O barulho acordou Ene de supetão. O som de da parede quebrando-se com um poderoso impacto a fez agir com seus instintos antes de sua mente, e por muito pouco pedaços de madeira destroçada não a atingiram.

"O que aconteceu?", passou por sua cabeça ainda sonolenta. Logo buscou algum bolso na roupa até perceber que estava apenas com o kimono da estalagem, "merda, os ofuda!"

— Me larga, desgraçado! - Ikari bradou pouco à frente.

Dirigindo seu olhar para o som visualizou um enorme buraco na parede, e do outro lado um ser humanoide com pelo menos dois andares de altura segurando Ikari em uma de suas mãos.

— Quem não tem cão... - Ene disse, inspirou fundo e começou uma sequência de selos com as mãos, entoando ritmadamente - Pyou, Kai, Jin, Tou.

Seus dedos naturalmente passavam de uma posição para a outra enquanto uma aura branca a encobria com a mesma forma de sua silhueta, inicialmente com a mão fechada e os dedos indicadores cruzando por fora os médios, depois com os dedos entrelaçados na parte externa e os polegares unidos. Sem soltar os polegares, os outros dedos se soltaram e se entrelaçaram mais próximos à ponta internamente e, finalmente soltou o amular e mínimo, unindo-os esticados.

Ventos, devolvam-me minha herança, kyu kyu nyo ritsu ryo!— E com isso o Reiki passou de seu corpo para sua mão, rapidamente tomando a forma exata de uma lança, a qual materializou-se em sua mão. Ela a pegou, girou e, empunhando-a com ambas as mãos, apontou para o inimigo. - Você, solte já o Ikari!

— Oh, uma onmyouji! Perfeito, você dará uma boa refeição! - Uma voz distorcida e grave retumbou.

"Será um dos oni?", ela pensou.

Aquele homem gigante tinha um corpo musculoso e uma pele verde. Seu rosto e tronco nú eram cobertos de pelo marrom e de sua cabeça emergiam alguns chifres irregulares. Sua arcada dentária era composta principalmente por caninos, com alguns deles bem pronunciados. Vestia-se com nada mais do que uma calças de pele e couro e não parecia portar arma alguma.

— Essa fala é muito clichê! - Ikari exclamou, com sua aura flamejante explodindo. Com tudo o que tinha ele soltou ambos os braços e buscou concentrar sua energia em um deles - Senhor da pólvora, dai-me a força imparável de um canhão para destruir a muralha que se impõe, kyu kyu nyo ritsu ryo! Canhão aríete!

Um círculo vermelho se formou à frente de Ikari com o ideograma de explosão em seu centro, com o máximo de mobilidade que pôde, o rapaz socou bem no centro e, com o mesmo barulho que um canhão faria, uma onda de impacto explodiu à sua frente, atingindo a face daquele que o segurava.

— É, parece... - O sorriso que havia se formado se desfez rapidamente ao ver que seu ataque não surtira efeito - Que não deu muito CEEEEEEEERTOOOOOO!

Ele fora arremessado para trás, sem que lhe fosse dada muita importância. Seu grito ficava cada vez mais baixo conforme se afastava da garota.

— Ikari! - Ene exclamou, mas logo rolou para o lado a fim de desviar de um soco vindo diretamente em sua direção.

O braço do monstro passou raspando em sua roupa, qualquer milésimo a mais de atraso poderia ter lhe custado caro. Seu olhar no instante seguinte já parecia frio e sem vida como o de uma caçadora.

— Vou deixar os rapazes cuidando dele! Você parece mais intere... AAAAAI, DESGRAÇADA!

Ela não perdeu tempo e, durante a fala, fincou sua lança profundamente no braço do inimigo, retirando-a antes que fosse levada pelo reflexo de recuo deste. Ela tocou no próprio rosto e sentiu falta da máscara, então correu para sua mochila e começou a vasculhar os pertences que trouxera. Seus olhos se arregalaram ao perceber que mais um ataque vinha, mas este fora fácil de desviar. Rolou para frente enquanto arremessava sua mochila para um canto da sala. Em uma de suas mãos já estava a sua máscara branca de tigre, e na que segurava a lança, dois ofudas.

"Sabia que tinha alguns na bolsa...", comentou consigo mesma. “Esses vão ter de bastar!”

— Não é correto atacar uma dama no meio da noite... - Ela comentou com frieza enquanto colocava a máscara e passava os papéis para a mão livre. - Agora eu posso lidar direito com você!

Ela não esperou. Correu à frente e saltou, virando seu corpo até que ficasse de cabeça para baixo no ar. Com leveza ela pegou um dos ofuda, colou-o na lança e murmurou:

Desabroche, desabroche, princesa das águas, e deixe que suas pétalas façam o serviço em minhas mãos, kyu kyu nyo ristu ryo!— Energia branca recobriu a arma enquanto o pedaço de papel era consumido, esmigalhando-se no ar. O cabo encurtou-se e sua ponta se dividiu em três, tal qual uma lança jumonji. No instante seguinte ela se duplicou, e a garota empunhou a recém-formada com a outra mão, segurando o último ofuda com força entre os dedos. – Dança da lótus!

Caindo, forçou seu tronco para girar no ar, e seguiu o movimento com diversos cortes na pele do inimigo gigante, caindo agachada. Do tórax até o calcanhar, o akuma estava coberto de cortes superficiais, o triplo do que Ene havia lhe acertado.

“Sim, um oni...”, a garota pensou.

Eles se encontravam na parte posterior da hospedaria, para onde os quartos davam vista. Visivelmente ele deixara um rastro de destruição por onde passara, com jardins esmagados, terra espalhada e cercas quebradas. Ene se sentiu mal, pois realmente havia gostado do lugar.

— Você é um inseto! – Ele exclamou, irritado, e chutou Ene, a qual simplesmente girou com um passo ao lado para desviar, contra-atacando com o balançar de uma das lanças. Nesse ponto surgiram mais três cortes. – E eu vou te esmagar!

Ele puxou o pé e pisou com força no chão. A poeira levantando se acompanhou do estrondo, escondendo a sua pequena adversária.
“Por muito pouco não virei papa...”

Ela golpeou com força os calcanhares do oni e correu para fora de sua área de alcance. Tomou uma postura de luta baixa, com as lanças afastadas.
“Mais resistente do que pensei... O que posso fazer?”, ela se perguntou, sem desviar os frios olhos frios dele.

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“É mais fácil dizer o que não dói do que o que dói...”, Ikari pensou, estatelado em uma parede quebrada, sem se levantar.

Ele levantou seu punho e o encarou.

— Foi mal, Hijimi-sensei, sua técnica não saiu certinha...

Murmúrios se formavam à sua volta. Youkai de todas as formas e tamanhos aos poucos saíam de suas casas para ver do que se tratava o barulho. Alguns perceberam o enorme oni algumas quadras dali e se assustaram.

— De novo não... – Comentou um homem cuja cabeça flutuava, sem pescoço.

— Nesse ritmo vamos ter de abandonar o vilarejo... – Uma senhora com o rosto de doninha comentou, preocupada.

— Onde diabos estão os onmyouji?! – Exigiu uma mulher verde com galhos em sua cabeça. Ela carregava uma criança de colo que chorava. – Será que não sobrou ninguém que possa nos ajudar?

— Moço, cê tá bem? – o rosto de um garotinho surgiu à sua frente. Seu corpo estava no canto da sala, ligado à cabeça por um pescoço exageradamente longo e flexível.

Ikari encarou um pouco antes de responder.

— Eu tô, garoto... – Ele levantou, se limpou, e continuou falando – Pode deixar, eu vou dar um jeito nisso!

Quando ele fez tal afirmação, acabou observando os pais do garoto, ambos o encarando. A mãe enrolava seu pescoço ao redor do corpo do pequeno de forma defensiva, e seu olhar exprimia preocupação. O pai, já calvo e com um bigode cheio, o encarava com desaprovação.

— É... Pode contar comigo quanto ao perigo... Dos... Akuma, é. – Ele tropeçou com as palavras enquanto se encaminhava para fora – Foi mal pela parede!

Uma batida seca contra o solo ecoou à distância, de forma ritmada, chamando a atenção do rapaz. Mais e mais se juntaram à ela, junto do som de algo de arrastando e risadas debochadas. Os youkai ao redor de Ikari pouco à pouco perceberam também, e o medo foi se espalhando. Alguns correram de lá, enquanto outros buscaram se esconder em suas residências. O barulho de objetos se arrastando levava a pensar que estes tentavam formar barricadas.

— Bom, parece que tá na hora de eu fazer meu trabalho... – Ikari buscou dobrar a manga, só depois percebendo que isso não daria certo com o kimono da hospedaria, então simplesmente passou a mão no cabelo, penteando-o para trás. O cabelo solto às costas o incomodava, mas não se deu o trabalho de lidar com isso. – Vamos assim mesmo...

Um sorriso se abriu em seu rosto.

Um trio de oni, bem menores que o primeiro, ainda que ameaçadores com seus dois metros e meio de altura, se aproximava. Dois deles tinham a pele vermelha e um deles era azulado. Todos trajavam peles de tigre, um dos vermelhos como tanga e o outro como uma capa, cobrindo duas genitálias com outro tipo de pano. O azul, ao centro, a usava como uma blusa que só lhe cobria metade do tronco, prendendo-se em apenas um dos ombros, complementando com uma calça esfarrapada.

O de tanga carregava desleixadamente um kanabô proporcional ao seu tamanho, do qual brotavam diversas esferas metálicas menores e o azul trazia consigo um pedregulho apoiado nos ombros.

Eles riam, com seus dentes protuberantes roçando uns nos outros. Um dos vermelhos coçou seu cabelo calvo com uma de suas enormes unhas negras e retirou uma lagarta, jogando-a na boca no mesmo instante. Seus companheiros riam mais.

“Que nojo...”, pensou Ikari.

O garoto respirou fundo e levantou os braços na altura do rosto com as costas da mão para fora, firmou sua base com as penas. Lentamente se permitiu preencher o corpo com o Reiki, tomando conta para que não houvessem desperdícios.

“Ok, eu dou conta...”, tentou se convencer enquanto seu sorriso tremia.
— Oh, eu sinto um carinha diferente! – um dos vermelhos soltou, balançando seu kanabô ao se aproximar.

— Tem cheiro de onmyouji, tem cheiro de exorcista! – Complementou o azulado, trocando o pedregulho de ombro.

— E fede! – Finalizou o terceiro.

“Mas eu tomei banho agora há pouco!”, Ikari reclamou em pensamento, lutando contra a vontade de conferir suas axilas. “Pera, eles tem cheiro de esgoto. Tão querendo falar de quem?”

— Então vamos nos livrar logo dele! – Exclamou o primeiro, levantando seu kanabô e investindo para a direção do rapaz.

A arma caiu na direção de Ikari com violência, mas ele não se afobou. Desviando o pé da frente um pouco para a lateral, apoiou-se nele e girou o outro por trás, devolvendo um chute circular energizado. O porrete do akuma passou quase raspando em suas costas conforme seu calcanhar se chocava com o flanco desse.

Ele percebeu uma expressão de dor na face do monstro, mas não pareceu o bastante para abalá-lo. De tão perto a diferença em altura chegava a amedrontar. Ikari forçou mais um sorriso confiante, que logo desapareceu quando o oni moveu-se novamente. Girando o corpo em um movimento bruto, ele arrastou o kanabô de onde estava e chocou contra as costas de Ikari, arremessando-o na parede de outra casa. Ele não conteve o guincho de dor.

De bruços no chão, não teve tempo para respirar enquanto a rocha do azul foi lançada em sua direção. Ele usou os braços como impulsou e rolou para trás, observando a pedra, à sua frente, atravessar a parede de uma casa.
— Parece um macaco! Não para quieto! – Exclamou um deles.

— Pode vir. – Ikari apenas lhe respondeu isso. A confiança novamente enchia seu corpo e lhe deixava eufórico.

Assim que seus inimigos começaram a se mover, ele não perdeu tempo e investiu. Pegando-os desprevenidos, saltou horizontalmente e afundou a barriga de um dos vermelhos com um potente soco. Percebendo que não fora forte o suficiente, imediatamente recitou:

Senhor da pólvora, dai-me a força imparável de um canhão para destruir a muralha que se impõe, kyu kyu nyo ritsu ryo! Canhão aríete!

“Agora vai!”, gritou em pensamento.

Tal como mais cedo, assim que o ideograma de “explosão” surgiu, ele o socou e disparou uma onda de choque com um estrondo. Agora pareceu-lhe que infligira certo dano, empurrando o inimigo alguns metros e forçando um vômito sanguinolento.

“Não, ainda não parece certo...”, Ele reclamou consigo mesmo. “Será que preciso de um ofuda?”

Sentiu um ataque se aproximando pelas costas e abaixou-se por reflexo. Quando viu que era um chute, forçou o corpo a girar e acertou o tornozelo do outro pé. Mesmo que não tivesse força o bastante, o ataque serviu para desequilibrar o inimigo e, após o garoto se levantar rapidamente, derruba-lo com um chute frontal.

— Não dá pra continuar assim... - Ele estava ofegante. Dois usos do "canhão aríete" o deixaram exausto além do que esperava. - Vamos mudar a estratégia!

"E eu não to numa posição muito legal...", pensou ao perceber que estava cercado.

— Seu filho da puta, eu vou te esmagar! - exclamou um dos oni, lançando um soco em sua direção.

A guarda de Ikari se abriu. Deixou as palmas das mãos viradas para seu oponente e deixou a base mais larga. Quando o ataque chegou, ele passou por baixo, apoiou seu ombro no corpo do oni, segurou firmemente em suas roupas e se virou. Ao fazer esse movimento forçou o Reiki a circular em todo o seu corpo para energizar o golpe.

No segundo seguinte o maior passava por cima da cabeça do rapaz, chocando suas costas com força no chão. Não teve tempo de agir direito, outro golpe se aproximava, dessa vez com um pedaço de viga arrancada pelo oni azul. O golpe foi desajeitado, e aproveitando que o monstro estava parcialmente virado, Ikari saltou para suas costas e prendeu seu pescoço em um estrangulamento.

"Merda, é largo demais...", ele pensou. Não encontrando apoio no braço, segurou o golpe com as pontas dos dedos.

— Dos cinco grandes estilos do Punho do Crisântemo... o shuai jiao da víbora! - ele exclamou, apertando ainda mais o pescoço do oni.

Ele se debateu e salivou, mas o menor não folgava um milímetro sequer. Era uma sensação desconfortável aplicar um golpe como este, mas ao menos tinha certeza de que o inimigo estava mais desconfortável ainda.

"Ainda sou um iniciante nesse subestilo, mas vai ter de servir!", pensou com nervosismo enquanto os outros.

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"Isso já está me cansando...", Ene pensou analiticamente.

De fato, seus ataques com a "dança da lótus" não eram profundos. Isso era frustrante.

O gigante verde estava coberto de feridas e seus olhos exprimiam fúria. Ele golpeava desenfreadamente na direção da garota, a qual sempre aproveitava uma brecha em suas esquivas para contra-atacar com os cortes triplos de suas lanças.

Com graça, pousou no ombro do oni e cortou-lhe o pescoço.

"Tch!", ela pensou ao ver outro trio de lesõesl eves surgirem, "Parece que eu escolhi mal minha arma... Guardo o ofuda para necessidade ou arrisco trocar agora?"

— Você é o chefe? - Ela o interrogou - Quantos vocês são? Onde estão os outros?

— É claro que eu sou o chefe, vadia fujona! Não consegue perceber só de olhar? - Ele deu um tapa no próprio ombro, forçando Ene a saltar. Surpreendida com a velocidade do inimigo, seus olhos se arregalaram conforme ela foi pega no ar.

Pendurada pela perna direita, seu kimono caiu parcialmente, revelando mais do que ela se sentia confortável.

"Vou cortar o tendão. Ao menos isso eu consigo!", ela ameaçou forçar seu corpo para cima, girando um dos braços na direção do pulso. Seu movimento foi interrompido pela dor aguda que preencheu sua perna presa. Não conseguiu conter o grito que se acompanhou, mudando completamente sua expressão por trás da máscara.

O oni percebeu. Ele abriu o sorriso e, lentamente, apertou mais. A dor não parava. Pelo contrário, ela era cada vez maior. Ene mordeu o próprio lábio para evitar pensar em seus ossos se esmigalhando. O akuma se divertia com o olhar vidrado por detrás da máscara de tigre.

— Até que eu não estou com tanta fome, acho que posso dar você pros rapazes comerem. Faz uns dias que eles não comem, e carne de yokai não tem gosto bom... A gente gosta é de carne de humano...

Ele esticou uma língua maior que a garota para lambê-la. Uma quantidade grotesca de saliva escorria dela enquanto fazia movimentos sinuosos em sua direção. Ene fincou sua lança esquerda na ponta e, com a direita, arrancou um pedaço dela. No instante em que o monstro rugiu de dor, percebeu que sua mão se afrouxou. Ela forçou seu tronco para cima e cortou os dois últimos dedos que a prendiam.

Em queda livre no ar, desceu girando e rasgando o monstro em uma única direção. Concentrou a aura que lhe cobria como uma silhueta nas lanças e produziu cortes ainda mais profundos. Dessa vez caiu com força no chão, e ainda que tivesse jogado seu peso na perna boa, a dor profunda subiu da planta do pé direito até a cabeça. Usando uma das lanças gêmeas para se apoiar, acalmou seu olhar e o dirigiu para o oni.

— Hehehe... - Ele riu, cobrindo a boca. - Agora quero ver como vai fugir!

Ela percebeu o sangue escorrendo de sua boca, misturando-se ao dos cortes pelo tronco. Olhou ao redor e não viu uma pessoa sequer. Ouviu alguns gritos, mas estavam um pouco distantes.

"Me concentrei demais e não prestei atenção ao meu redor...", repreendeu a si mesma. Ela girou as lanças em conjunto e, com um leve brilho branco, elas se combinaram e retornaram à forma padrão. "Espero que a área esteja vazia, eu ainda não sei controlar isso direito...".

Ela apoiou-se com uma das mãos na lança e preparou o ofuda com a outra.

— Cansei de arrodeios. Agora vou partir para o abate. - Disse de forma calma, mas audível.

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Ikari deixou escapar um um grunhido quando foi espremido contra a parede. Com a enorme mão o segurando pelo pescoço, ele só conseguia se debater, sem realmente causar dano ao oni azul.

— É bom, né? - disse o maior, apertando Ikari ainda mais - Eu nunca provei um humano estrangulado, que gosto deve ter?

"Desgraçado...", Ikari pensou, com cada vez mais raiva. Sua pupila parecia inconstante, estreitando-se horizontalmente e esticando-se verticalmente para, logo em seguida, voltar ao normal.

— Olha só o que eu achei! - um dos vermelhos exclamou, e Ikari arregalou os olhos em horror. Ele pegara o garotinho do pescoço longo.

— Nãããão! Solte meu filho! - O pai gritava de uma certa distância, segurado por outros yokai. Eles suplicavam para que não fosse, fazendo o mesmo com a mãe.

Por um pequeno instante, Ikari viu os olhos do pai se encontrarem com os seus em uma súplica silenciosa. Ikari olhou para o garoto, o qual retribuiu da mesma forma.

"Eu... Sou fraco..."

— Isso estica quanto? - o outro oni pegou o pequeno pela cabeça e começou a afasta-la do corpo, esticando seu pescoço. - Estica, estica!

— Para! - A criança chorou. Seu pescoço já não esticava mais, mas os oni continuavam forçando, ainda que devagar para não mata-lo de uma vez. - Mãe, pai!

"Eu posso ser fraco... Mas não suporto mais ser inútil...", Ikari cobriu seu corpo com o Reiki vermelho flamejante enquanto lutava para se soltar da mão do akuma.

A criança chorava, muito, como qualquer criança choraria.

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Uma lembrança se passou na mente de Ikari, ainda que um pouco borrada. Na varanda de uma enorme casa ao estilo japonês, um garotinho e uma garotinha, esta com um kimono branco e este com um verde, sentavam-se. As pernas de ambos balançavam inconscientemente.

"Por quê ce tá sempre zangado?", a voz da garotinha soou.

"Eu não to zangado!", dessa vez foi a voz do garotinho.

E o diálogo continuou, conforme mais lembranças vinham.

"Tá sim! Toda hora que eu venho falar com ocê, ou cê tá chorandu ou tá zangado!"

"Sai de perto de mim! Eu não quero falar com ninguém!"

"Ah, esse sou eu...", o Ikari de agora pensou enquanto lembrava de suas lágrimas desse momento.

"Você é muito estranho, garoto...", a voz da garotinha retomou.

"E essa era a Ene...", mais uma vez afirmou sobre a lembrança.

"Eu não sou estanho! E eu já disse que não tô irritado!"

"Mas eu nem falei de novo que você tava irritado! Se bem que você tá sim, garoto!"

"Para de me chamar de garoto! Eu tenho nome! Eu eu não to irritado... Eu só... Tô com muita raiva!"

"Tá, calma! Você nem quer dizer o seu nome, como é que eu vou te chamar então?!"

O outro deu uma pausa, envergonhado.

"Eu não lembro do meu nome..."
"Cê é mesmo estranho...", ela o observou como uma gatinha curiosa.

"Cala a boca, você quem é!", ele retrucou.

"Ikari!", ela disse, quebrando a linha de raciocínio do pequeno Ikari.

"Como é?!"

"Bem, você tá sem nome, né? E você disse que tá sempre com raiva, então eu vou te chamar de Ikari! Não é tão estranho... Ou é?"

Ele fez outra pausa.

"É, acho que é um nome normal..."

"Decidido, agora você é Ikari!"

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"Ikari... Esse nome me acompanhou desde então. Um presente que constantemente me lembra do arrependimento, da mágoa, do ressentimento daquela época..."

— E eu jurei que jamais tornaria a viver daquela forma! - Ele exclamou, com sua pupila se tornando totalmente reptiliana.

Seu Reiki concentrou-se nos braços e, com um único movimento, soltou-se, quebrando os dedos do oni. Na hora em que tocou no chão não deu tempo para o inimigo reclamar da dor, preparando um soco com toda a energia que pôde juntar.

— Saia da minha frente!

Concomitante ao seu movimento, a aura vermelha flamejante se aglomerou em seus antebraços, tomando forma. Assim que o soco atingiu o oni, a mão de Ikari afundou em sua barriga e, em seguida, ele se desintegrou em tinta, tal qual outros akuma fariam.

Quando parou para olhar, faixas negras cobriam desde seus dedos até o fim do antebraço. Ele fechou e abriu os dedos com cuidado, e sentia como se nada limitasse seus movimentos. Ele também se sentia muito mais forte.
Mais uma vez ele passou a mão no cabelo, empurrando sua franja para trás, e abriu um sorriso.

Armamento espiritual: Desperte, Ikatteiru Ryu!— As palavras se formaram naturalmente em seus lábios. - Então, quem é o próximo?!

Parte disso era um blefe. Ikari já estava exausto, e o soco de agora pareceu drenar-lhe ainda mais as energias.

"Vamos devagar...", pensou, respirando fundo.

Os onis vermelhos se entreolharam, até que o que segurava o corpo do pequeno youkai sinalizou com a cabeça para o outro ir pra luta. Ele reclamou com o canto da boca, mas terminou por largar a cabeça e pegar seu kanabô.

— Vamos ver como você se parece com a cabeça esmagada! - Ele disse, correndo violentamente com sua arma.

A clava de metal desceu em um golpe diagonal, mas Ikari desviou sem que saísse de sua postura de boxe. Logo em seguida ele começou o contra-ataque: Um direto de direita, uma sequência de jabs com a esquerda, finalizando com um gancho na lateral esquerda, um liver punch.

O oni ficou com a postura instável e seu rosto sinalizou que ele quase vomitara com a sequência.

"Vamos fazer um teste...", Ikari pensou. Ele girou por trás e, com a perna de trás, lançou um chute que o arremessou longe. "É, pelo visto também funciona nas pernas..."

O inimigo nada falou. Apenas grunhiu e partiu para outro ataque. Dessa vez usou todo o peso de seu corpo para girar o kanabô, sem deixar brechas para Ikari desviar. Com um soco na direção contrária, ele parou o ataque sem sentir nada. Com um chute ainda na arma, tentou levantar a guarda do akuma. Funcionou, mas Ikari sentiu claramente a dor na sua canela.

O vermelho tentou retomar o controle, baixando seu porrete em um ataque vertical. Ikari, sem se preocupar, tomou sua postura mais solta e explodiu o oni com um upper no queixo.

"Falta um..."

— Espera! - ele gritou.

Ikari não esperou. Saltou e, girando, aterrissou um chute com o calcanhar no centro do rosto. O golpe foi efetivo, visto que, na mesma instante, ele também se desfizera em tinta. Largando o garotinho.

— Ai, merda... - Ikari sentiu as pernas falharem ao aterrissar.

Por ter gasto energia demais durante a luta, ele estava exausto. Suas pernas estavam bambas e ele não conseguiu parar a inércia do movimento, dando alguns passos até parar com a cara na parede à sua frente.

Enquanto se recuperava, apenas escutou passos se aproximando. Quando se virou, viu uma roda de youkais ao seu redor, nas mais variadas formas e tamanho. Eles agradeciam enquanto o ajudavam a levantar.

— M-muito obrigado, senhor onmyouji! - a mãe do garotinho o agradecia, abraçada com ele.

Ikari, apoiado em uma cabeça enorme de um olho só, demonstrou surpresa, apesar de não estar certo do porquê. Ele sorriu, dessa vez com leveza, levantou o polegar e disse:

— Disponha. Apenas estou fazendo meu trabalho!

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O pé gigante quase a esmagou. Lutando contra a dor, Ene saltou para trás e, por pouco, não caiu. Poderia muito bem usar o ofuda para estabilizar a perna, mas precisaria dele, ou não conseguiria realizar um golpe decisivo. Isso se surgisse uma oportunidade.

— O que houve? Não ia vir para o abate ou algo assim? Cadê aquela bravura toda? - O maior provocou.

Ela não se abalou. Apenas manteve-se desviando tão bem quanto podia, atraindo o oni.

E por um instante era como se a dor tivesse passado. Seus movimentos estavam mais naturais, seu instinto não deixava espaço para dúvidas. Ainda que não tivesse consciência disso, seus olhos por trás da máscara tinham pupilas felinas.

"A oportunidade vai surgir... Agora!", ela apenas soube.

Com um salto, desviou de um chute. Ela ouviu o barulho de madeira se quebrando quando aterrissou em um telhado. Olhando para trás, percebeu o gigante com o pé preso dentro de uma casa. Não iria durar muito, apenas o bastante.

Voe, voe, voe, cortando os céus, rápido, belo, indomável. E leve consigo os ventos, de norte a sul e de sul a norte, com a graça de Shinatsuhiko, o Fuujin. Que seus obstáculos sejam apenas nuvens e que o bater de suas asas as ultrapasse. Exerça seu direito de caçador, ave de rapina, rainha dos céus! Kyu kyu nyo ritsu ryo!— Ela colou o ofuda em sua lança, e dela surgiu um clarão. Tal como seu feitiço anterior, ela começou a mudar de forma, alongando-se. A lâmina em sua ponta também alongou-se e alargou-se, e logo abaixo dela cresceu um par de asas. O clarão se solidificou, mas a enorme arma que permaneceu ainda era branca e clara. - Execução da águia!

"Não tá tão bom quanto o do papai ou da nee-san... de qualquer forma, só tenho um uso, não posso errar!"

Jogando todo o seu peso para a frente, arremessou a desproporcional lança. Como se tomasse vida própria, suas asas cresceram ainda mais. Assim que a ponta atravessou o peito, essas cortaram-no horizontalmente na mesma altura. A arma continuou seu voo, devastando as casas da rua pela qual passava, cortando e estraçalhando a madeira em seu caminho. O oni lentamente se desfez em tinta enquanto Ene, na mesma velocidade, caía para trás.

Ainda cheia de adrenalina se apoiou e retirou a máscara para respirar melhor. Quando perebeu toda a destruição que causara, seu rosto se contorceu em um desespero exagerado.

"Awawawawa, espero que ninguém tenha sido atingido..."

— Pessoal, me desculpem! - ela gritou antes de cair para trás, exausta.

==========

— Entendo... Então conseguimos mesmo concluir a missão... - Ikari comentou, já com suas roupas casuais no trem de volta.

— Sim, o relatório inicial dizia que eram quatro ao todo... - Ene respondeu, cansada. - De toda forma, estou orgulhosa! Usar um armamento espiritual é incrível! Você mostrou quem é que manda, Ikari!

— Ah, quê isso... - Ele passou a mão na nuca, constrangido - Sua destruição foi muito mais incrível, Ene!

— Ei! - Ela reclamou, levantando-se para dar-lhe um soco no braço. A dor na perna, porém, a fez parar no meio do caminho...

Ikari fez uma expressão preocupada.

— Tem certeza de que está tudo bem?

Ela sinalizou com a mão para não se preocupar.

— Acontece bastante... Diria até que fomos sortudos...

— Entendo... - Ele continuou - De qualquer forma, esses oni eram bem fortes, ein?

— Pois é... Uma pena que eles não eram "verdadeiros oni"... Se bem que estaríamos em apúros se fossem...

Ikari estava meio distraído, mas algo nessa última frase chamou sua atenção.

— Pera, como é? "Verdadeiros oni"?

— Bem, acho que se fossem, Kamui-san não nos deixaria pegar essa missão...

— Espera, explica isso direito. - Ikari pediu, recuperando a atenção da rosada.

— Hm? Ah é, tem vezes que eu esqueço que você não conhece muito desse mundo, foi mal... - Ela dirigiu um olhar pensativo para a janela - Os verdadeiros oni são... Bom, podemos dizer que são os principais integrantes do exército do Maou...

==========

Em uma floresta sombria, distante de onde os jovens estavam, um onmyouji rastejava.

— Não, por favor, pare...

— Não, não, não. Entrou no jogo, tem de jogar até o final! - disse um voz masculina jovial - Seja razoável, eu disse que você só precisava aguentar trinta segundos!

— Eeeeeeei, Aobaaaaa! - Uma voz feminina entediada soou pouco acima do onmyouji. - Se você só vai ficar falando dá logo ele pra mim...

O onmyouji olhou para cima e, deitada em um galho, viu uma mulher. Não, à uma primeira vista ela parecia uma mulher normal, mas ao observar com mais calma notava-se que não era bem assim. Ela vestia uma blusa vermelha de kimono simples, sem mangas, e calças brancas, cujas bordas estavam presas no meio do tornozelo por um elástico vermelho. Nada prendia suas roupas na cintura, revelando um pouco a pele pálida de seu quadril. Um curto cabelo rosa claro, quase branco, estava solto, com mechas irregulares caindo pelo rosto. Deste, brotava um par de chifres vermelho-sangue, perfeitamente lisos e simétricos. Seus pavorosos olhos pareciam brilhar no escuro, com esclera negra e pupila totalmente vermelha.

— Akane, minha querida irmã... Que eu saiba, concordamos que hoje seria o meu dia de caçar...

— Você enrola demaaaaaaais! Sério, me deixa esquertejá-lo, só um pouquinho?

Das sombras, alguém caminhava pacientemente até o homem. Ele vestia um sobretudo azul, aberto à frente. Por dentro ele trajava uma camisa social branca, com um colete negro e calças de mesma cor para combinar. Seu cabelo de um azul quase branco estava bem penteado para trás, e seus olhos, tal como o da outra, tinham as escleras negras, mas sua pupila brilhava em azul. Seu rosto exibia um sorriso debochado com dentes pontudos. Seu semblante, por algum motivo, lembrava um tubarão.

— Akane, você é do tipo que só engole tudo de uma vez... Você bem que poderia aprender a apreciar... - Ele disse enquanto observava o onmyouji levantar os braços para se defender - Até o último momento!

Ele pisou no homem com força e um pequeno jato de sangue manchou seu rosto. No mesmo momento os braços jaziam imóveis no chão.