Estava cada vez mais difícil viver sem ele. Meu garotinho. Aonde estava com a cabeça quando deixei-o ir? Geralmente, pais de adolescentes dariam tudo para se livrar dos prolemas que seus filhos lhes causam. Aaron não me dava problemas. Não como os outros de cujos genitores eu ouvia reclamações, ou como aqueles para os quais eu lecionava. O que mais me afligia era o fato de que ficaria totalmente no escuro até que ele voltasse. Nikolay explicara-me que era quase impossível que ele recebesse algo que eu mandasse, mesmo porque isso poderia ser prejudicial na situação. E, naturalmente, o inverso se verificava.

Sentando-me na mesa, ainda nutria uma esperança de que ele iria aparecer e me dar bom dia, sempre animado. Sentar-se-ia à minha frente, pegaria o bule de chá, colocaria um pouco em sua xícara. Depois, pegaria o mel e mediria exatamente duas colheres: uma a mais estaria muito doce, ao passo que uma a menos não bastaria. Se estivesse com pressa, esse ritual resumiria-se a uma xícara de café na metade e um croissant, que ele comeria no caminho. Mas essa visão iria demorar a se repetir.

Na academia, também não era a mesma coisa. O grupo parecia incompleto. De vez em nunca me perguntavam por notícias dele, notadamente Cynthia, por quem ele tinha um carinho de irmão, e confesso que passei a cuidar-lhe como mãe também, enquanto ela estava longe de sua família.

No caminho de casa, após passar por uma mercenaria, encontrei-me com Nikolay. No momento, quem eu menos queria. Não tinha o menor interesse em olhar para seu rosto, ou sequer ouvir sua voz. Por outro lado, minha vontade era dizer-lhe verdades. Que minha vida estava incompleta. Que queria meu filho de volta o mais rápido possível, e que ele teria de achar um jeito de trazê-lo, quisesse ou não.

- Se isso servir de consolo, eu conheço sua dor.

Mas o que era isso. Aquele homem achava que sabia alguma coisa sobre mim, e que podia sair falando besteiras aos quatro ventos? Quem ele pensava ser! Uma afronta.

- Você não sabe de nada. Não ouse dirigir-se a mim.

- Então não vai ao menos me ouvir?

- Não pretendo.

- Vietnã. 1968. Não me esqueço de fisionomias tão facilmente quanto eu desejaria. Foi um período torturante, aquele que passamos lá. Provavelmente não preciso entrar em pormenores com a senhora. Deve saber quase tanto quanto eu.

Sim. Nunca havia tido tanto medo quanto durante aquele período. Meu filho ainda era muito pequeno, e mesmo à contragosto, John teve de servir, e eu, desenvolver nervos de aço. Eram pouquíssimas as chances de contato. E o prognóstico apresentava-se cada vez pior para o nosso lado. Iríamos perder, era mais do que certo, mas aparentemente as autoridades recusavam-se a assumir, como é de praxe em toda guerra. Somos fortes, podemos tudo, destruiremos esses "comedores de arroz". Após anos, pelo menos para mim, não importavam mais os resultados. Eu só queria que aquilo tudo acabasse, e rápido. Mal o reconheci quando ele voltou. Alguns ferimentos aqui e ali... Era o esperado. Mas algo dentro dele mudara. O modo como me relatara o horror daquele tempo em que passara entre os dois países fixara-se em minha mente, de modo que uma simples menção, como um gatilho, acabou por desencadear todas as lembranças.

E agora, eu via outro homem cujos olhos já haviam enxergado tantas atrocidades quanto os de meu marido, apesar de terem estado em faces opostas da moeda.

- Estou ouvindo, mas, se não se importa, gostaria de ir para casa, então, seja rápido.- Respondi, mais rispidamente do que pretendia.

- Problema algum. Será um prazer escoltá-la até sua não tão modesta residência. Se for de seu agrado, naturalmente.

Então percebi que ele não desistiria tão facilmente. O que seria isso? Remorso? Pelo modo como ele não mantinha contato visual por muito tempo, senti que ele precisava falar. E educadamente, eu iria permitir.

- Naturalmente. Se não se importar então, poderia me ajudar com essas compras?- Ele balançou a cabeça em concordância, e tomou um dos pacotes que eu carregava.

Ele não tinha a constituição de um militar, nem de longe. Era forte, mas não parecia alguém para suportar as exigências de uma guerra. Ele era um ator, pelo amor de Deus! E então passou pela minha cabeça que isso poderia fazer dele pouco confiável. Eles são treinados para transparecer emoções externas a seus corações. E isso tornava tudo mais complicado.

Ao chegarmos, pedi que ele entrasse, seria indelicado não fazê-lo. Preparei um pouco de chá, outra tradição que o tempo não conseguira apagar de minha família. Ele não se sentou até que eu lhe desse permissão. Mesmo assim ele ainda parecia desconfortável.

- Sou toda a ouvidos. E espero que você goste de capim-limão.- Comentei, estendendo-lhe sua xícara. Ele tomou um gole, e sorriu.

- Obrigado. Pelo chá, e por me deixar entrar. Não estou mais acostumado a ser tão bem tratado desde que saí de casa.- E aquela tristeza novamente. De algum modo ele me lembrava meu fliho desse jeito.- Agora pode perguntar. "Nikolay, por que você não está lá?" Eu sei que você quer saber, e que todos também. Pergunte.

- Está bem... Nikolay... O que fez com que você fosse expulso?- Ele tornava-se cada vez mais intrigante. Cada palavra que eu dizia parecia ser uma adaga que transpassava seu peito.

- A coisa certa... E... Pode me chamar por outro nome?- Ele definitivamente era perturbado.

- Claro. Qual?

- Yuri Aleksandrovich. É meu nome. Nikolay Kolyenko serve para não ser relacionado à minha irmã. Afinal... A Rússia não gosta de crianças desobedientes. Ou pelo menos seus dirigentes não. Não me entenda mal. Tenho orgulho de meu país, mas não de quem o controla. Sabe, tudo é perfeito no papel, mas o ser humano invariavelmente deturpa o mundo, com sua intrínseca ambição. Ambição esta que coloca duas potências a ponto de destruir o mundo, quando poderiam estar agindo para melhorá-lo. Houve uma época que eu achava que tudo era justificável, que estaríamos abrindo a mente das outras pessoas. Mas ao ver toda aquela gente dizimada, minha vida mudou completamente. Eu percebi que não queria mais fazer parte daquilo. Então eu passei a desafiar as autoridades... Ajudando os estrangeiros. Conhece o ditado não é? Ninguém sai da URSS, não facilmente.

"Então eu fui banido pelos meus. Você deve estar se perguntando, se eu me arrependo. Gostaria de dizer que não, entretanto isso não é de todo verdade. E é por isso que eu precisava de alguém como eu. Sabe, seu filho e eu somos muito parecidos. Somos admirados por muitos, e não temos limites... Temos sempre a razão e a última palavra... Ou pelo menos pensamos assim, até que somos retirados convenientemente de nossa zona de conforto. E então precisamos mudar nosso modo de agir. Tentei fazer isso de uma forma menos penosa para ele, mas como lhe disse, somos muito parecidos."

- Então... Quer dizer que ele não era indisciplinado... Que ele não fez nada de errado... E está lá só porque você achou que deveria estar? Porque você é um louco e acha que é a melhor forma de educar um adolescente? Você tem filhos? Você tem alguma noção do que é isso? Essa angústia que estou sentindo agora? Você é um monstro.

- Tudo bem, pode falar, já me acostumei com a rejeição. Torna-se menos amarga com o tempo. Respondendo às suas desesperadas perguntas, não, não tenho filhos meus. Sim, Aaron era indisciplinado, pelo menos comigo, e o porque era óbvio. E, sim, tenho noção de sua angústia. E antes de despejar toda a culpa sobre mim, lembre-se de que a senhora e seu digníssimo marido aceitaram mandá-lo para a Rússia.

- Porque eu achei que era preciso! Ele estava distraído, sim, mas eu não achava ser nada demais, até que você reclamou e todos concordaram, inclusive John, mas eu não queria! E não você não tem noção nenhuma! Dê-me um exemplo! Qualquer um que seja decente, porque eu sinceramente não entendo o que você está fazendo aqui, o que ganha me fazendo sofrer?

- Não tive filhos, mas posso lhe dizer que já fui pai.- Não fazia sentido. Minha vontade era jogar todo o fumegante conteúdo do meu bule de chá sobre seus cabelos escuros, mas educadamente me contive.- Ela era linda. Delicada como uma flor, mas com uma visão de lince. Seria a arma perfeita... Se não fosse a hemofilia. Rosenthal, sabe? A mais difícil de se tratar, por ser totalmente imprevisível. Havia vezes que tudo corria normalmente, nada excessivo... Mas outras... Deixavam-na numa linha tênue entre a vida e a morte. Então ela ficava de certo modo isolada... Não, essa não é a melhor palavra. Fiéis amigos a acompanhavam, mas mesmo assim... Não era a melhor das situações.

"Um dia, ela me viu mexer em um tabuleiro antigo de xadrez, que eu havia encontrado no sótão. Ela ficou fascinada com aquelas peças e com o jogo em si. Não exitei em ensiná-la, e logo detectei sua habilidade excepcional no que dizia respeito a estratégia. Logo ela superava minha capacidade, a ponto de me vencer várias vezes sem muito esforço. Ela era como a rainha, a peça mais nobre do jogo. Movimenta-se de todos os modos pensáveis e impensáveis. Você deve saber melhor do que eu que um autor certa vez disse que mulheres são desdobráveis."

Sua voz e suas expressões transbordavam carinho enquanto ele a descrevia. Ele devia realmente amar aquela menina. Era uma pena... Que eles tivessem sido separados. Não. Maryann, não tenha dó. É isso que ele quer. Ele não iria me manipular.

- Deixe-me adivinhar a causa desse seu transe repentino: Não posso me deixar levar por suas lindas palavras em relação à sua sobrinha. Ele é um ator e está mentindo. Só quer me manipular, E o fato de ele ser Russo aumenta ainda mais a suspeita, portanto devo manter meus olhos bem abertos., ele come criancinhas... Acertei, ou você é melhor do que isso?

- Infelizmente o senhor acertou. Não sou melhor do que ninguém. Sou falha como todas as pessoas, e como vossa sapiência também o é.

- E está errada. Você assumiu seu ato, ao contrário da maioria que procuraria um modo de esquivar-se da repreensão. Só dispensaria a ironia, incômoda em demasiado. Agora, vamos ao que interessa. Seu filho estará seguro, lhe garanto. Está sob os cuidados das pessoas que mais amo: minhas irmã, sobrinha e esposa. Não há o que temer. Sei que será pedir demais, mas confie em mim, Maryann.- Disse, com lágrimas nos olhos e segurando minha mãos.

Respirei fundo antes de responder. Sentia que era o correto. Aquele homem... Era diferente de tudo o que já tinha ouvido sobre eles. Era... Humano. Dei-me conta, naquela tarde, de como era intolerante. Não apenas eu, mas todos que me rodeavam, assim como o eram os dele.

- Eu confio.