Esta é uma história como qualquer outra. Alguns diriam ser o destino; outros, que os homens deturpam o destino e escrevem sua própria história. Esta é uma história azul e vermelha, de liberdade e repressão, de amor e ódio, submissão e rebeldia.

Essa é a história daqueles chamados de tolos por lutarem por suas convicções, mesmo que isso lhes trouxesse severas conseqüências.

Essa é a história da águia que se firmou num ambiente hostil e do cisne que quebrou o gelo eterno para trilhar um caminho desconhecido.

Sou Fool, o espírito do palco. Permita-me guiá-lo nessa jornada através do tempo e do espaço.

Era uma vez...

Paris, 1980.

Neve. Muita neve. Estou correndo não sei do quê ou porquê. Meus braços estão pesados. Minhas pernas tornam-se dormentes. Estou entorpecido. Mas não paro. A neve me fere, mas não paro.

Por que não paro?

- Acorde, acorde príncipe encantado, está com sono?- Aquela voz de novo. Aquela criatura de novo. O Espírito do palco... Ninguém mandou minha mãe ler o Fantasma da Ópera para mim antes de dormir durante a minha infância, agora sofro as consequências. Virei-me na cama para deparar-me com aquele olho amarelo me fitando, o outro estava coberto pela máscara. - Vamos, levante-se dessa cama e vamos procurar umas garotas para eu espiar... E é claro, uma parceira de verdade para você...

- Você não tem algo mais útil para fazer não? Porquê você não as procura sozinho?- Respondi, ainda sonolento. Era a terceira noite seguida que eu passava com o mesmo sonho. Levantei-me lentamente e olhei o horário. E estou atrasado. É sempre assim. E justo no teste do siberiano mal encarado. Corri a vestir uma camisa e um paletó, estava ventando lá fora. Passei a mão em meus cabelos, não daria tempo de pentear. Peguei minhas coisas e corri.

- Para que tanta pressa, ele não morde. Ou você acredita nas histórias de que russos comem criancinhas americanas?- ele comentou, calmamente. Eu o estrangularia se pudesse nessas horas.

- Resposta dispensável, você não acha Fool? Tudo isso é culpa sua, não preciso nem dizer, não é?- Eu disse, ofegante. Ficáramos discutindo uma técnica sobre a qual ele não queria comentar no momento, mas insistia que eu precisava encontrar um parceiro para realizar.

Finalmente cheguei ao auditório designado. O personagem que eu deveria representar era, no mínimo, complicado. Seu nome era Alexei Ivanovitch, ou Veltchaninov, como o autor refere-se a ele durante a trama. Sua história era composta por dramas, uma doença que o acometia de vez em quando, levando o a crises que por pouco não tiravam-lhe a vida, e descobria que tivera uma filha com a esposa de um amigo, que voltara para infernizar sua vida. Tudo ótimo, muito fácil. Sabia cada fala de cabo a rabo. Até um sotaque russo meia-boca consegui aprender. Mas o que me esperava era digno de revolta.

- Cheguei! Posso subir ao palco? - Peguntei ao professor. Na realidade, nem o oficial ele era. O outro ficara doente e ele surgira como substituto. Foi expulso da URSS por razões que devem ser imperdoáveis. Aquela gente não faz essas coisas por menos.

- Não, senhor Brass. Não pode.- O eslavo comentou com sua voz soturna e calma.- Chamei-o pelo menos três vezes. O senhor não se manifestou. Onde está sua disciplina? Saiba que esse teste não se repetirá, e que o senhor está automaticamente reprovado. Alguma pergunta?

Eu não consegui dizer nada. Ele não podia fazer isso, podia? O que lhe custava deixar que eu fizesse a prova depois de todos? Apenas sentei-me numa das poltronas no fundo do auditório e fiquei a observar meus colegas a atuar. Claire tinha talento, e a personagem a favorecia. Ela era Belle, do famoso La Belle et la Bête. Sua atuação transparecia perfeitamente a jovem assustada pela Besta que encarcerara seu pai. E depois Cynthia, a Pequena Sereia, que se desfaz em espuma por não ter coragem de assasinar seu amado. Hércule amedrontaria a todos com sua interpretação de Drácula. E eu ficaria aqui... Reduzido ao cara que conversa com um espírito imaginário.

- Que cara é essa? Você não deveria estar ali na frente com todo mundo?- Jean me perguntou, com seu leve sotaque italiano. Escorreguei em minha poltrona e coloquei os pés sobre a da frente.

- Fui proibido de me apresentar.- Comentei, ajeitando-me novamente quando percebi que o russo me encarava com seus olhos cor de cascalho. Logo os testes terminariam e ele dispensaria a todos.- Você não deveria estar na sua aula?

- Sua mãe nos dispensou mais cedo. Ela acabou a teoria mais rápido do que previra. Não posso dizer que estou surpreso, pois todos ficam fascinados com sua explicação e não abrem as bocas. - Ele riu. Sim, minha mãe tinha essa habilidade, não poderia negar. - E agora, o que acontece?

- Para ser sincero amigo, nem eu mesmo sei...

Após o fim das aulas resolvemos sair todos juntos da academia. Hércule comentou que o meu carrasco teria ido conversar com a diretoria. Provavelmente era sobre mim, julgando pelo fato de ele também ter visto minha mãe na sala quando foi dizer ao pai que iríamos para a torre. Uma brisa boa soprava, alegrando meu fim de tarde. Subimos ao último andar, de onde se enxergava Paris em todo seu esplendor. Ninguém tocava no assunto, mas todos pensavam nele, o que tornava a atmosfera do nosso passeio, cujo propósito era esfriar a cabeça, tensa.

- O que... Vocês acham que vai acontecer agora? - Era Cynthia. Ela odiava esse clima, odiava o silêncio. Quando vim para Paris, devido à uma transferência do meu pai pelo consulado Americano, ela foi uma das primeiras a me ajudar, apresentando-me aos outros. Ela adorava o trampolim e vivia me apresentando técnicas novas. Sempre foi muito insistente, e foi quem me apresentou também ao trapézio.

- Foi bom? - A garotinha de cachos louros e olhos cor de mel perguntava, após realizar um lindo salto. - Você não estava prestando atenção né Aaron? Já cansou de me assistir, seu chato?- Ela reclamou, fazendo uma careta emburrada, que logo se dissipou ao perceber o que ele olhava. Um trapezista voava de uma barra a outra, sorrindo, como se fosse algo elementar. Ambos soltavam pequenas exclamações quando ele demorava a alcançar o outro trapézio.- Já entendi! Vou falar com ele, e ver se você pode aprender!- Ela exclamou, com os olhinhos brilhantes, arrastando-o para perto do jovem que descia.

- O quê? Você tá maluca, tá caducando? Eu nunca vou conseguir subir nsse troço direito! Eu não quero!- O menino replicou, ruborizado. Sim, ele tinha muita vontade, mas era inseguro demais para admitir.

- Vou te levar mesmo assim! E eu não tô caducando seu bobo, a gente só tem dez anos!- Ela mostrou-lhe a língua.- Senhor Alan, senhor Alan! Você pode ensinar o meu amigo? Por favooor?

Tudo o que ele queria fazer era ser um avestruz para enfiar a cabeça debaixo da terra.

- Quem? Ah, você? Não sei... Você acha que é capaz de aguentar? Não será um treinamento fácil.- O jovem francês respondeu, desafiando-o.

Eu a agradeço todos os dias por isso. O treinamento era duro, e não consigo contar quantas vezes me cortei ao cair de forma inadequada na rede de segurança da academia, mas não me arrependo. Pensando nisso que percebi a ausência do Fool... Onde teria ele ido? Claro que não tê-lo me atormentando era lucro, mas o fato dele não o estar fazendo era muito peculiar.

- Olha, eu não queria comentar nada, mas... Ouvi-los falando algo sobre sua indisciplina antes de entrar na sala para pegar as chaves de casa. Ele acha que você anda avoado, e não é o primeiro a dizer isso, pelo que eu entendi. Não gosto nem um pouco dessa situação. Se você quer saber... Eu me prepararia para o pior.- Hércule comentou, ajeitando seus cabelos cor de prata. Era filho do diretor da Academia, e um de meus melhores amigos. No começo, admito que não nos batíamos: ele era arrogante demais... e me assustava sempre quando pudesse. Quando ajudei ele com um problema certa vez, iniciou-se nossa amizade. Mas ele ainda gosta de me pregar peças de vez em quando.

- Isso é sério ou está brincando comigo, coelho Oswaldo? Porque...- Fui interrompido pela voz delicada de Claire, que continuou em tom ríspido.- Se for uma brincadeira, é de muito mau gosto, seu sem-graça.

- Se isso for uma peça, eu passo o dia inteiro vestido de palhaço amanhã. - Bom, com certeza não era. Ele se preocupava demais com sua imagem para fazer algo do gênero. Tinha de manter a fama de Drácula. Além do mais, não queria se complicar com Claire, por razões óbvias. Olhei a hora em meu relógio de pulso. Já bastava um atraso, não queria um outro.

- Pessoal, desculpe sair correndo assim, mas esqueci que tinha marcado outra aula com o Alan hoje. Tenho que atravessar a cidade em dez minutos. Dou notícias caso fique sabendo do veredicto.- Eu ri.- Boa Noite!

Perde-se a noção do tempo quando se está treinando. Cheguei em casa muito mais tarde do que esperava,já passara da meia noite, e encontrei minha mãe sentada no divã, me esperando.

- Mãe, o que a senhora ainda está fazendo acordada? Já falei para não se preocupar comigo... Eu estava treinando.- Ela me olhava de um jeito estranho, como se algo estivesse entalado em sua garganta. Ela apenas fez um sinal para que eu me sentasse no sofá defronte, como sempre o fazia quando tinha algo sério a dizer.- Dona Maryann, você está me assustando... O que aconteceu? Foi algo que aquele russo te disse não é? Eu não fiz nada, acredite em mim, por favor!

- Ninguém... lhe deu permissão para falar. Limite-se.- Ela me respondeu ríspidamente.- Tive uma conversa com Nikolay, Jacques, e com seu pai também. Foi difícil chegarmos a essa conclusão, mas percebi que você realmente passou a se comportar de um modo estranho de uns tempos para cá. Fizeram-me uma proposta, que eu repassei a seu pai, e concordamos que o único modo de te corrigir seria retirá-lo de sua zona de conforto.

Nesse ponto ela já não mais me encarava. Provavelmente eles tinham resolvido me colocar no exército. Meu pai nutria essa ideia há um tempo. E eu iria, mesmo que a contragosto. Não seria tão ruim assim, já havia me acostumado com a dor.

- Você vai viajar. Vai melhorar suas habilidades e vai ser disciplinado por alguns dos, talvez os melhores e mais exigentes profissionais do mundo. Filho.- Ela levantou-se e colocou as mãos sobre meus ombros.- Você vai ter de ser obediente, e forte, acima de tudo, muito forte. Seu avião parte daqui a algumas horas. Já arrumei suas coisas.

- Tá, para onde eu vou? - Estúpido. Sua cabeça serve para pensar. As seleções mais bem disciplinadas em todos os esportes, especialmente os rítmicos e principalmente, os melhores artistas circenses vinham de um só lugar.- Vocês não vão me mandar para a URSS, vão?

O silêncio dela e o abraço mais forte que já havia recebido na vida foram resposta suficiente para minha pergunta.