Lances da vida

Uma amizade improvável


SOLUÇO

Dormi muito bem essa noite. Com o corpo quente e macio de Astrid sobre o meu não foi difícil cair no sono. Também, estava completamente exausto da nossa sessão de rala e rola. Sabia exatamente o momento que ela deixou meu quarto ao sentir o ar frio tocar minha pele quando seu corpo se afastou do meu.

O momento do café da manhã foi uma tortura, nós evitávamos nos encarar o tempo todo. Bocão fez uma reunião de encerramento e nos agradeceu a colaboração e disse que estava orgulhoso de cada um por levar o programa até o fim. E que sabia o quanto foi difícil para nós compartilhar nossas experiências.

A viagem de volta ao centro comunitário foi totalmente silenciosa. Ninguém dirigiu nenhuma palavra, nem Jack e isso me deixou irritado, pois é tão fora do seu normal.

Chegando no centro comunitário, Bocão me puxa para um canto. – Você está voltando para casa, né? Você me prometeu.

– Sim. Menti. – Vou contar a verdade para os meus pais. Obrigado, Bocão. Sei que você se esforça para reformar os garotos como eu...

Ele me interrompe – Só para você saber, isso não é só um emprego para mim. Se precisar de qualquer coisa me ligue. É sério.

– Tô caindo fora. Diz Jack. – Meu ônibus vai passar daqui a pouco.

– Posso te dar uma carona. Bocão oferece

– Não precisa. Ele dá tchau para todos e se dirigi ao ponto.

– É só isso? Elsa se pronuncia. – Você passa quatro semanas conosco e tudo que pode fazer é dar um tchau de costas?

Ainda de costas, Jack mostra o dedo para ela e grita – Senta e roda, elsa.

Elsa começa a gritar insultos para ele enquanto Bocão tenta controlar a situação.

Estamos nos despedindo enquanto Bocão atende uma ligação de um garoto do programa juvenil de liberdade condicional que está com problemas. Ele se despede de nós fazendo a gente prometer que ligaremos para ele se precisar.

A mãe de Astrid chega para busca-la. Seu olhar no instante em que percebe que eu estive na viagem me deu arrepio. Se eu ainda tinha alguma dúvida se poderia voltar a ver Astrid, nem que fosse casualmente , sua expressão já me disse tudo. Não sou de forma alguma bem vindo.

– Mãe, vou me despedir do pessoal e já vou para o carro. Ela me lança um olhar de advertência.

As meninas se abraçam, trocam telefones e prometem que se encontrarão antes da viagem de Astrid.

Ela abraça Felipe. – Se cuida e não desista da Bruna.

– Quem é Bruna? Pergunto

– Minha ex namorada. Felipe dá de ombros. – Nós terminamos antes da viagem, mas eu ainda gosto dela. A Astrid andou me dando uns conselhos.

Então quer dizer que ele não estava afim da Astrid? Eu poderia ter ficado sabendo disso antes,né?

Astrid me dá um beijo no rosto. – Bem, acho que esse é um adeus...de novo.

Concordo – Mostre para aqueles Canadenses a força de Astrid Hofferson.

– Certo. Ela diz. Quando ela recua enfio minhas mãos nos bolsos para conter o desejo de abraça-la.

Quem vê assim nem diria estivemos na mesma cama ontem, nos beijando como se não houvesse amanhã.

– Só para você saber, estou bem com essa despedida dessa vez. Agora sinto que terminamos. Ainda gostaria que você voltasse para Berk, mas essa decisão é sua. Você tem que querer.

Sua mãe buzina mostrando que a realidade espera na esquina pronta para te ferrar.

Aceno para a mãe dela lhe dando um pequeno sorriso - Acho melhor você ir.

Ela dá um passo para trás, mas não me dá as costas. – Fique longe de encrencas, Soluço. É sério.

Fico a olhando enquanto entra no carro. Sinto arrependimento, mas ignoro. Certas coisas não tem como evitar. O que está feito está feito.

Elsa é apanhada por sua mãe e irmã. Depois de ouvir a história de Heather a mãe de Elsa chora e logo toda a família abraça-a e a coloca na van. Acho que elas vão adotar a garota calada e tatuada.

Felipe também vai embora com seu irmão mais velho. É isso aí. O Re-FORMAR está oficialmente terminado e agora é hora de decidir para onde ir.

Uma coisa é certa, dessa vez tenho que ir para muito longe mesmo. O problema é que só tenho doze dólares e alguns centavos em meu nome. Farei uns bicos aqui e ali até juntar uma quantia suficiente.

Jogo a mochila nas costas, contente por ter pelo menos alguns dólares em meu bolso. Sei de um acampamento barato a alguns quilômetros daqui. Posso passar uma ou outra noite lá enquanto tento um emprego no local.

– Ei, Soluço. Espera.

Jack vem correndo para me alcançar. – Perdeu o ônibus?

– Aqui não passa ônibus para minha casa. Quero te acompanhar.

– Não vai não. Você vai descobrir onde a Elsa mora e ir atrás dela.

– Tá de brincadeira? Ela me odeia.

– Talvez seja porque não limpou seus pelos no banheiro.

Continuo em frente.

Jack não entendeu a deixa. Estou começando a achar que ele falou sério quando disse que viria comigo. Ele não para de me seguir.

– Vamos, Soluço. Tenha coração. Pense em nós como Fred e Barney, Thelma e Louise. Sei que você quer.

–Paro de caminhar e encaro Jack. – Thelma e Louise morrem no final desse filme de mulherzinha.

– Elas morreram de mãos dadas. Isso não te fez chorar?

– Não

– Você me deve um abraço. Lembra?

– Não, não devo.

– Então você vai me largar aqui? Tem medo que eu estrague seu estilo?

– Eu não tenho estilo Jack. Vai para casa. Você tem uma casa, né?

Ele fica em silencio. – Você disse para o Bocão que ia voltar para casa.

– Menti.

Droga. – Jack, se não percebeu eu não tenho onde cair morto e tenho pouco dinheiro no bolso. Estou indo para um acampamento para ter pelo menos um lugar para tomar um banho, fazer a barba e dormir.

– Ótimo.

Pelo visto não tem jeito. Jack parece um cachorro de rua que está me seguindo. Olho para ele. Sempre se mostrou arrogante e agora parece que tem medo que eu o abandone.

– Obrigado Soluço.

– Só não me irrite.

– Eu não vou. Prometo.

Andamos por cerca de uma hora e chegamos a um acampamento. Faço o registro e pago sete dólares. Seria vinte e dois se eu quisesse bica também, mas posso usar o banheiro comunitário para isso.

Mesmo sendo barato, terei que fazer dinheiro rápido. Assim que o verão vai embora o frio chega rigoroso e morrerei congelado se não estiver devidamente abrigado.

Escurece e comprei dois cachorros quentes em uma lojinha local e alguns campistas nos deram algumas madeiras para fazermos uma fogueira para nos aquecer. Ainda há alguma generosidade no mundo.

Depois que tomei um banho e fiz a barba no banheiro comunitário puxei um cobertor fino que comprei enquanto morava na casa do Valdo. – Aqui. Estendo o cobertor para Jack.

– Vamos dividir, cada dia com um.

– Não precisa, estou de boa.

Dou graças a Deus por ter um cantinho no chão para dormir. Melhor do que se estivesse na rua com risco de ser perturbado pela polícia ou por outros moradores de rua.

– Sério, Jack. Por que está aqui? Qual a sua história?

– Eu não tenho história. Você me ouviu por quatro semanas contar todos os detalhes sórdidos. Fiquei bêbado, peguei o carro e dirigi até o lago. Ponto.

Ele vira de costas para mim.

Olho para o céu e penso em Astrid. Será que ela vai pensar em mim? Será que ela vai lembrar da noite passada? Ou de qualquer um de nossos momentos ou só conseguirá lembrar das vezes que discutimos e tentávamos nos afastar porque era mais fácil do que admitir o que acontecia entre nós?

Acho melhor parar de me torturar pensando nela. Essa agora é minha realidade. Morando num pedacinho de terra alugado por sete dólares e não parece que minha vida vai ser melhor que isso.

– Era o carro do namorado da minha mãe. Jack corta o silêncio.

Ele esteve tão quieto que pensei que estava dormindo. Deveria ter desconfiado, já que não ouvi o ronco.

– Ele foi embora faz cinco anos, pensei que era para sempre. Por que ela trouxe ele de volta? Sabe o que ele fez?

– Não precisa falar. Não costumo me meter na vida alheia porque também não gosto que se metam na minha.

– quando minha mãe não estava em casa ele me tocava.

– Jack, isso é muito sério.

– E eu não sei? No começo eu não entendia o que estava acontecendo. Eu só tinha doze anos quando tudo começou. Tentei apagar aquilo da mente depois que ele foi embora, mas quando ele voltou em Março e minha mãe falou que convidou ele para morar conosco de novo eu me apavorei.

– Você contou do abuso para sua mãe?

– Contei, ela ficou revoltada e me chamou de mentiroso. Na noite que ele voltou eu fiquei bêbado, roubei o carro dele e joguei no lago. Minha mãe nem foi no tribunal. Soube depois que ela casou com o boiola. Bocão me disse que eu podia fazer o programa Re-FORMAR no lugar de serviço comunitário. Prometi a ele que depois do projeto eu voltaria para casa resolver as coisas com minha mãe, mas não vai rolar. Ela preferiu confiar em um namorado do que no próprio filho.

– Nem sei o que dizer. A história de Jack faz a minha situação parecer nada.

– Não precisa dizer nada. Não te pedi para ter pena de mim.

– Bocão sabe o que o cara fez contigo?

– Não

– Você deveria ter dito a ele.

– Você também deveria ter contado a verdade para seus pais sobre o acidente e também não teve coragem.

Sinto remorso. – É você está certo. Mas eu fiz uma promessa.

– Então, eu fiz uma promessa para o babaca que não contaria para minha mãe e não cumpri. Não posso mais voltar para casa. Vai ser diferente com você.

– O que você está dizendo?

Jack se senta. – Eu estou dizendo que você tem escolhas que eu não tenho. Poxa, só porque sua mãe se droga com autorização médica e seu pai é um bobão, não significa que deve desistir deles. Jack vira de costas de novo. – Se eu fosse você –

– Mas você não é eu. Corto duramente

Me levanto e começo a andar pelo acampamento. Sinto raiva de Jack, de Luane, do mundo. Dou voltas pelo acampamento pensando em tudo que Jack disse. Minha raiva dá lugar a indecisão. Ando cada vez mais rápido enquanto meus pensamentos vão ficando loucos. Logo estou correndo e minha mente corre em muitos pensamentos.

Volto para meu pedacinho de terra e olho para Jack que está dormindo no chão. É como olhar para mim mesmo de longe. É patético, eu sou patético. Tenho inúmeros arrependimentos devido meu medo de ser rejeitado por aqueles que me importo.

Eu não quero ficar sozinho, não quero que meus pais pensem que eu desisti deles. Eu não quero que Astrid pense que desisti de nós. Estou voltando para Berk. Estou voltando para casa.

ASTRID

Minha mãe está revoltada comigo por eu ter ido na viagem mesmo sabendo que o Soluço estava lá.

– Estou completamente chocada do supervisor do programa ter permitido que isso acontecesse.

– Mãe-

– Ele podia ter te machucado.

– Mãe-

– Se você pensa esse garoto é o mesmo que cresceu contigo está enganada.

– Mãe-

–Como posso confiar que fará escolhas certas no Canadá se você achava certo viajar por quatro semanas com aquele garoto? Que decisões irresponsáveis você ainda tomará. Pensei que quando ele partiu seria para sempre.

– Ele se foi para sempre, mãe. Ele achava que se voltasse seria rejeitado e eu falei que ele estava errado. Eu lhe disse que as pessoas dariam uma segunda chance para ele e não o julgariam. Tiro o guardanapo do colo e coloco sobre a mesa me levantando. – Quer saber? Eu estava errada.

– Como ficou tão rebelde?

– Não sou mãe. Só estou frustrada. Eu te amo, mas você tem que confiar em mim.

– Não quando se trata de Soluço. Os pais dele estão lutando para se livrar da dor e do sofrimento que ele causou a nós. Você tem marcas físicas da estupidez dele. Como pode defendê-lo? Só por que ele é bonito? Garotos bonitos existem outros por ai. Acredite.

– Se me ama confie em mim. Eu não o defendo por ele ser bonito, defendo porque ele não merece todas as coisas ruins tem acontecido com ele. Ele teve um erro, ele não merece uma segunda chance? Mãe, todos erramos na vida. Ninguém é melhor que ele.

Vou para a casa da senhora Reymond, sinto falta dela. Ela foi quem me encorajou a perdoar o Soluço. No inicio eu não queria.

Daí nós conversamos e antes de saber que não foi ele eu me apaixonei e o perdoei.

Estaciono e vejo que o Sr. Reymond está na casa. Ele me vê e sorri.

– Oi, Asty. O que faz aqui?

– Queria ver os narcisos.

– Estão florescendo. Venho tentando vender a casa a meses sem sucesso. O mercado está morto e acho que terei de manter por mais tempo. E sua mãe?

– Em casa. Ela está surtando porque eu não falei que estava indo na viagem com Soluço.

– Ela me ligou a algumas horas para me falar. Quer conversar?

Caminhamos pelo jardim, meu pai nunca caminhou comigo e nunca conversou comigo. Sr. Reymond tem sido o pai que o meu nunca foi.

A última vez que ele me ligou foi meses atrás, ele prometeu vir na minha formatura e nunca apareceu.

Paro de pensar no meu pai quando vejo os narcisos. Senhora Reymond teria adorado ver. Ela me fez trabalhar duro na plantação dos bulbos sabendo que não chegaria a vê-los. Gostaria que Soluço estivesse aqui para ver também. Ele construiu o gazebo enquanto eu plantava os bulbos.

– Minha mãe ficou louca por eu não ter desistido da viagem quando soube que Soluço estava na viagem.

– Você tem que reconhecer que ela tem seus motivos para não confiar nele.

– Eu sei, mas- Eu não sei até onde posso contar para ele. Se eu disser que não foi ele que me atropelou ele vai contar para minha mãe e ela vai querer saber quem foi e vamos voltar para o ciclo vicioso. Eu não quero isso e como Soluço nunca vai voltar mesmo, não vale a confusão.

– Sei que ele não vai voltar mais.

– E como se sente quanto a isso?

– Não sei. Nós meio que ficamos próximos durante a viagem.

– Posso perguntar próximo quanto?

– Melhor não.

Tom ri. – Minha mãe estaria brigando conosco por estarmos aqui parados e nos faria suar o traseiro.

– Eu a amava. Mesmo quando ela me fazia suar o traseiro plantando bulbos.

– Ela também te amava e descobri que ela gostava do Soluço. Ele aponta para o gazebo que ele sabia que o Soluço que tinha feito.

– Minha mãe sempre me dizia que eu não deveria guardar rancor. Que isso arruína a alma.

– Gostaria que minha mãe pensasse assim.

– quer que eu fale com ela?

– Seria ótimo.

– Sua mãe é uma pessoa doce, só é protetora demais com você.

– Eu sei. Eu não gostava da ideia de minha mãe namorar ele, mas agora percebo que ele tem feito bem para ela.

– Não sei se já te disse, mas você fez a minha mãe uma mulher mais feliz.

– Eu tenho uma coisa que que estou querendo te dizer, mas não tive coragem antes da viagem. Agora que você voltou... ele limpa a garganta.

– Quero pedir sua mãe em casamento. Tudo bem para você, Astrid?