Surpreendentemente, apesar do horário inconveniente, todos estavam lá. Jacques Oswald contou a Hércule, que comunicou ao resto. Apesar de estar rumo ao território inimigo, como os subordinados à meu pai costumavam dizer, isso me tranquilizava um bom tanto, ao passo que me entristecia mais. Odeio despedidas, sempre o fiz. Estava frio, mas não nevando. Minha mãe me acompanhava. Meu pai estava na América. A vida de um militar se resume a estar aonde te enviam, quando te enviam. Pela ausência dele, decidi não seguir seus passos, apesar de o admirar muito. Encontrei Nikolay, e também Alan. Do primeiro, recebi um envelope, que deveria ser entregue ao encarregado de me buscar quando chegasse a meu destino, e também um sobretudo, que aceitei de certa forma à contragosto. Se ele não houvesse feito tempestade em copo d'água, eu não teria de ir. O segundo disse-me para aproveitar o máximo que fosse possível para aprender a técnica russa. Cynthia apenas segurou-me pelo braço e sussurou um quase inaudível "cuide-se". Respondi um baixo "você também".

- Escuta. Você vai voltar para cá são e salvo, e isso é uma ordem. Preciso do meu irmão aqui comigo para me impedir de pisar na bola.- Irmão. Ambos éramos filhos únicos, mas me surpreendeu que Hércule Oswald se referisse a mim dessa forma.

- Cuida da Claire, e por favor, declare-se para ela de uma vez.- Eu disse, fazendo o rir nervosamente.- Quero ver os dois oficialmente juntos quando eu estiver de volta. Peça para o Jean cuidar muito bem da Cynthia.

- Francamente, você anida acha que precisava nos pedir algo do gênero?- Jean uniu-se à conversa. Um dia ele seria um grande arquiteto, e faria os cenários mais lindos para o mais belo palco, transportando os espectadores para um sonho, mesmo acordados.- Você ainda vai atuar num dos cenários que eu construir, vai ver só!

Respirei fundo. As chamadas para o embarque já estavam sendo feitas. Abracei minha mãe pela última vez antes de subir na aeronave. Assim que encontrei meu assento, Fool resolveu dar as caras e fazer uma de suas previsões. Disse algo que não ouvi direito. Na realidade, não era minha intenção fazê-lo, pois teria de responder. Tudo que compreendi foi "Meu tolinho dirige-se a terras desconhecidas, e em meio à neve, sua visão clareará." Neve. De novo neve. Cansei me de neve. Cai no sono logo após a decolagem, acordando apenas durante o pouso. Um cochilo sem sonhos, algo de que eu sentia falta. Ao abrir os olhos, deparei me com o céu branco, e cristais de gelo pousando sobre as asas do avião.

Coloquei o sobretudo do Russo e fui procurar minhas bagagens. O aeroporto era organizado, e não demorei a achá-las. Só havia um problema, e ele se resumia em atravessar a alfândega com um passaporte americano. Com certeza eu estava encrencado. Um jovem de dezoito anos, viajando sozinho, dos Estados Unidos para a União Soviética, sendo que os dois países estavam em uma corrida armamentista desenfreada. Sem pressão. Dirigi-me à um dos guichês, e quando estava para mostrar meus documentos, uma senhora veio em meu socorro. Ela conversou com os fiscais, que me deixaram entrar sem pestanejar. Julgando pelo seu porte físico e por sua postura, ela deveria ser uma bailarina.

- Fez uma boa viagem?- Me perguntou em um inglês muito claro.- Sou Anna Kournikova, você deve ser Aaron, estou correta?- Acenei com a cabeça em concordância. Ela pediu que eu fechasse o casaco por inteiro antes de sair na rua, pois continuaríamos à pé. Perguntei aonde íamos, e ela me respondeu de um jeito carinhosamente doce, que me lembrava um pouco minha própria mãe.- Buscar os outros.

Andamos alguns quilômetros até chegar até a Praça Vermelha. Ela me explicou que o nome, como muitos pensavam, não era menção ao comunismo, mas sim à beleza do local. A palavra vermelho em russo pode significar tanto a cor, quanto belo. De lá, pode-se observar tanto o bairro antigo de Moscou, quanto o imponente Kremlin, sede do governo. Mas o que mais me chamou atenção foi um grupo de pessoas que formavam uma parede. Queria saber o que elas observavam. Anna fez um sinal para que eu fosse lá se quisesse. Lembrei-me da carta que deveria entregar a quem me recepcionasse no país, e foi o que fiz antes de me embrenhar entre o aglomerado.

Um grupo de jovens se apresentava. Era composto de vários artistas: um malabarista, ótimo por sinal; um jovem que se equilibrava numa corda bamba improvisada; um palhaço, que divertia as crianças, fazendo esculturas com bexigas e algumas bailarinas, que se apresentavam com maestria, mesmo não sendo um local nivelado como um palco para se dançar com facilidade. Todas eram belas e sincronizadas, mas, dentre elas uma se sobressaia. Seus movimentos eram naturais, e sua expressão, impecável. Entre aqueles flocos de gelo, ela realmente parecia algo à parte. Porém, algo alterou seu ritmo. Era uma mudança mínima, mas ele a percebeu. Deveria ser algo em suas sapatilhas. E era, uma das fitas estava muito delicada, e poderia arrebentar logo. Mas seus movimentos continuavam a colocar todos, e inclusive a mim, numa transe, algo que nunca havia sentido antes. Seria isso a tal presença que Fool comentava sempre? Ele também assistia, e parecia também surpreso.

Minhas suspeitas se confirmaram, e a fita se rompeu, fazendo om que ela se desequilibrasse ao formar a pose final. Ela teria caído, não fosse um impulso sobre humano que tomou conta de meu corpo e fez com que eu servisse de suporte para sua delicada figura. Sorri e tentei tomar uma expressão natural, e ela fez o mesmo. Aparentemente nenhum dos presentes na multidão percebeu o problema, aplaudindo fervorosamente a mostra. Os artistas agradeceram, e eu também o fiz. Ela iria me dizer algo, mas como eu não entenderia, disse um "Boa Sorte" a eles, o que era uma das poucas frases que eu conseguira aprender em russo até aquele momento.

Dirigi-me até o banco onde a moça estava sentada, com mais três jovens, duas garotas e um garoto, que aparentavam ser de minha faixa etária. Eles me cumprimentaram. Todos falavam inglês. Parecia até que eu estava em casa de novo, apesar dos sotaques diferenciados: ambas eram britânicas, e ele, alemão.

- Estamos todos aqui. Vamos para casa agora.- A eslava comentou alegremente. Elas me encaravam de um jeito peculiar durante todo o trajeto. Assim que chegamos à mansão que supostamente eles chamavam de casa, não resisti e as questionei.

- Qual é o problema? Porquê me olham desse jeito?

- Desculpe, mas é que... Ninguém conseguiria invadir a aquela apresentação com um tempo tão perfeito e segurá-la, fazendo tudo parecer parte do show. É... Ficamos surpresas... Desculpa por te assustar assim. - Elas riram.

- Não foi nada... Quem são eles?- Quem me respondeu agora não foram elas, mas sim o outro jovem, Stefan.

- As garotas são a Elite do Bolshoi. O malabarista é um estudante de medicina, o palhaço é o amorzinho da Mary e o que se equilibra na corda bamba é a paixão secreta da Diana.- Ele explicou em tom de deboche. As duas ficaram vermelhas e o encararam.

- Ele ama a bailarina de cabelos escuros e olhos cor de mel. Mas parece que você... Você é safadinho não? Derreteu-se todo pela princesinha do Bolshoi!- Diana me disse, aproximando-se de meu rosto.- É, ou não é?

- Mas é claro que não! Eu apenas percebi que ela se desequilibrou e fui ajudá-la... Nada demais. Mesmo. - Respondi calmamente. Eu, apaixonado por uma garota com quem nunca falei na vida... Ainda mais uma Russa? Nem pensar!

Gêmeos, a constelação de Aaron, está envolta numa neblina densa, que parece dissipar-se quando próxima da constelação de Virgem. Quem será dono desse brilho, que poderá guiá-lo através do gelo eterno?