Lances da vida

Temores e coragem


SOLUÇO

– Não posso fazer isso. Repito para o Bocão. Não paro de tremer desde que saímos do dormitório.

Bocão bate nas minhas costas como se fosse um amigo meu e fosse estar ao meu lado se eu precisasse. – Você consegue. Confie em mim.

Confiar? Quando foi a última vez que confiei em alguém sem me ferrar todo. – Pouco importa.

– Soluço, escute. Você é mais forte do que pensa. Esses garotos precisam de um modelo.

– Escuta aqui Bocão. Eu não sou nenhum modelo para ninguém e nem quero ser. O que direi? Que fui para a cadeia por um erro que não fui eu que cometi?

– O que você vai dizer é você quem sabe.

Olho para aquilo que foi minha realidade durante quase um ano. Assim como era antes não tenho escolhas agora. Sigo Yates e os outros garotos do Re- FORMAR até o setor masculino enquanto dou uma olhada para o lado. Astrid segue mancando atrás da Sra. Browell para o setor feminino. Logo ela vai conhecer a realidade onde vivi esse tempo. Gostaria tanto de poder evitar que ela se deparasse com essa realidade tão cruel.

Aqui meninos e meninas ficam separados. Temos aulas durante algumas horas, terapia de grupo para controle da raiva, recebemos tarefas, são servidas três refeições e o resto do dia relaxávamos em nossas celas. Eles nos incentivam a ler bastante. Alguns não gostavam de ler ou só liam porcarias.

Na sala de espera minhas mãos tremem. Tento secar o suor que teima em escorrer enquanto observo as câmeras e portas seguramente travadas. Lembranças ruins me vêm à memória.

Depois que você é registrado aqui como um transgressor eles retiram de você absolutamente toda peça de roupa de seu corpo e os guardas garantem que você não esteja escondendo nada em nenhuma fenda de seu corpo.

Yates volta com uma caixa transparente. – Coloquem todo e qualquer objeto que tiver em seus bolsos aqui. Fazemos como ele manda e somos conduzidos para a sala onde os detentos costumam receber visita de parentes e amigos.

– Cada um de vocês se encontrará com um residente um a um. Poderão compartilhar suas histórias em um espaço pequeno. Sem xingamentos e comentários obscenos. Não toquem nos residentes.

Yates está sentado em uma mesa no canto da sala. – Soluço irá atestar que a maioria de nossos residentes são fruto de lares desfeitos e/ou de gangues e não tem bons instintos para fazer boas escolhas. Ele irão confiar em você se mostrarem que passaram pelos mesmos momentos difíceis. Ele acham mal comportamento uma insígnia de honra.

Yates faz parecer que esses rapazes pagam aluguel para estarem aqui. Eles estão longe de serem residentes, aqui são tratados como animais.

Sento em uma mesa enquanto chega uma leva de presos vestindo seu tradicional macacão azul. Isso me remeteu aos meus tempos aqui. Essa roupa era o símbolo de que eu não me pertencia mais, eu era do departamento de justiça.

Em meio aqueles garotos vejo alguém conhecido. Era mario, meu ex companheiro de cela.

Não o vejo desde que sai. Ele era um idiota quando nos colocaram na mesma cela, mas quando percebeu que não me intimidava e me viu enfrentar de igual para igual com um líder de gangue, Dino Alvarez, na sala de exercícios, nós ficamos amigos.

Ele se senta na minha frente. – E aí, cara. Quanto tempo.

– Como você está?

– Relaxando aqui no DOC. Sabe, vou ser solto dentro de umas duas semanas. Só preciso ficar longe de encrencas até lá.

Coisa difícil para um cara como Mario. Foi ele que me deu o contato do Valdo, seu primo. Foi com Valdo que vivi até... – Valdo foi preso.

–Eu fiquei sabendo, foi um vacilo. E o pior é que eu iria morar lá com ele, minha mãe voltou para o México com o namorado.

– Eu também fui preso. Por isso estou aqui. Ou faço esse programa ou vou para a cadeia.

Mario recosta na cadeira. – O que pretende fazer depois?

– Não sei ainda.

Bocão se aproxima de nossa mesa. – Parece que está acontecendo um reencontro aqui.

– Mario foi meu companheiro de cela. Explico. – Mario, esse é o Bocão, ele foi meu conselheiro de transição.

Mario acena e se fecha. Ele não é amigável com alguém que trabalha para o DOC. Ele é membro de quadrilha com conexão dentro e fora desse lugar e não confia em ninguém que não pertence ao seu circulo. Estou surpreso dele ainda confiar em mim. Mas vivemos aqui juntos por quase um ano de qualquer forma.

Tem um guarda junto a porta com arma de choque de um lado e uma arma de fogo do outro. Percebo que tem um guarda com os olhos vidrados em Mario. Do outro lado da sala Yates também nos olha.

Mario se inclina e sussurra. – Yates acha que isso aqui é algum clubinho. Não vejo a hora de sair daqui. Estou pensando em ir te visitar em Berk. Tenho curiosidade em saber como os caipiras vivem. Ouvi dizer que as garotas de lá são fáceis.

– É, algumas. Penso em Kendra. – Mas outras não. Completo pensando em Astrid.

Penso em como Astrid está se saindo com as meninas. Ela vai encarar garotas duronas que comem meninas como ela no seu café da manhã.

Yates se aproxima e nos lança um olhar malvado.

Ele espera que eu vou passar drogas ou uma pá para o Mario fugir? Limpo minha garganta e me inclino para Mario. – Bem, eles esperam que eu te fale sobre como é ruim beber e dirigir por aí. Isso faz parte do programa.

– Tudo bem, manda.

– É ruim beber e sair dirigindo por aí.

Mario ri. Ele entendeu a piada. Fico sério.

– Acho que eu nunca te contei o que realmente aconteceu na noite em que fui preso.

– Você nunca falou nada.

– sim, porque eu não fiz. Eu me declarei culpado, mesmo não sendo.

– Tu tá brincando comigo, né?

– Não

– Por que se declarou culpado? Estava protegendo alguém?

–Sim. Sussurro

– Cara, eu não faria uma coisa assim. Ele me olha de lado. – A menos que fosse da família. Eu morreria pela minha família.

Aceno devagar - Eu também.

Mario acena. Somos de origens diferentes, mas somos cortados do mesmo pano. Ele entendeu só pelo meu aceno que me sacrifiquei por um membro da família. – Você se arrepende?

Penso em como tudo seria se não tivesse feito isso. – Sim, me arrependo. Mas sabe o mais louco, eu não posso dizer que não faria novamente.

– Lealdade e honra bagunçam sua cabeça mesmo.

– Sim. E garotas também.

Mario me olha animado. – Meu menino Soluço tem uma garota? Quem é ela? Da última vez que soube você tinha terminado com sua ex vadia porque ela estava ficando com seu amigo.

– Eu não tenho uma garota. Digo. – Além do mais, a única garota que eu quero me odeia. Eu nunca falo a coisa certa para ela. Tento afasta-la de mim para evitar todo drama. E ainda por cima ela me irrita a maior parte do tempo.

– Isso me soa como um casamento. Mario se inclina sobre a mesa. – Aceite um conselho de quem não vê mulher a um tempão. Só se vive uma vez, aproveite o que tem enquanto tem.

– Você também.

– Sem arrependimentos ok? Viva seus dias como se fossem os últimos. Compreende?

Yates manda os presos se alinharem.

Olho para Mario e dou um sorriso. – Sim compreendo.

– Te vejo do lado de fora, Soluço.

Vou seguir o conselho de Mario, só ainda não sei como vou fazer acontecer.

ASTRID

Sentei em frente uma garota de cabelo loiro e raíz escura. Ela se veste com uma calça de moletom azul escuro e uma camisa azul escuro também. Ela está me olhando como se não quisesse estará aqui.

– Oi, sou Astrid.

– E aí Astrid. Qual é sua história? Ela pergunta de forma impaciente e desinteressada.

Conto a ela minha história, o atropelamento e as fisioterapias e internações. Ela parece que vai cochilar. Quando termino ela olha para mim. – Eu deveria sentir pena de você? Escuta aqui, eu tenho mais o que me preocupar do que uma perna ferrada. Meu pai é um bêbado e a minha mãe nos abandonou à cinco anos. Então guarde suas lorotas para quem se interessa.

Estou sem dormir direito, Soluço não fala comigo e ando com os nervos à flor da pele. Se ela não quer simpatia, ok. Mas eu não tenho paciência para vir aqui ser mal tratada por ela.

–Escuta aqui você. Eu me inclino sobre a mesa. – Não é só por que você tem uma família ferrada que isso te dá o direito de chegar aqui e ser mal educada.

– Há claro. Seus pais devem ter dinheiro.

– Minha mãe trabalha em uma lanchonete.

– Mas aposto que seu pai não é um bêbado.

– Eu não tenho como saber, ele abandonou minha mãe e eu há anos. Há, já ia me esquecendo. Me apaixonei pelo cara que foi para cadeia pelo meu atropelamento. Eu não poderia estar falando com ele, daí ele veio nessa viagem e agora ele que não está falando comigo e estou com medo de perdê-lo de novo. Coisa estupida, pois já o perdi. E tudo isso por culpa da condução imprudente. Então quando você sair daqui, nunca dirija de forma imprudente ou acabará sozinha, sem namorado e sendo a pária da escola.

Depois que falei a garota me olhava com os olhos arregalados. – Tudo bem, entendi.

– Obrigada.

– É muito ruim quando as pessoas ficam te olhando quando anda?

– Odeio quando ficam me olhando, mas bloqueio. Me sinto como atração principal em um show de horrores. Não há um dia em que eu não deseje que o acidente não tivesse acontecido.

– Não tem um dia que eu não me arrependa de ter feito o que fiz para ser presa.

– Não sei se posso perguntar o motivo que você foi presa.

– Digamos que deixei alguém bem machucado.

Olho para o lado. Uma guarda feminina bloqueia a porta e do outro lado a Sra. Browell nos olha fixamente. Lembro que Soluço falou uma vez o quanto odiava ser vigiado a todo segundo. Como será que ele está suportando estar aqui outra vez.

– Deve ser horrível estar aqui.

– Até que não, só que estar aqui me lembra o que fiz. As lembranças daquela noite me dão pesadelos. Queria escrever uma carta me desculpando, mas ela com certeza não lerá.

– Você devia fazer, não custa tentar. Isso fará você se sentir melhor.

– Acho que não.

– Só tenta.

Só mais um minuto meninas. Grita a Sra. Browell.

– Foi bom te conhecer. É horrível nos dias de visita quando não chamam o seu nome por não ter ninguém para te ver. Tenho que agradecer por você me proporcionar essa visita. Meu nome é Vanessa e meus amigos me chamam de V, mas agora não tenho mais amigos.

Levanto a mão e a Sra. Browell se aproxima. – Algum problema?

– Não, nenhum. Eu gostaria de saber se posso ter o endereço para me corresponder com Vanessa por cartas. Seu rosto severo suaviza. – Seria ótimo, te passamos antes de saírem.

– Você não precisa fazer isso.

– Eu sei.

Vanessa sorri. – Se você escrever mesmo eu respondo, só não espere palavras elegantes.

– Certo

– E só para constar, você não é nenhuma aberração. Você é a garota mais legal que conheci.

– Eu sou esquisita.

– Não, não é. Você é incrível.

Ninguém nunca disse que eu era incrível.

– Se você se sentir legal e agir como legal os outros vão te tratar assim.

Quando entramos na van, vou para os fundos onde geralmente o Soluço senta, mas quando chego ele passa para o banco da frente e senta ao lado de Elsa.

Quando chegamos no dormitório Bocão anuncia que teremos dois dias livres e Felipe sugere irmos ao lago para pescar.

Soluço parece muito distante desde que chegamos. O que será que aconteceu com ele lá? Não tenho como descobrir por que ele ficou o tempo todo sozinho no quarto.

Mais tarde nos reunimos para ver um filme e ele não saiu do quarto.

– Soluço vem ver um filme

– Vejam sem mim

– Você está legal? Quer conversar?

Ele balança a cabeça

– Vai ficar com raiva de mim para sempre?

Ele não responde

De manhã, enquanto todos estão cobertos de protetor solar e prontos para sair, Soluço é o último a ficar pronto. Ele está de boné, bermuda e uma regata. Sua tatuagem me faz lembrar chamas negras incendiando sua pele. Ela o faz parecer mais duro e intocável e provavelmente era essa sua intenção quando a fez.

Já no lago, Bocão compra minhoca e aluga três canoas e materiais de pesca e nos deixa por nossa conta.

– Ei Elsa, sabia que seu biquíni mostra todo o contorno do seu mamilo? Jack fala

– Seu porco. Elsa o empurra

– Qual é Elsa, só estava dizendo que seus seios são bonitos. Aprenda a receber elogio.

Todos nós estamos olhando para Jack imaginando que ele perdeu a noção

Elsa cruza os braços e olha para as partes baixas de Jack. – Sabia que não dá para ver o contorno do seu pinto na sua sunga? E só para constar não foi um elogio.

Sem aviso Jack pega Elsa no colo e vai para o lago ignorando os gritos dela.

– Você não vai me jogar na água não né?

– Vou sim.

Olho para Soluço que observa Jack e Elsa. Ele se vira para mim com uma expressão malvada no rosto. Ele acena como se considerasse o castigo de Jack uma ótima ideia.

– Você não está pensando em me jogar no lago?

– Sim, estou.