Kiku to Higanbana

Registros da guerra de dez mil noites


— Não se preocupem, meninas. Eu estou bem! É sério! - Ene disse para suas colegas de sala. O grupo de garotas que a circundava era intimidante, e a enxurrada de perguntas estava a deixando um pouco desesperada.

Era segunda-feira logo após a missão de Ikari e Ene. A manhã iniciara de forma pacífica até

— Kunie-san, pode contar com a nossa ajuda! - exclamou uma delas.

— Sim, sim. É só pedir! - Disse outra.

— Muito obrigada, mas não precisam se preocupar tanto assim. É só uma perna quebrada... - Ene continuou seus esforços em vão.

— Ei, ei, talvez ela esteja fingindo para escapar da Educação Física! - continuou mais uma em tom de brincadeira.

— Ou ela está gostando tanto dos olhares preocupados dos garotos que nem tá ligando pra dor! Que inveja... - uma quarta continuou, se aproveitando da deixa.

— N-não é nada disso! Isso não tem nada a ver! - Ene continuou, balançando rapidamente suas mãos - Eu nem ligo pra isso!

— Sendo assim, que desperdício! - A primeira retrucou, despontando uma onda de risadas no grupo.

Nesse momento Ene parecia ter desistido, ela só exibia um biquinho em conjunto com suas bochechas cheias de ar.

"Difícil dizer se ela está mesmo irritada ou se só entrou na brincadeira...", Ikari pensou com um sorriso torto.

Sentado em seu canto na sala, com o gakuran azul-marinho desabotoado exibindo uma blusa branca, ele observava o grupo de garotas com seus seifukus. Ene tinha em seu cabelo uma tiara azul-escuro, combinando com o uniforme, e um gesso em sua perna direita, o qual não era inteiramente necessário, mas funcionaria para encobrir o feitiço de imobilização até sua melhora.

Ela percebeu que Ikari a encarava e, com um sorriso e um aceno, o cumprimentou. Desprevenido, ele arregalou ou olhos, mas logo deixou sua boca formar também um sorriso e acenou em resposta.

— Falando nisso, você não se acidentou depois de ter saído com o Oga-kun? - Uma das colegas mencionou.

— Agora que você falou, é verdade... - continuou outra.

De repente, em sintonia, cerca de oito garotas lançaram olhares afiados para Ikari. Assustando-se com o julgamento silencioso, ele involuntariamente recuou com a cabeça e seu sorriso se distorceu com o nervosismo.

Desde que as aulas começaram, passou-se cerca de um mês. Ainda que a atitude da turma para com Ikari tenha mudado para melhor, eles ainda eram, no máximo, neutros. E obviamente algo desse tipo ainda seria rotulado como sua culpa.

Ele olhou mais uma vez para a perna quebrada da garota enquanto lembrava-se de sua conversa no caminho de volta para Quioto.

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— Maou? - Ikari questionou, com evidente estranheza na voz.

De fato, um nome genérico desse faria a maior parte das pessoas pensar em um vilão genérico de videogame ou de algum anime.

— Sim, o Maou. - Ela respondeu e sorriu satisfeita, como isso fosse explicação o bastante.

Ikari apenas continuou a encarando com os olhos semi-abertos. Percebendo mais uma vez que o rapaz não sabia sobre isso, ela acenou em desculpas e continuou:

— Eu também não sei tanto sobre isso. Os Akuma atacam os humanos desde o início dos tempos, e o responsável por tudo isso é o Maou. Há um bom tempo os clãs Onmyouji foram criados como uma resistência, e até hoje estamos em guerra com as forças do mal! - Ela exclamou com uma pose digna de um tokusatsu, fazendo Ikari rir. Rindo em conjunto ela concluiu. - Bem, é algo por aí. Tem mais história, mas pra ser sincera eu nunca prestei muita atenção nisso...

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— Todo desatento enquanto olhas as meninas. Sinto pensamentos suspeitos vindo do meu parceiro! - A voz de Shunsuke vinda de trás, junto com um tapa em seu ombro, fez Ikari voltar ao presente.

— O quê você quer, Shun? - Ikari perguntou com leve irritação.

— Para um amigo, você me trata surpreendentemente mal... - O outro comentou sem demonstrar incômodo - Bem, tanto faz. No que cê tá pensando?

— Nada demais. Como você disse, eu tava viajando um pouco... Além disso, você não me trata muito melhor...

Shun, em pé ao lado de seu amigo, desviou a visão para as garotas enquanto respondia com um som contemplativo. Logo depois ele pareceu chocado e exclamou:

— Ene-chan! O que houve com sua perna?!

— Eh? - Ela foi pega de surpresa. - Bem, sabe, esse fim de semana foi um pouco agitado e acabei sofrendo um acidente...

O rapaz tornou para Ikari com um terrível olhar julgador.

— Desembucha, o que você fez com a pureza da linda princesa da nossa sala?!

"O que há com esse título?!", Ikari pensou e, exaltado, lançou um questionamento em retorno:

— Não fale de uma forma que os outros irão estranhar! Eu não fiz nada demais!

Mas era tarde demais. Shun, bem como a roda de meninas, o olhavam com interesse, como se esperassem a defesa do réu. A própria Ene juntou-se a eles, com um olhar de quem pedia para "inventar alguma história".

— Mas é sério, tudo bem que ela é sua amiga de infância, mas como uma beldade dessas continuaria amiga de um projeto de delinquente feito você!

— Quem é você pra me chamar disso?! - Ele levantou da cadeira, exaltado. Porém ao perceber que isso não ia ajudar, respirou fundo para se acalmar, e aproveitou para pensar em uma desculpa com os segundos ganhos - Tudo bem, eu irei contar.

Por algum motivo ele sentia que a platéia aumentava. Tentando não pensar nisso, continuou:

— Bem, a verdade é que Ene também gosta de praticar atividades físicas! Isso! - Ele sentiu que não fora muito convincente, mas seus colegas pareciam comprar a história - Após tanto tempo sem nos vermos, ela me chamou para pedalar e fomos até as montanhas nos arredores da cidade! Você não gosta de esportes, então não ia ser interessante para você! Hehe...

Ene soltou um som em concordância e reforçou a história de Ikari:

— Foi! Bem como ele falou! Só que eu sou meio afobada e inventei de descer uma ladeira à frente dele! Acabei passando por cima de uma pedra, perdi o equilíbrio e caí! - A história era plausível, Ene demonstrara bastante desenvoltura física nesse curto período escolar. Suas amigas e Shun pareciam ter acreditado de vez.

Ela sinalizou "positivo" com o polegar e, discretamente, Ikari fez o mesmo em retorno. Aos poucos a situação se aliviou e Ikari pôde respirar aliviado. Isso até Shun chama-lo novamente:

— Ei, Ikari... Sobre aquele dia lá do festival... - Seu tom mudou. Claramente ele estava perdido nas palavras enquanto coçava a bochecha.

— Hum? - Ikari virou-se para prestar atenção. Quando seu amigo ia falar algo o característico sinal para o começo da aula começou a tocar.

Desmotivado, Shun concluiu:

— Nada não, deixa quieto...

Ikari estranhou a reação de seu amigo, mas decidiu não pressiona-lo enquanto assentia com a cabeça.

Enquanto todos se dirigiam para suas cadeiras, o garoto sentou-se e refletiu consigo mesmo:

"A guerra contra o Maou, né? Será que isso tem algo a ver... Com ele?", seu rosto franziu involuntariamente. "Sakurane Yuuki..."

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Os sons dos socos rasgando o ar ecoavam pela sala de treinamento , intercalando com o impacto de golpes que acertavam o alvo em cheio. O alvo, no caso, era Ikari.

Mas ele não se permitia cair por qualquer coisa. Já mais acostumado com os golpes de Makoto, sua instrutora e parceira de treino, ele os recebia e revidava com a mesma intensidade. Assim que chegou, ela sequer precisava olhar em direção ao rapaz para aparar seus golpes. Agora, ele já conseguia chamar sua atenção.

Mais do que isso, ela passou a até trocar de roupa para treinar com ele. Se antes ela não precisava se preocupar com liberdade de movimento, a regata e o short de muay thai agora diziam o contrário.

Com as mãos cobertas por faixas negras, Ikatteiru Ryu, seu armamento espiritual, o rapaz praticava a potência de seus golpes e o desgaste mental que seu porte lhe impunha.

Ele lançou um soco direto e Makoto respondeu com igualdade. Ambos os punhos se chocaram, produzindo um som metálico. Ikari sorriu, pois pela primeira vez no dia sua oponente não desviou de seu golpe, mas precisou para-lo. A outra sorriu de volta, como quem dizia que ele estava se superestimando, e acertou-lhe uma joelhada no abdome. Ele caiu de joelhos, sem ar, e as faixas se desfizeram em energia vermelha.

— Bem, duas coisas são certas sobre isso daí. Seus socos ficaram muito mais fortes. - Ela fez uma pausa e olhou para seu punho, o qual estava vermelho pelo soco anterior. - E isso aí é duro feito metal... Não incomoda?

— Nem um pouco... - Ele respondeu, já recuperando o fôlego. Ele olhou para as mãos e as fechou com leveza, abrindo logo depois. - É tão leve que é como se nem estivesse aqui...

Makoto sorriu.

— É, vai dar uma boa arma pra você. - Ela andou um pouco e se escorou na parede enquanto cruzava os braços. - Você também já consegue invoca-la com mais facilidade, o que é ótimo. Use-a sempre que puder, moleque. Armamentos espirituais tendem a evoluir com seu portador.

— Isso é um vocabulário bem elaborado de sua parte, Hijimi-san! - Kenji brincou, com seu olhar feral, observando a luta de um mesanino.

— Quer vir dizer isso na minha cara, loirinho? - Ela desafiou, e na mesma hora ele recuou.

— Ainda não escrevi meu testamento, tô fora...

Ikari riu junto de sua mestra.

Sim, ele estava conseguindo usar o armamento com mais facilidade... Muito mais consciente na segunda vez que o invocou, ele gravou a sensação distinta que o fazia trazer seu poder interior.

Não era coragem, não era ódio, não era medo... Era uma mistura disso, mas que ainda se distinguia. Era uma sensação de inutilidade... Era uma coragem para superar isso, o ódio por se sentir assim e o medo de não ser o bastante... E de que ele novamente seja um inútil e um covarde...

Ele contorceu sua boca em desgosto.

— Ah, e sobre aquele papo de mais cedo, sobre a história dos Onmyouji e tudo o mais? - Makoto começou, chamando a atenção dele. - Não deve ser tão difícil encontrar algo do tipo nos arquivos do Clã, mas como aquele lugar não faz meu tipo eu não posso afirmar.

E desatou em rir ruidosamente. Ikari riu de leve, tentando acompanhar a linha de raciocínio de Makoto. Após parar para respirar, ela retomou a fala:

— Bem, eu tenho de ir pro castelo do Clã Abe ainda hoje de qualquer forma. Reuniões formais e tudo o mais são um saco, mas eu não tenho muita escolha.

"Já faltei as duas anteriores", Ikari pensou ter ouvido ela sussurrar.

Ele parou para pensar. Estava um pouco cansado, mas sentia que sua ansiedade não passaria até que ele desse uma olhada.

— Bem, quanto mais cedo melhor, não é? - Ele concordou, massageando onde havia sido acertado há pouco.

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— Ok, por que motivos eu pensei que isso seria fácil? - Ele se perguntou com os olhos semicerrados em meio a uma biblioteca maior que a área do dojô onde morava, e cujo pé direito facilmente alcançaria os quinze metros.

Desmotivado, ele coçou a bochecha até que um ratinho de pelagem branca brilhante apareceu ao seu lado. Ele balançava suas patas como se o cumprimentasse ou tentasse chamar sua atenção. Ele lembrava-o do cachorro shikigami que encontrara na missão com Kenji.

— Ah, olá... - Ikari acenou de volta, depois caiu em silêncio.
"E se...", ele pensou antes de voltar a falar:

— Então, você pode me ajudar? Eu to buscando algo como a história dos Onmyouji... De forma resumida, se for possível?

O rato o olhou por instantes, nos quais o garoto se questionou por estar conversando com um rato, mas logo ele se levantou pelas patas traseiras e começou a chiar. O som se repetiu em outros lugares do aposento e logo cerca de uma dezena de outros ratos idênticos ao primeiro circulavam pelas prateleiras de pergaminhos e livros. Eles pareciam indicar o que Ikari havia pedido.

Logo, com uma escada, ele subiu para onde a maior parte se reunia e pegou um pergaminho bem enfeitado com faixas verdes e douradas sobre o papel branco-acastanhado. Ele estava marcado com "Registros da guerra de dez mil noites", de autoria de Tsuchimikado Hisame.

"O título parece bem exagerado...", Ikari pensou enquanto o levava consigo. "Melhor ficar confortável..."

Os shikigami pareciam ter lido seu pensamento e logo lhe indicaram uma porta de correr. Quando ele a abriu, deparou-se com uma varanda na qual lâmpadas japonesas antigas flutuavam, iluminando as mesas baixas espalhadas pelo tatame.

— Bem, ao trabalho! - Exclamou, começando a leitura.

E assim começava o texto:

"É difícil definir a partir de que momento transformamos o medo na esperança de sobreviver mais um dia e a sobrevivência em guerra. A luz persegue as trevas e é perseguida em resposta, em um ciclo vicioso e inescapável desde a criação de tudo pelos deuses que nos convidaram à existência. Como a luz que era perseguida, nós não podíamos permitir que fôssemos devorados, e portanto passamos a perseguir. "

— Que dramático... - comentou Ikari, e continuou.

"Como uma tradição, os termos youkai, ayakashi, bakemono e akuma foram todos passados pelas famílias por gerações, e o mesmo foi feito com as formas de combatê-los. Conhecimentos monásticos do budismo, as artes sagradas dos kami, o shamanismo, a divinação, bem como táticas de guerra dos samurai. Essas famílias ensinaram outras famílias, e com as suas uniões surgiram os clãs, e os clãs fundaram escolas com seus princípios únicos. E começou a caçada da retribuição.

Os anos se passam, e essas escolas passam a se tornar organizadas e a interagir umas com as outras. Seus representantes ganham renome e ascendem socialmente, e no século VI o 'caminho do yin e yang' era visto por cortes de todo o Japão feudal. Por volta do século VII, essas práticas continuaram a evoluir e se consumaram no chamado Onmyoudô.

As famílias continuam a se tornar mais poderosas e a guerra se intensifica, e com a descoberta de um mundo além do nosso nasceria um ciclo de ódio que iria durar muitos anos. Séculos, mesmo após a descoberta do verdadeiro inimigo.

Humanos são o yang e youkai são o yin, e isso de forma alguma reflete a verdadeira moralidade dos povos, pois ambos também possuíam dentro de si parte da outra metade de um todo que leva ao equilíbrio. Os Akuma são a face do desequilíbrio."

Ikari bocejou e passou a ler de forma superficial até que encontrasse parágrafos que lhe chamassem mais a atenção ou que falassem de forma mais objetiva.

"A ganância e a prepotência dos seres humanos quase seria a causa de sua ruína. O número absurdo de clãs desunidos gerava apenas discussões improdutivas enquanto representantes buscavam ganhar vantagens e direitos acima de outros, aos poucos ignorando a já considerada ganha guerra no outro mundo. No ápice disso, em uma das reuniões anuais, um ser apareceu.

Apresentando-se como O Senhor Demônio do Sexto Céu, que viria a ser chamado apenas de Maou, ele declarou-se como o senhor de todos os Akuma e pai das maldições, a força oposta aos encantamentos dos Onmyouji. Ele também disse estar cansado de escaramuças e declarou abertamente sua intenção de guerra.

Inundados pela soberba e pelo orgulho, os Onmyouji riram na sua cara e declararam ali sua morte. Eles receberam em troca a própria morte. É dito que neste dia uma horda de demônios invadiu a capital e aniquilou dois terços dos líderes presentes, marcando novamente o coração da humanidade no desespero. As trevas voltaram para morder a luz e tempos de muito sangue derramado vieram.

No ano de 950, um homem de um certo clã se destacou sobre os demais. O filho de um humano e uma raposa youkai, que viria a unificar os Onmyouji sob sua bandeira e aproximar ambos os residentes de taiyang e taiyin. Seu nome era Seimei, do clã Abe, até hoje conhecido como o maior exorcista de toda a história. Com uma sabedoria sem igual e poder inigualável, Seimei foi o primeiro humano conhecido a encurralar o Maou em seu castelo, nas terras além do Norte. Mais do que isso, ele foi o único humano até hoje capaz de matar o pai das maldições e trazer paz, ainda que temporária, ao Japão."

— Eu estou em um clã surpreendentemente poderoso... - Ikari comentou consigo mesmo, agora com maior interesse no pergaminho.

"Nos anos que se seguiram, a sociedade Onmyouji se reergueu. Quatro clãs se destacaram sobre todos os outros e dividiram entre si a liderança dos que restaram. Ao Sul, em Shikoku, os caprichosos artesãos da fênix, o Clã Engekiji. Ao Oeste, em Kyuushu, os ferozes tigres caçadores, o Clã Kunie. Ao Norte, em Hokkaido, as resilientes tartarugas que guardam o território do Maou, o Clã Kekkai'in. A Leste, protegendo a maior parte do território japonês em Honshu, estavam os místicos e poderosos dragões do Clã Tsuchimikado, os quais assumiriam o comando na ausência do clã Abe. Seus líderes viriam a ser conhecidos como Os Quatro Generais Divinos.

Sob estes quatro viriam os doze grandes clãs e seus líderes os Doze Comandantes Celestiais, e destes todos os clãs restantes.

Mas a paz não duraria para sempre. Seimei estava ficando velho, ainda que com seu sangue Youkai, e abdicou de todo o seu poder em troca da imortalidade no ano de 1005. De uma era de luz deve vir uma era de trevas, e o Maou renascido já preparava seu contra ataque."

Mais uma vez a leitura pareceu não render, então Ikari não se prendeu demais a detalhes e voltou a ler com rapidez.

"Iniciou com Shuten Douji o primeiro humano a se tornar um Oni Verdadeiro, uma cria direta das maldições do Maou. Menos de um ano após a partida de Seimei, a ele foi concedido um exército de seus semelhantes e aterrorizou Quioto. Seu reinado de terror foi estranhamente curto, mas tão terrível que marcou a história como uma das maiores calamidades do Japão. Sua cabeça foi cortada por Minamoto no Raikou, o primeiro humano na era pós-Seimei capaz de rivalizar com ele, no ano de 1020. Alguns registros afirmam que Raikou morreu de ferimentos ou de uma maldição remanescentes em menos de um ano após a batalha. Seu subordinado e filho de criação, Ibaraki Douji, unificou os remanescentes e retornou para o lado do Maou, onde continuariam como a principal força de seu exército.

O segundo baque veio em 1164 com a transformação do Imperador Sutoku. Ele não havia recebido uma maldição. Pelo contrário, o ódio em sua alma após sua todo o descaso e humilhação após sua morte o transformou. Transformando-se em um Tengu sedento por vingança, ele aliou-se ao Maou e usou de seu poder para trazer inúmeros desastres sobrenaturais sobre a capital. Sob seu comando, uma verdadeira procissão real de Tengu, aqueles que estão entre os mais nobres dos Youkai, eram vistos por onde quer que ele passasse.

E veio o fim dos Onmyouji. Não pela clava dos Oni ou pela lança dos Tengu, mas pelas palavras de uma bela mulher. Uma feiticeira imortal vinda da china, sob a forma de uma raposa de nove caldas, se aproveitou da crescente desconfiança das autoridades sobres os praticantes das artes místicas construída pelos seus companheiros mais violentos. Uma verdadeira dissimulada ardendo com a luxúria do caos, Tamamo no Mae se infiltrou na corte imperial e só precisou apontar a inutilidade daqueles mágicos com seus truques contra os Oni, ou talvez culpa-los um pouco sobre a transformação de um imperador em um Akuma. Nada é mais letal do que uma facada certeira pelas costas. Sob alegação de charlatanismo e superstição, o Onmyoudo foi proibido em todo o território japonês.

Sem ter para onde fugir, os Onmyouji mudaram-se para Taiyin. Hoje marca dez mil noites do nosso exílio, e creio que usarei disso para nomear esse registro. Notícias do mundo exterior dizem que após nossa saída, Tamamo no Mae desapareceu da vista humana, mas foi presenteada com o comando de todos os Akuma selvagens e praticantes de feitiçaria. Imperador Sutoku encontrou um pouco de paz em seu espírito e abandonou a guerra. Pelo que escutei ele retornou para o convívio com os humanos, onde está a ser venerado como uma divindade.

O mundo está muito estranho, muito mudou desde que eu era apenas um garotinho. A única certeza que permaneceu, é a de que nosso dever não acabou. Ele não acabará tão cedo.

— Tsuchimikado Hisame."

Ikari já estava um pouco tonto da leitura e sua atenção já não era a mesma. Ele se levantou, se espreguiçou e olhou para uma janela que lhe permitia contemplar a noite da Quioto de Taiyin.

— Até que foi informativo... Até detalhado demais... Mas não encontrei o que esperava... - Seu rosto exprimia cansaço. Ele olhou para os arquivos e suspirou em desistência. - Não sei o que deu em mim, não sou do tipo pesquisador...

Ele retornou até a prateleira onde os shikigamis roedores tiravam um cochilo e recolocou o pergaminho em seu devido lugar. Assim que começara a sair, seus olhos distraídos olharam para a capa de um livro e, por algum motivo, permaneceram encarando-o.

— "Furukotofumi"... - Ele leu em voz alta com um olhar letárgico. Percebendo que isso não lhe significava nada, balançou a cabeça, limpou os olhos e seguiu seu caminho.

"No fim eu não aprendi nada sobre ele, né?", pensou consigo mesmo enquanto planejava o caminho para casa.

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— Não importa o quanto fiquemos aqui discutindo, ninguém consegue ter certeza do que são aqueles monstros de fogo! - Makoto exclamou.

Com suas vestes tradicionais de Onmyouji com padrão rubro e branco, ela esmurrou uma mesa. Espalhada pela longa sala, cerca de trinta outras pessoas vestidas de formas semelhante, mas com uma variedade maior de cores, se dispunham ajoelhados sob a mesa de reunião.

— Tenho de concordar com Makoto-dono, devemos nos focar em tópicos que podemos resolver no momento. - Dizia Geshiki Kamui, com suas vestes azul-escuro e púrpura. Seu olhar de raposa parecia preocupado. - Precisamos resolver a questão dos Oni e desse Yato-no-Kami. O que podem me dizer?

— Perdemos Onmyouji todos os dias, Kamui-dono... - Disse um senhor de meia idade já quase careca.

— E eles sabem se esconder! É como buscar uma agulha em uma palheiro! - Exclamou uma mulher mais madura que sentava-se próxima ao senhor.

— Temos algum indicativo do quão perigosos são, Daigo-dono, Aimi-dono? - Kamui perguntou, limpando seus óculos.

Eles baixaram a cabeça, um pouco envergonhados.

— Todos os que foram mortos até agora eram certamente experientes, mas não tão fortes como o líder de um Ramo... - o homem disse pausadamente.

— Entaõ é só a gente mandar os líderes! - Makoto exclamou já sem paciência. Ela sabia que se deixasse a especulação começar de novo ela não conseguiria dormir em casa neste dia.

— Mas já falamos que não estamos conseguindo encontrá-los, Hijimi-dono! - a mulher se exaltou. - Além...

— Não, acho que ela está correta. - Kamui interrompeu.

— Kamui-dono!

— Não se preocupe, eu irei participar da busca. Também quero isso resolvido o mais rápido possível. - Ele finalizou com um tom de que não admitiria mais discussões. - E quanto ao Yato-no-Kami? Se bem me lembro o que mais se sente ameaçado por ele aqui é o Yokuma-dono, o que tem a dizer?

— S-sim... - Yokuma começou a dizer em meio a nervosismo e irritação. - Descobrimos que ele tem atacado diversos Onmyouji pela cidade também, mas apesar de termos alguns gravemente feridos, ninguém morreu até o momento. Ele parecia buscar a mesma coisa em todos os casos: Espadas amaldiçoadas!

Kamui desviou o olhar e levou a mão ao queixo. Ficou em silêncio por alguns instantes e logo declarou:

— Certo: Iremos dar início a uma operação de caça aos Oni ao mesmo tempo em que lidaremos com o Yato-no-Kami.

Vozes de discordância se levantaram.

— Será que conseguiremos dividir nossa atenção assim? Este assunto está se tornando sério!

— Cale a boca, temos mais gente do que o suficiente por aqui!

— Meu clã é de comerciantes, não somos combatentes!

— Devemos lidar com um problema de cada vez.

Kamui não modificou seu rosto. Ele apenas tocou com a bainha de sua espada no chão e um tapete de chamas azuis fantasmagóricas varreu o chão e desapareceu em questão de um segundo. Com um ar convencido e dissimulado ele sorriu e declarou:

— Não vos preocupeis, eu já tenho uma ideia para lidarmos com isso.

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Em um beco isolado, um rapaz se contorcia de dor. Vestido com calças largas de Aikido e um kimono terrivelmente encardido, ele se encontrava de joelhos, abraçando a cabeça que lhe apoiava na outra extremidade. O cabelo desgrenhado e irregular lhe caía pela lateral, ocultando totalmente sua expressão.

Ele suava, suas pupilas se contraíam para expandir em seguida e seus músculos tremiam.

Em sua mente apenas uma voz ecoava.

"FOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOMEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEE".