Londres, Inglaterra. 30 de Outubro de 1894.

As últimas mudanças de Esther estavam, finalmente, adentrando à seu novo lar. Nos últimos dias, sua rotina se dividia entre dar aulas no Colégio de Meninas, que não ficava longe dali, e toda a bagunça de encaixotar e mover suas coisas. Ela mal acreditava em tudo que já possuía, estando apenas menos de três anos ali.

–Cuidado, cuidado! – implorava a um rapaz, que carregava as caixas sem a menor destreza.

–Olá, Sophie. Vejo que a senhorita está tendo dificuldades com sua mudança... – era Watson. Esther lhe cumprimentou com um sorriso.

–Sim, mas esta é a última leva. A partir de hoje, estou instalada aqui.

–Bem, eu imagino que sua casa ainda não esteja devidamente organizada, ainda que haja os maiores esforços. Se quiser, a senhora pode jantar conosco esta noite.

–Oh, por favor, eu não quero incomodar...

Watson, sempre gentil, retrucou. – Oh, nada disso. Tenho certeza que eu e meu amigo Holmes não nos sentiremos nem um pouco incomodados com sua presença. – ele sorriu. – Bem, há algo que eu possa ajudar?

–Sim, isto é, se não for incômodo...

–Nada que você me pede é um incômodo, minha cara.

–Er... Pois então – pigarreou Esther, um tanto encabulada com os constantes galanteios de Watson, enquanto permitia que ele entrasse no apartamento. – Os rapazes arrastaram esse armário apenas até este ponto da sala, e eu queria deixa-lo no meu quarto...

–Sem problemas. Seu desejo é uma ordem, minha Rainha. – disse Watson, outra vez sendo galanteador, preparando-se para arrastar o móvel, quando viu um cão deitado ao lado de uma das poltronas.

–Oh, eu não sabia que você tinha um animal de estimação...

–É o Billy. Eu o tenho desde... Há alguns meses.

–Não pensei que você gostasse de cães...

–Gosto, mas essa idéia na verdade partiu de... Meu marido, Sigerson. Ele gosta muito de cães... – ela disse, deixando Watson sem graça e já um tanto arrependido de ter tocado no assunto.

Na verdade, o cão tinha sido um presente à Sherlock Holmes que, não sabendo o que fazer com o filhote de seu fiel escudeiro Toby, presenteara Esther com ele, na reconstrução de seu casamento, após a primeira crise. Embora ele jamais tivesse tocado diretamente nesse assunto, parecia que Holmes adorava cachorros, mas não a ponto de ter um oficialmente. Seu casamento com Esther, ou melhor, sua vida dupla, dava brechas para este tipo de coisa.

–Oh, compreendo. Aliás, o seu marido... Ele deu notícias?

–Não. Pode estar em alto-mar, ou em algum país distante. Não sei dizer.

Watson tentou mudar de assunto. – Há algo mais que possa fazer?

–Ah sim...

Mais tarde, Watson subira de volta ao 221B, tentando disfarçar a dor na perna. Encontrou Holmes bastante entretido com um experimento químico, mas ainda assim, atento ao ambiente.

–O que houve com sua perna, Watson? – ele perguntou, ainda com os olhos focados em um dos tubos de ensaio, e de costas para seu amigo. Watson, que já tinha desistido de perguntar-lhe toda a hora á respeito de suas deduções, preferiu contar-lhe o que se passara.

–Estou ajudando Sophie com a mudança. Agora é definitivo.

–Não vá arrebentar-se, Watson, apenas para impressioná-la. – disse Holmes, com frieza.

Watson sentou-se no sofá, por um tempo, e depois começou.

–Holmes, você chegou a ver esse tal John Sigerson, não é?

Holmes, que até então estava de costas, virou-se para responde-lo.

–Sim, mas... Por quê a pergunta?

–É que eu não vi uma fotografia que fosse dele pela casa, nem na mudança da Sophie... Isso é estranho, não? Pois eu soube que os dois se casaram em uma Igreja e é normal que haja ao menos um retrato dos noivos. Mesmo os mais desfavorecidos conseguem obter um, por que não alguém como Sophie?

De braços cruzados, Holmes fingia refletir a respeito. – Talvez ele não seja dado a fotografias.

–Sim, pode ser... Mas como ele era?

Holmes ficou surpreso com a pergunta. – Como? Bem... Ele era um homem aparentemente comum. Nada de extraordinário em sua constituição, pelo pouco que vi.

–Ora vamos, Holmes! Eu sei que você pode dar um relato melhor do que isso...

–Bem Watson... Ele era branco, um pouco mais baixo do que eu, tinha feições de um homem que passava muito tempo ao ar livre... A pele já morena... Ele usava uma barba bem espessa e tinha o cabelo um tanto sem corte...

–Deus, como Sophie pode ter me abandonado por um homem desses?

Holmes sentiu-se ofendido, mas disfarçou. Afinal, ele era John Sigerson.

–Era um homem exótico, deve ter lá seus encantos nas mulheres, não é? Bem, eu o vi rapidamente, saindo daquela casa de East End. Não posso julgar mais do que isso. – ele disse, encerrando a conversa.

De repente, ambos ouviram gritos abafados de Mrs. Hudson. Antes que pudessem se dar conta do que estava acontecendo, um cão invadiu o apartamento de Holmes, pegando a ambos de surpresa. Watson logo o reconheceu.

–É Billy, o cão de Sophie... Venha cá, Billy...

O cão rosnou para Watson, que se afastou de uma só vez do animal. Mrs. Hudson, que estava com o que tinha restado de sua coleira, murmurava reclamações a respeito do animal inquieto.

Entretanto, ao ver Holmes, o cão se acalmou drasticamente.

Ele se aproximou do detetive, com o rabo a abanar o tempo todo, e latia, contente. Sem reação, tudo que Holmes pôde fazer foi fingir, ao menos um pouco de falta de intimidade com o animal que ele costumava brincar na antiga casa de Esther.

–Impressionante... – murmurou Watson, pasmo. – Ele parece gostar de você. – enquanto dizia isto, Billy abocanhou um objeto qualquer que estava sobre o chão e o colocou nos pés de Holmes, implorando para que ele o lançasse.

–Parece que ele quer brincar com você. – disse Watson, com diversão. Holmes permanecia com a mesma encenação, fingindo odiar as reações do cão.

Animal é mesmo incapaz de mentir.

–Oh, Meu Deus! Billy! – gritou Esther, e o filhote hiperativo logo correu para sua dona, para alívio de Mrs. Hudson.

–Eu espero que você coloque esse pulguento bem longe de mim, Mrs. Sigerson. – reclamou Holmes, com frieza e raiva na voz.

–Meu cão, Mr. Holmes, não tem pulgas, e eu prometo que ele não irá mais aparecer na sua frente. – respondeu Esther, um tanto irritada com o cinismo de Holmes.

–Mrs. Sigerson, eu espero que isso não se repita de novo, para não causar problemas com os meus inquilinos. – disse Mrs. Hudson. – Dr. Watson também já teve um cão, mas ele era tranquilo. Já este seu animal parece indomável!

Esther riu. – Ele é dócil e calmo, Mrs. Hudson. Só está estranhando o novo ambiente. – ela disse, puxando-o pela coleira. – Vamos para casa, Billy, e comporte-se! – ela reclamou, quando ele rosnou uma última vez, para Watson.