustados, até...

Holmes ergueu a sobrancelha.

–Bem, até aquela tragédia envolvendo sua irmã.

Agora, era a vez de Homes parecer surpreso. – Tragédia?

Morgan deu um meio sorriso, até voltar a se tornar sério.

–Vejo que ninguém jamais lhe contou sobre isso. Ao menos, não a verdade sobre o falecimento de sua irmã.

Holmes pareceu analisar.

–Pelo que me consta, Catherine morreu de febre. Temeram que fosse algo contagioso. Eu mesmo tive de me afastar e ir morar com Mycroft em Sussex por causa disso.

–Mas você chegou a estar presente no enterro?

Uma cena veio a Holmes.

Um jardim, que ficava nos fundos de sua casa. Aquele jardim... Algo sempre lhe causava arrepios quando ele caminhava até ali. Deveriam ser os túmulos, muitos deles antigos, de seus antepassados. O único enterro que ele presenciara, por completo, fora de sua mãe, Violet. Ele tinha oito anos. Sues olhos estavam fixos naquele caixão, e ele quase não escutara as palavras de conforto do pastor, o choro de alguns presentes. Depois, caíram as flores, e depois terra. O som da terra batendo na madeira lhe deixara com pesadelos por semanas.

Agora, era sua pequena irmã. Ele não sabia direito o que tinha acontecido. Ela tinha passado uma temporada de férias na casa dos Morgan, e ficou doente de repente. Não passou de uma noite. Ele ouvira a notícia e ficara estático. Não parecia ser verdade. Tinha perdido sua mãe há pouco mais de dois anos, e estava, no fundo, gostando de ter uma irmã. Ela era mais delicada, gostava de flores e de ouvi-lo falar sobre seus experimentos químicos, e dava gritos pela casa ao ver que ele tinha dissecado um sapo. Além do fato de ela ter os mesmos olhos de sua mãe. O mesmo cabelo castanho, reluzente, tal como seu irmão Mycroft tinha – e que ele não herdou, restando a si aquele cabelo negro e sombrio.

Era madrugada alta, quando ele estava com a cabeça deitada sobre seu travesseiro, olhos marejados. Sobre a cadeira jazia seu terno negro, de luto. O terno que ele deveria usar.

Ele não queria ver o enterro, porque não queria chorar na frente de ninguém. Na verdade, não queria mais chorar.

Mas ele queria se despedir. De alguma forma.

Holmes saíra de sua divagação, ainda atônitos em perceber que as lembranças daquele período lhe eram tão distantes. Isso era inadmissível para alguém que prezava o bom uso de seu cérebro com coisas importantes.

–N-Não, eu não fui. Sequer participei do velório.

–Houve, mas as crianças não participaram, é claro. Um velório nunca é apropriado a crianças. Mas eu me lembro de ter visto você, sim. Você parece não se lembrar muito bem disso...

Holmes mostrou-se incomodado em acabar, por fim, exibindo fraqueza por sua falta de memória de um período tão importante de sua vida. Mas Morgan relevou.

–Bobagem, rapaz. Não há o que exigir de você. Naquela época, você era apenas um menino que se gabava por derrotar Leonard no xadrez.

Diante de tal lembrança, Holmes dera um breve sorriso.

–Então?

Morgan pareceu relutante em contar.

–Sua irmã realmente faleceu. Mas não foi de febre, ou alguma doença contagiosa. Ela... Ela se afogou no rio perto de minha casa.

Holmes empalideceu-se. – O quê?!

–Sim, isso mesmo. Nós inventamos a doença para você porque... Porque não conseguimos achar o corpo dela. Lembra-se de que ela ficou dois meses em minha casa? Na verdade mal ficara duas semanas. Seu pai e seus empregados fizeram buscas pelo rio e decidimos esconder a verdade de você. Não a encontramos. Não havia qualquer chance de uma menina de quatro anos sobreviver àquelas águas geladas e àquela correnteza. O corpo dela poderia ter se arrastado por quilômetros. Por fim, seu pai achou melhor fazer o enterro, pela falta de esperanças. Ele contou sobre a doença para você porque... Não haveria velório, porque não havia corpo.

Holmes suspirou forte. Todas as lembranças pareciam atacar-lhe, como a dor de mil facas lancinantes.

O caixão vazio, na biblioteca. O grito de surpresa. Seus passos correndo pelas escadas, de volta à cama. Seus olhos fixos no terno negro, que ele usaria para o velório. Lágrimas, e então, um sono sem sonhos. Depois, esquecimento.

Os sonhos estranhos, interrompidos... Sim, agora tudo fazia sentido.

–Seu pai me achou culpado pela morte de Catherine. Acreditava que a morte da menina tinha sido por negligencia. Culpava meus empregados, a todos. Uma grande bobagem. Eu tinha três filhos jovens, e ninguém jamais se afogou naquelas águas. Isso foi uma fatalidade, reconheço, mas eu não tive culpa.

–E esse foi o motivo do rompimento? Minha irmã morreu em sua casa e ele te culpou pela morte dela?

Morgan deu de ombros, incomodado.

–Não posso isentá-lo de coisa alguma. Ele era um homem quebrado na época, talvez ainda seja. A morte de Violet, sua mãe, mexera muito com ele. O fato é que os Holmes usufruíram de nosso acordo, enquanto eu recusei dois bons pretendentes para Beatrice. Até um futuro General eu recusei! E acabou que ela acabou se encantando justamente pelo primo irlandês, Mr. Finnegan, um dos mais pobretões de minha família. – Morgan suspirou pesadamente. – O resto você sabe melhor do que eu.

Holmes ainda tentava absorver toda a história.

–O senhor tem absoluta certeza de que não detinha qualquer carta que pudesse...

Morgan o interrompeu, suspirando de maneira irritada.

–Quer ver com seus próprios olhos?

Ele conduziu Holmes até uma gaveta. Retirou dali uma caixa de metal, antiga.

–Aqui fica minha antiga correspondência. Há cartas de Duques, Secretários, Ministros... Todas as memórias dos gloriosos tempos dos Moran... – olhou pesadamente Morgan.

–Que mal lhe pergunte, Mr. Morgan, mas... Porquê o senhor faliu?

Olhando diretamente nos olhos cinzentos de Holmes, Morgan disse.

–Seu pai, Mr. Sherlock Holmes. Seu pai me destruiu desde o dia em que aquele caixão desceu a sete palmos do solo.

O assombro e a profundidade nos olhos de Morgan eram assustadores. Deveria ter sido algo muito tenebroso, a ponto de Holmes não pedir por mais detalhes.

–Espere... – disse Morgan. – Estas são as cartas de Siger... Mas só há quatro!

Holmes se surpreendeu. – Quatro?! Há alguma faltando?

–Sim, duas... Ah, sim! Eu e minha cabeça! Eu tinha notado isso na semana passada... Deixe-me ver...

O velho sacou de seu bolso um pequeno óculos, e passou analisar o conteúdo delas.

–Sim, está faltando aquela, sobre a decisão de isenção alfandegária sobre o preço do milho... Lembro-me que ele escreveu muito sobre isso. E também uma carta em que ele criticava a decisão do Primeiro-Ministro quanto à Colônia Norte-Americana...

Holmes riu. – Outra carta extensa, com toda a certeza. Meu pai sempre detestou americanos.

Foi a vez de Morgan rir. – O velho Siger sempre detestou qualquer coisa que andasse sobre pernas que não fosse inglês e anglicano, meu filho.

Holmes lembrou-se imediatamente sobre Esther. O que seu pai acharia de seu casamento, ainda que clandestino? Ele sempre tivera uma opinião forte a respeito dos não-cristãos – judeus e muçulmanos – a quem se limitava a chamar de termos como “matadores de Jesus” a “gente de homens cortados” referindo-se à circuncisão dos judeus, e também de “turcos” e “barbudos malditos”, todos apelidos pejorarivos e agressivos. Nem mesmo os católicos escapavam de suas troças preconceituosas, chamando-os de “adoradores de estátua” e “infiéis”. Seria, sem dúvida, uma grande possibilidade do velho Siger ter um infarto se soubesse que seu filho está casado com uma judia francesa.

–De todo modo, eu vejo que duas cartas sumiram. Arrisco-me a dizer que foram as duas cartas mais extensas de meu pai.

Morgan pareceu pasmo. – Exatamente. Então, há algo em mente?

–Sim, provavelmente. Bem, agradeço-te a generosidade de compartilhar tais detalhes, Mr. Morgan. – disse Holmes, já colocando o chapéu sobre a cabeça.

Assim que Holmes saiu do lugar, Leonard reapareceu.

–Papai, porquê você falou das cartas sumidas de Siger Holmes?

O velho estranhou e deu de ombros. – Algo insignificante. Eram cartas nada comprometedoras. Apenas o velho Siger destilando seu veneno. Se me dá licença, meu filho...

O semblante de Leonard estava em pânico. Assim que viu seu pai subir as escadas, de volta para seus aposentos, o homem pôs seu chapéu sobre a cabeça e saiu. Andando a passos rápidos, imediatamente se dirigiu até o telégrafo.

Na esquina do telégrafo, Leonard Morgan foi surpreendido por Holmes, que passara quase perto de si. O homem se encolhera, evitando ser visto, e viu que o detetive se dirigia, com o mesmo disfarce que ele usara para entrar no escritório, até a estação de trem. Como não tinha nenhuma bagagem consigo, sua ida até lá só poderia representar a compra de passagens.

Leonard saíra do telégrafo depois de enviar a seguinte mensagem, a um endereço de Londres.

ELE DESCOBRIU SOBRE AS CARTAS STOP ELE COMPROU PASSAGENS STOP FAÇA ALGUMA COISA STOP

0000000000000000000000000000000000000000000000000000000

Londres, Inglaterra. 16 de Janeiro de 1895.

Pall Mall.

Finalmente, Holmes estava de volta à Londres.

Ele tinha chegado em casa por volta da uma da manhã, depois de uma longa viagem no último trem de Plymouth, das dez da noite. Seu irmão estava ainda dormindo, era o que se podia concluir pelos altos roncos que provinham de seu quarto. Não havia com quem conversar, especialmente a respeito de suas recentes descobertas.

Ele desejava muito falar com Mycroft. Afinal, ele lhe enganara a vida toda! Como não dissera nada a respeito disso?! Afinal, ela também era sua irmã! Holmes sentia-se incomodado, sentindo-se um bobo. Fora enganado a vida inteira, acreditando que sua irmã tinha sido dizimada por uma forte gripe, quando na verdade aquele caixão estava vazio o tempo todo!

Seria normal que uma pessoa estivesse cansada, mas não Holmes. Ainda havia adrenalina em suas veias, adrenalina de se sentir tão próximo da verdade. Tudo que Mr. Morgan lhe falara fazia sentido. Não era do feitio de seu pai comentar sobre futilidades como casamento. As cartas que estavam agora na Scotland Yard só poderiam ser falsas. E para completar, ele fazia idéia de quem as fez.

Com certeza, o melhor falsificador da Inglaterra.

Derek Noles. O único falsificador de Londres que não foi eliminado por Marjorie Eccles - um problema que Holmes sabia que teria de lidar cedo ou tarde. Entretanto, não havia outro nome pra este tipo de trabalho senão Noles.

Depois de apenas passar uma água no rosto, sentido a aspereza de sua pele, já clamando por um barbear matinal, Holmes decidira que o assunto era de extrema urgência, e que precisava de ação imediata. Um mandado poderia chegar da Scotland Yard à Baker Street a qualquer momento, e isso restringiria sua atuação. Ele precisava ser firme e objetivo.

Armado, Holmes decidiu ir até Derek Noles.