- Não gosto daquele cara. Vocês duas estão me ouvindo? Fomos assegurados de que ele não era espião nenhum, mas a presença dele me preocupa...- Grigory nos disse. Em todos os nossos 15 anos de convivência, nunca o tinha visto agir daquele modo com ninguém. Talvez a influência de meu irmão sobre ele estivesse começando a pesar. Pesar demais para o meu gosto. Claro que aquilo me deixava desconfortável, mas não podia fazer nada. Não pedi para que ele invadisse a apresentação, nem para que fôssemos intimados a cuidar dele!

-Você queria que eu dissesse o que, exatamente? "Não Anna, não podemos cuidar dele. Sei que somos os mais capacitados, mas se o Oleg descobrir ele nos trucida,e meu pai também. Ah, e o Grigory está com ciúmes." Gostou mais assim?- Repliquei, fazendo que Anya explodisse em risos ao meu lado. Grigory fuzilou-me com seus olhos claros e suspirou, irritado, passando a mão em seus cabelos cor de labareda.- Não posso dizer que estou confortável com tudo isso. Não, não estou... Na verdade, está para ser a experiência mais perigosa de que participei... Mas pretendo passá-la ilesa, e penso que vocês também.

- Ele não me pareceu uma má pessoa... Conversei um pouquinho enquanto o levava até a sala suja... Por isso cheguei atrasada à nossa reunião...- Anya comentou, enquanto eu trançava seus escuros cabelos.

- E poderia ser seu parceiro no trapézio, não acha?- Ela virou-se de súbito para mim.- Agora você estragou minha trança.

- Não, não Lana, não invente! Aliás, quem te disse que ele é um trapezista?- Grigory invadiu, com uma sobrancelha levantada.

- As mãos dele me disseram, oras. E não me olhe desse jeito. E não pensem besteiras.- Tarde demais. Anya caíra na risada novamente, e ele estava mais incomodado do que nunca.- Quando ele me serviu de apoio ontem, eu segurei em sua mão. O calejamento é o mesmo. Como isso não vai ser o bastante para provar, por razões que não pretendo levantar... Mas que a mente poluída de vocês já deve ter captado... O porte físico dele também é de trapezista. Satisfeitos?

Eu sabia que eles não iriam discutir, afinal, eu fora treinada para perceber os mínimos detalhes. Um corpo frágil se compensa com uma mente afiada. Era o que meu tio sempre criança, durante o inverno, eu pouco saía de casa, porque adoecia com facilidade. Então, ficávamos jogando xadrez, ou líamos livros juntos. Grigory, Oleg, Anya, Mikhail e eu adorávamos ouvir as histórias que ele contava. De cavaleiro, rapidamente passava a vilão, e até mesmo à princesa assustada. Foi um dos maiores contribuintes ao desenvolvimente de meu gosto pela atuação, junto com minha mãe. Meu pai gostava de teatro e de música, não posso negar... Mas sempre acabava dormindo antes do fim das peças, assim como meu irmão, Oleg. Depois de me ensinar a jogar xadrez, meu tio passou a dar-me de presente em todos os meus aniversários uma peça nova, esculpida por ele mesmo... Até o dia em que desapareceu.

Não tive notícias dele por muito tempo, até algumas horas atrás, quando fomos chamados à sala de Anna. Ela entregou-me um envelope, do qual retirei a última peça que me faltava, e um bilhete.

Segue em anexo o rei. Ele pode parecer a peça mais inútil, mas proteja-o bem, e você ganha o jogo.

- Sim... Mas não iria dar certo... Eu não sou boa...- Minha amiga respondeu, assim que se recuperou do ataque de risos.

- Eu concordo.- Mikhail falou, provocando a irmã.- Mas não se preocupe, eu te amo mesmo você sendo ruinzinha na sua especialidade.

- Ninguém te perguntou nada!- Anya revidou, exaltando-se. A diversão de Mikhail sempre fora fazê-lo, atingindo seu objetivo com extrema facilidade. Originalmente, ele era colega de Oleg, e o ajudava nas rondas, das quais Grigory participava ocasionalmente, mas parara há alguns meses. Estavam ficando... pesadas demais para seu gosto. Foi então que passou a apresentar-se conosco periodicamente, com sua corda-bamba improvisada. Aproximou-se da irmã e deu um tapinha em suas costas.

- Você supera... Pensando bem, talvez esse cara tenha sido enviado para te ensinar a fazer algo mais do que cair na rede de proteção.- Ele gargalhou, deixando-a ainda mais nervosa.

- SAIA AGORA DO MEU QUARTO SEU IDIOTA! ESTAVA TUDO ÓTIMO ATÉ VOCÊ APARECER.

- Nossa, quanto amor fraterno! Eu já estava indo...- Ele riu ainda mais.- Vou sair, se mamãe perguntar, diz que eu volto tarde, vou ajudar hoje à noite. Hmmm... Grigory, é melhor que vocês dois voltem pra casa antes do turno da noite... Evita problemas.

Concordamos com a cabeça, e fomos embora não tão depois. Grigory iria, como de praxe, me deixar em casa antes de ir para a sua. Logo ele teria de voltar a São Petersburgo, suas férias estavam acabando. Mas tudo dependia do tanto que iria demorar até que a neve diminuísse. Logo chegamos, e ele foi convidado a entrar e ficar para o jantar por minha mãe, convite que aceitou após algumas tentativas frustradas de resistência.

- É tão deprimente... Estou ficando velha... Ontem mesmo vocês eram tão pequenos... Lana não cresceu muito, tenho de admitir, mas não posso dizer o mesmo de você, mocinho. Daqui a pouco teremos de trocar a porta para que você possa entrar sem ter de se abaixar!- Ela afirmou, brincalhona.

- Mãe... O papai está aqui?- Perguntei. Era melhor que ele não estivesse quando eu comentasse o bilhete, e o acontecido.

- Saiu há pouco... Foi convocado para uma reunião... Por quê?

- Hm... Eu recebi um presente hoje... Do meu tio.

A sala de jantar ficou silenciosa por alguns instantes. Mamãe levantou-se e foi até a janela. Fitou as árvores cobertas de neve e murmurou algo sem que pudéssemos ouvir.

- Como ele está? Anna deve ter ficado feliz de saber alguma coisa dele...

- Não sei muita coisa... Ele não escreveu muito...

- Como é que esse papel chegou até vocês? Correio não pode ter sido, nada chega lá sem passar pelo controle...- Nada mais do que a verdade; Tudo era fiscalizado ants de chegar às mãos dos destinatários.

- Não sei...- Tomei um gole de água. Na verdade, não seria fácil de explicar tudo. Precisava medir cada palavra. Cada movimento, como num jogo de xadrez.

- Filha. Vocês sabem. Podem falar. Sei que não foram meios convencionais. Não seria do feitio de meu irmão.- Ela estava certa mais uma vez. Meu tio sempre fora imprevisível em tudo o que fazia.

- Ele mandou um acrobata para cá... E veio com ele. Ninguém revistou nada.

- Hmm... Entendo... Diga-me...Que peça ele mandou dessa vez?

- O rei... Era a última que me faltava. Por quê?

- Por nada... Sou curiosa! Meu irmão te manda algo e você quer suprimir informações de sua própria mãe? Isso não é educado, não acha Grigory?- Ela dramatizou. Às vezes eu me perguntava quem seria a mãe neste recinto...

- Ah... Dona Sonya... Prefiro não me meter em assuntos de família... Nunca dá certo.- Ele riu, levantando-se e pegando o trench coat no cabideiro.- Acho que deu minha hora... Já deveria estar em casa há algum tempo.

- É uma pena... Mas entendo... Ande na luz, já está escuro.- Ela disse, enquanto se despedia.- E diga ao Oleg que maneire um pouco se o vir.

Entrei em meu quarto, e coloquei o rei em seu lugar no tabuleiro. Faltavam algumas peças, mas eu as tinha, só não estavam em seu devido lugar... Bem, na verdade estavam. Uma torre, estava com Grigory, um dos bispos, com Anya, e um dos cavalos, com Mikhail. Como éramos todos muito próximos, meu tio havia feito uma de cada peça dupla para mim, e a outra para um de meus amigos. Assim, se estivéssemos longe uns dos outros, seria impossível de completar o jogo. Desse modo, nunca se esquecerão dessa amizade linda que vocês todos têm, que é insubstituível.

Então percebi que não demoraria muito até que finalmente, nos separaríamos. Grigory iria voltar para São Petersburgo, onde agora ele estudava. Fazia tão pouco tempo que ele voltara da China, e iria outra vez. Víamos Mikhail cada vez menos. Ele subira de cargo no Kremlin... Essa seria uma das últimas rondas de que participaria, e provavelmente, não teria mais tempo para nossas apresentações. Ficaríamos apenas eu e Anya... Não seria a mesma coisa. Mas é a vida. Se congelam os lagos, você aprende a patinar, e deixa tudo mais alegre.

Balancei minha cabeça. Não era hora de pensar nisso. Amanhã era um outro dia, e algo me dizia que iria ser um dos bons.

A luminescência de Virgem aumenta cada vez mais. Parece que o jogo vai começar.