Naquela sala de aparência austera pela disposição dos pesados moveis escuros com partes em couro, ainda mais sombria por um final de tarde de um dia sem sol, Filipa olha entre atordoada e incrédula diante dos papéis que tem em suas mãos....
Filipa: Meu Deus... não pode ser!
Manoela (levantando-se e indo em direção a administradora juntamente com Laura): Filipa... o que está acontecendo afinal de contas?
Filipa: Veja você mesma... Manoela... (passando a pasta a colega) estava tudo aqui... o tempo todo... bem embaixo do nosso nariz!...
Manoela: Não acredito nisso!...
Laura (olhado os papeis): Recibos de pagamento!?... O que tem demais? Não vejo nada de errado neles...
Manoela: Nos recibos... nada... Laura... essa assinatura é de Rufino Alves...
Laura: Continuo sem entender... O que afinal está acontecendo?
Filipa: Vamos te contar desde o início...Quando fomos ao Hotel Glória...
Laura: Aquele onde nos disseram que Catarina estava hospedada..
Filipa: Isto!.. Quando Manoela, Joaquim e eu fomos a esse hotel, descobrimos que as diárias da cantora não foram pagas pela companhia... mas sim por um estafeta enviado por um senhor de muitas posses, e que supomos se tratar da mesma pessoa que fez a doação ao teatro... Esse cavalheiro mandava buscar Catarina e trazer de volta à hospedagem em um Clarence Inglês...
Laura: Um Clarence? Meu pai tinha uma carruagem assim...
Manoela: Nós averiguamos isto... Seu pai... seu sogro... e mais alguns poucos possuíam esse tipo de carruagem na época... Mas... voltando ao assunto... o estafeta assinou um recibo de pagamento ao hotel... Uma assinatura ilegível... que também foi verificada em cartório... Mas quem realmente descobriu de quem era a assinatura foi Joaquim...e creia.. durante um jogo de foot-ball...
Laura: Como assim?
Filipa: Joaquim foi convidado a jogar no Federal Sport Club... Como é de praxe, emprestaram um uniforme... Joaquim teve de assinar um papel se comprometendo a devolve-lo... Um papel onde a assinatura do funcionário responsável era a mesma do recibo do hotel... Descobrimos se tratar de Rufino Alves...
Manoela: Com isto, procuramos este senhor para prestar esclarecimentos... Ele negou-se... Então levantamos informações... Até descobrirmos que apesar de trabalhar em uma instituição tão correta juridicamente como o Federal Sport Club, Rufino não tinha nenhum documento vinculando-o a empresa...
Filipa: E agora sabemos por que!... Ele trabalha no Clube... mas quem continua sendo seu empregador, se podemos assim dizer, é o Sr. Bonifácio Vieira!... E esses recibos comprovam!... Olha Laura... um valor praticamente fixo... mensalmente entregue e documentado a este senhor pelo seu sogro...
Manoela: Tem mais documentos aqui... (pegando uma nova pasta) Vejam isso!... Mais recibos...
Laura: Assinados por... Catarina Ribeiro!... Não pode ser!...
Filipa (folhando a pasta): O Sr. Bonifácio também entregava uma quantia mensal a cantora... Por que o Sr. Vieira daria uma quantia tão alta a Catarina todos os meses? Não deve ser para ajudar a sustentar a neta... até porque com tanto dinheiro... sustentaria muito bem uma família razoavelmente numerosa.. E até onde sei... ele não morre da amores pela menina..
Laura: Sr. Bonifácio não suporta a Melissa!... Mal olha para ela.!.. Meu Deus! Meu sogro... é o pai...
Filipa: É o que tudo indica...
Manoela: Ela deve ter escrito a ele... Como não teve resposta... Escreveu para Edgar... e no momento em que pisou no Brasil...Catarina deve ter começado a chantageá-lo...
Filipa: Provavelmente... Dizendo que contaria tudo... E que ele tinha obrigação de ajuda-la por ter destruído sua carreira...
Manoela: E obviamente pediu dinheiro para Edgar para montar o espetáculo pois não podia fazer isso apesar de ter a quantia que precisava... Se usasse levantaria suspeitas....
Laura: E lógico... Catarina mesmo assim queria mais... Primeiro tentou o pai e Edgar... como não conseguira... seduziu Fernando!... Não há outra explicação... (fazendo uma pausa) Por isso eu sempre achei estranho que ela tivesse tantos luxos... E que tivesse dinheiro para subornar as pessoas... mesmo antes de Fernando ter dado o golpe na fábrica e deles ficarem noivos...
Manoela: Subornar?
Laura: Sim... Catarina pagou a um jornalista corrupto para publicar uma nota sobre meu divórcio.... Isso foi antes de Fernando assumir a presidência desta tecelagem..... E apesar do dinheiro que Edgar lhe dava... não que fosse pouco... mas eram para cobrir os gastos da casa onde morava e principalmente as necessidades da filha... conseguia manter gostos caros para uma pessoa que não tinha posses...

Filipa: Só pode ter feito usando esse dinheiro....A tua volta... e o noivado com Fernando... devem ter feito Catarina chantageá-lo mais... Por isso as retiradas expressivas que encontramos aqui na tecelagem...
Manoela: Me passou algo pela cabeça.. (pegando um dos livros de despesas da tecelagem) Vejam... o dinheiro correspondente ao conserto das máquinas.. todos os meses... é exatamente o valor dos pagamentos do Rufino...
Filipa: Mas isso é absurdo! Ele mantinha o Rufino como um parasita da fábrica!
Laura (folhando outros papeis, detendo-se em uma folha em específico) Ele mantinha tudo aqui! Nessa gaveta!.. Olhem... eu jamais iria esquecer desse recibo... A doação ao Teatro Municipal...
Filipa: E este... outra doação... para a Companhia Lisboeta de Canto Lírico... e aqui... temos o recibo do hotel.... Creio que não há mais dúvidas...
Laura: Não dá para acreditar!... Esse homem... destruiu nosso casamento, nossos planos...para ocultar seu relacionamento com Catarina Ribeiro... e ainda viu o filho criar sua irmã pensando que era pai dela.. Ele é um monstro!
Manoela: Ai Laura... nem sei o que te dizer!.. Estou tão atordoada quanto você
Filipa: Eu também... Nós sabíamos da possibilidade... mas jamais pensamos que o Sr. Bonifácio fosse capaz de tamanha infâmia...
Manoela: Minha única preocupação é como contar tudo isso ao Edgar...
Filipa: Também penso isso... Laura... isso vai ser algo muito duro para ele...
Laura: É algo que não quero fazer... isso vai feri-lo... muito... Mas é preciso saber... e isso não pode passar de hoje...
Filipa: Por sinal... ele devia estar aqui... imagino que o jogo deva ter terminado há algum tempo...
Laura: Eu vou tentar encontra-lo... e prepara-lo para essa conversa...
Manoela: Mas vocês podem se desencontrar...
Laura: É um risco que vou correr... caso não o encontre... dentro de uma hora volto para cá...
Filipa: Certo... mas antes... Vamos chegar a um consenso... como vamos contar isso a ele?..
Laura: Acho que temos que ser o mais sinceras possível... só precisamos encontrar as palavras certas para isso...
Enquanto Laura e as moças conversam sobre o que dirão ao marido da professora, na sala contígua ao escritório, junto a porta fechada, Bonifácio Vieira não sabe ao certo o que fazer. Ouvira tudo o que sua nora, Filipa e Manoela disseram... Sente-se acuado... Tenta sem sucesso pensar o que fazer... Tudo fora descoberto!... Pensa que Edgar não pode saber... Se isto acontecer estará arruinado... Vê o perigo iminente representado pela figura de Laura... Se já não bastasse a matéria que escrevera denunciando a si e ao seu partido pelo desvio de dinheiro da prefeitura... agora mais isto!... Sente raiva... como nunca sentira... Precisa deter Laura... mas como? Algo lhe passa pela cabeça... Não vai conseguir fazer isso sozinho... mas sabe que pode convencer alguém a auxilia-lo... Precisa dar um susto em Laura... e naquelas moças enxeridas... Destas cuidará mais tarde... No momento... é preciso agir para que sua nora fique calada...
Já nas ruas do centro, indo em direção ao bairro de Laranjeiras, Edgar pensa no que acontecera no clube... Dirige pela rua do Ouvidor e relembra tudo o que o irmão lhe dissera e os últimos acontecimentos envolvendo Fernando... Pensa em sua mãe... em todos os mal bocados que tem passado por conta dos homens da família Vieira... Seu pai envolvido em mais um escândalo político... Fernando cada dia fazendo coisas piores... Solto a pouco da prisão e respondendo por um processo de tentativa de homicídio contra a cunhada e os sobrinhos... E ele próprio... quase vira motivo de mais preocupação ao aceitar as provocações de seu irmão caçula e envolver-se em uma briga em um clube frequentado pela elite carioca... Fernando!... Seu envolvimento com Catarina só fez com que sua inveja e baixa autoestima tomassem maiores proporções.. Como pôde fazer tudo isso? A começar pelo que fez com a tecelagem... Pensando nisto, lembra-se dos papéis que Filipa lhe pedira para conferir... É tarde... Não deve haver mais ninguém na fábrica além do vigia... Mas ficara de ver isso... Melhor deixar para amanhã... Se for ver isto agora não vai concentrar-se como deve...
Já na tecelagem, Bonifácio aproveita a conversação das moças e rapidamente, cuidando para não despertar a atenção, dirige-se até os teares... Procura no setor de beneficiamento dos tecidos um frasco com algo que vai lhe ser útil: Éter. Chama o chofer de seu automóvel e pagando uma quantia em dinheiro o convence a ajuda-lo no que pretende fazer... Segurando o frasco distante de si, embebe um lenço que trazia em seu bolso... Entrega o tecido encharcado ao motorista orientando-o sobre o que deve fazer... Este se esconde atrás da porta aberta que dá passagem daquele local para a recepção da tecelagem... Bonifácio volta a antessala do escritório e fica a espreita do que está por vir... Laura logo deve sair .. Só espera que Edgar não venha atrás dela antes disso...
Neste ínterim, Joaquim encontra-se nas proximidades do Hotel onde a noiva e Manoela residem... A noite escura com nuvens pesadas prenunciando chuva sorrateiramente tomara o lugar do dia... Olha para seu relógio...Filipa já deve ter saído... Não adianta ir até a tecelagem... A esta hora não há mais ninguém no local além dos guardas... Estaciona o carro e indo em direção ao balcão da recepção.. pede pela advogada à recepcionista do hotel... Ela não chegara...
Joaquim: O que terá acontecido? Ela me disse que depois do expediente iria com Manoela e Laura fazer compras na Ouvidor... Mas já é noite!... As lojas fecharam... A menos que tenham resolvido lanchar... Algo deve ter acontecido...
Joaquim sai do hotel apressado e passa pela Confeitaria Colonial... Sabe que este seria o único lugar onde as advogadas e a professora iriam àquelas horas... Verifica que as moças lá não se encontram... Volta a embarcar em seu automóvel e segue rumo à Tecelagem Vieira... onde Laura neste momento abre a porta do escritório, fazendo seu sogro esconder-se atrás de uma cortina...
Filipa: Laura... não acho prudente que vá procurar o Edgar... Já está tarde... Por certo deve ter esquecido do que havia lhe pedido e ido para casa... Com tantos problemas... é natural que isto tenha acontecido...
Laura: Bem... então vamos fazer o seguinte... vamos todas até minha casa!... Não vou conseguir esperar até amanhã para contar ao Edgar... e acho que quem deve falar tudo isso a ele são vocês...
Manoela: Temos que organizar tudo por aqui... Não podemos correr o risco de mais alguém aqui dentro ver todos esses papéis... Principalmente o Sr. Bonifácio... Para tudo na gaveta estar bagunçado... Ele deve ter vir aqui quando não estamos...
Filipa: Tem razão... precisamos deixar tudo na mais perfeita ordem... mas vamos separar alguns documentos para mostrar ao Edgar...
Laura: Façam isto... Vou na frente para preparar o espírito dele...
Laura fecha a porta e segue em direção à saída... Sente como se estivesse sendo observada... Caminha apressada... Finalmente chega a porta da recepção... Ao passar, sente que alguém a segura... Debate-se e grita tentando soltar-se...
Laura: Socorro... Me solte... (sendo abafada pelo lenço posto em frente a sua boca)
Por mais que tentasse, ninguém ouve seus gritos... Laura aspira o solvente embebido naquele tecido... Em segundos sente que tudo a sua volta está rodopiando... Acaba por desfalecer...
Bonifácio (surgindo e constatando que a moça está sem sentidos): Sinto muito Laura... Mas vais aprender a força a não se meter em assuntos em que não deve... (olhando para o motorista) Venha...
Motorista: Sim senhor...
O chofer carrega a moça até o automóvel estacionado nos fundos da tecelagem, depositando-a com cuidado no banco traseiro do veículo... Bonifácio embarca, olha para Laura desfalecida e põe o motor para funcionar...
Bonifácio: Vou cuidar desta aqui... Você já sabe o que fazer... Já tens parte do dinheiro... Me encontre perto da Gamboa à meia-noite.. lá lhe darei o restante.... Quero o serviço feito! Depois suma da cidade... de preferência suma do estado!.. E se perguntarem... não fale!... Ou sabe o que pode te acontecer...
Bonifácio sai dali carregando Laura consigo... Pensa no próximo passo a ser tomado... Algum tempo depois chega a seu destino... Sai do carro e sobe as escadas que ligam o grande jardim a porta principal daquele lugar há muito conhecido... Espera alguns instantes impacientemente, andando de um lado a outro daquela sala ricamente decorada...Até perceber a aproximação da pessoa que viera procurar...
Bonifácio: Preciso de sua ajuda... A menos que prefira mais um escândalo envolvendo seu nome...