Acordei cedo. Aliás, todos acordamos. Iríamos abrir as portas do Bolshoi. Continuava muito frio fora de casa, fato que explicou a minha relativa demora para sair debaixo das cobertas. Vesti uma blusa de lã, e o sobretudo que o professor me dera. Afinal, ele servira para alguma coisa. Desci as escadas para encontrar os outros jovens já sentados à mesa. Ao perceber que eu chegara, Anna logo levantou-se para me desejar um bom dia:

- Bom dia, ou como diríamos aqui, Доброе утро. Dormiu bem? Vou esquentar um pouco de chá, se você quiser. Gosta de omeletes?-Tão gentil. De repente não parecia tão ruim estar aqui. Elas me encaravam de novo. Aquilo começava a me incomodar.

- Algum problema? Já consegui fazer algo surpreendente às 3:30 da manhã para vocês me olharem desse jeito? - Eu ri, e elas também o fizeram. - Aliás, porque acordamos tão cedo?

- Na verdade, nós não temos a mínima ideia. Sempre saímos daqui um pouco antes das aulas realmente começarem, mas aparentemente hoje é diferente.- Diana comentou, tomando um gole de seu chá.- Sabe, a senhora Anna sempre foi muito gentil conosco, mas não tanto assim...

- Ah sim. Porque vocês estão aqui?- Provavelmente não por vontade própria, pensei.

- Nossa, você é cheio de perguntas hein, yankee?- Stefan falou. Era a primeira vez que eu ouvira sua voz desde que adentrara o recinto - Intercâmbio. Sou de Berlim Oriental. Não há muita diferença.- Disse sem se importar muito. Ou pelo menos foi o que me pareceu.

- Viemos para o Bolshoi mesmo.- Elas disseram em uníssono.- E você?

- Fui obrigado a vir para cá por um professor que me odiava. E meus pais aceitaram a ideia.- Comentei, bocejando. Aquele chá estivera realmente delicioso. Anna nos chamou, deveríamos sair.

Ainda estava escuro. Ela pediu que andássemos juntos no caminho ao teatro. Diana me explicou que a essa hora a “ronda” ainda não tinha acabado, e era melhor andarmos em grupo, para que um pudesse encobrir o outro, enquanto não falássemos russo o bastante para nos defendermos por nós mesmos. A cidade ainda dormia. As árvore derramavam lágrimas de gelo, enquanto meus pés eram cobertos por uma grossa camada do mesmo. Resistir era inútil. Cedo ou tarde a neve cederia e você afundaria. Há um tempo Paris não ficava assim.

Logo avistei a majestosa construção. Sem dúvida, era um lugar maravilhoso. Deveria ser trabalhoso manter aquele edifício em perfeito estado. Seu interior era ainda mais belo, digno da nobreza russa, para a qual fora arquitetado.

- Lindo, não é?- Anna disse-me, sorrindo.- Venha cá, preciso de sua ajuda para uma coisa, mas tem de ser rápido, pois temos pouco tempo até às seis.

Não a entendi. Tínhamos mais de duas horas até as seis. A segui até um quarto onde haviam os instrumentos para a limpeza do teatro. Ela entregou-me um esfregão e um balde. Mostrou-me aonde pegar água e onde achar os produtos para polir as superfícies metalizadas.

- Pode começar. Você tem até as seis para deixar pelo menos o palco limpo e enxuto. Os primeiros bailarinos chegam a essa hora. Boa sorte.

Reduzido a nada, novamente. Fool, não surpreendentemente aproveitou-se da situação para me provocar. Ele flutuava em torno de mim, fazendo acrobacias, enquanto eu esfregava o chão empoeirado. O que estaria minha mãe fazendo a essa hora? Provavelmente dormindo, pensei, estimando o horário em Paris. Mary por vezes tentou me ajudar, mas parava cada vez que a russa se aproximava. Numa das vezes, Anna resolveu não sair mais de lá, e ficou a assistir. Provavelmente por dentro ela queria rir. Eu era desajeitado para essas coisas, assumo. Nunca tive de fazer trabalhos de casa, e os palcos sempre estavam limpos quando eu chegava. Nunca imaginei que tal tarefa pudesse despender tanto trabalho e tempo. Não haviam se passado dois minutos antes que ouvisse passos. Foi então que descobri que a pontualidade russa era afiada, tal qual a britânica.

Reconheci o malabarista e o equilibrista da noite anterior, acompanhados das bailarinas. O primeiro me olhou de tal forma que não ousei virar-me novamente. Ele tinha os olhos do azul mais frio e intimidador que eu já vira, o que era complementado por seu porte atlético e musculoso. Com certeza ele já praticara algum tipo de luta, para construir aquele físico. Pus-me então a polir os camarotes. Era um modo de observar os ensaios sem ser tão notado. Nada excepcional, até que ela entrou no palco.

Era como se a música a seguisse, e não o oposto.Os movimentos de seus braços, tão leves e compassados. Era como se eu estivesse observando um cisne a levantar vôo. Começava devagar e o ritmo aumentava aos poucos, até atingir seu ápice, o que nos palcos transfigurou-se no grand jeté perfeito. Exatos 180° eram o arco que formavam suas pernas. E o barulho ao aterrisar fora quase inaudível, tal qual uma pluma a cair na relva macia. Ela finalizou sua coreografia com uma série de rápidas pirouettes.

-É, ela é boa... Tenho que admitir...- Fool comentou, seriamente.- Deve ser boa em outras coisas também... Fufufufu.- Acertei-o com o balde, fazendo com que voasse de uma extremidade a outra do grande ambiente, o que fez mais barulho do que eu podia prever, pois acabei chocando-o com o metal da estrutura de sustentação do camarote superior. Fui repreendido por Anna, que fiscalizava tudo. Mais uma vez Fool acabava com qualquer chance de uma boa impressão que eu pudesse causar.

O tempo passava rápido, e logo que acabei, era hora do almoço. O refeitório era imenso, e estava lotado. Mas não foi isso o que me importunou, e sim, o modo como todos aqueles artistas nos fitavam, lembrando-me uma vez mais de que eu não estava em casa, entre amigos. Sentamo-nos na mesa mais afastada onde poderíamos ficar à vontade, como se isso fosse possível. Os colegas tentaram me animar, dizendo que me acostumaria.- Depois de um tempo, você passa despercebido. É só porque você é novo aqui.- Mary explicava. Stefan argumentou que talvez demorasse um pouco, dada a minha intervenção na noite anterior, mas viria, eventualmente. Eu esperava que fosse logo. O que menos desejava era confusão.

Iria conversar com Anna. Aquilo não estava certo. Limpar teatros não parecia o melhor modo de aperfeiçoar minhas habilidades. Eu deveria estar nas salas de aula, estudando, dançando, atuando, o raio que o parta!

Aproveitei um momento em que ela estava só em sua sala para conversar. Havia vários retratos nas paredes. Retratos de antigas peças de dança, algumas pinturas, e vários troféus.

- Sente-se. Em que posso ajudá-lo?- Ela questionou-me, dessa vez sem o gentil tom costumeiro.- Deveria estar arrumando as salas vazias.

- É exatamente sobre isso que eu gosaria de conversar com a senhora... Por que tenho de fazê-lo?- Falei da forma mais calma possível. Ela fitou-me com os olhos cor de avelã antes de responder.

- Diga-me, quem tem mais autoridade, uma professor ou um aluno?

- O professor, obviamente.

- O professor portanto tem seus métodos, que estão longe de ser desafiados por um aluno. Agora, vá até a sala 5. Uma menina das turmas mais novas derrubou um pouco de suco no chão. Se você não limpar logo, vai manchar. Obrigada Aaron.

Ao sair, colidi com uma mocinha que passava sem prestar atenção. Reconhci-a também como uma das bailarinas do grupo de rua. Anna disse-lhe algo em russo que eu não consegui entender, mas presumi que fosse para que ela me levasse até o tal lugar manchado, visto que tomou-me pela mão. Minha guia era uma bonita e delicada flor eslava, de compridos cabelos, negros como o ébano, olhos da mesma coloração e pele branca. Deveria ser mais nova do que eu, mas não muito, apesar de sua baixa estatura. Dois anos, diria. O que me chamou a atenção foram suas mãos. Eram calejadas, e pelo como o eram, depreendi que ela fosse trapezista.

- Francês?- Ela me dirigiu a palavra, na língua que me acompanhou desde que saíra dos Estados Unidos.- Você fala francês? Sei que não russo, pela careta de interrogação que você fez quando Anna falou comigo.

- Sim. Vim de Paris.- Não fiz questão de explicar-lhe os pormenores, por razões óbvias.

- Ótimo! Poderei praticar com você!- Ela replicou, animada.- Fala inglês também? Eu acho uma língua fascinante... Mas quase ninguém aqui fala! Você fala? Sabe, a gente tinha um professor que falava, mas ele foi expulso daqui e... Desculpe, que má educação a minha... Não me apresentei e sequer te deixei responder minha pergunta.- Ela repreendeu-se, fazendo uma careta.

- Não foi nada. Sou Aaron Brass.

- Anya Osipova Petrova, mas me chame só de Anya Osipova!- Disse, alegre.- Você fica aqui então... Nos vemos depois!- Ela apontou para a mancha. Apenas concordei com a cabeça.

- As portas estão se abrindo, meu tolinho, eu aproveitaria se fosse você.- O espírito comentou. Eu detestava quando ele dirigia-se assim a mim. Como se eu fosse algo dele.- O gênio brincalhão de Áries e o cuidado de Sagitário o guiarão até a constelação de Virgem, mas para que isso aconteça, você precisará ganhar a confiança de Leão.

- Já lhe disse que o que você prediz não faz o mínimo sentido?- Eu estava sem paciência.

- Isso é porque você não quer entender.- A questão não era querer... a questão era a minha paciência que se esgotava cada vez mais. - Áries é Anya... Virgem... Provavelmente aquela bailarina... E Leão... Aquele ruivo que anda com ela e me odeia. Acertei? Só não sei Sagitário...

- Ora, não sei.... É a primeira vez que mexo com esse tipo de previsão... Tenho que aperfeiçoá-la.- Ele gargalhou. Eu devia tê-lo ignorado quando ele se dirigiu a mim pela primeira vez. Teria me ajudado muito.

Felizmente não havia nem sinal da alma do suco quando terminei. Uma bronca a menos. Resolvi explorar os outros corredores. Parei para assistir a aula de que Mary e Diana participavam. Elas eram dedicadas, mas percebi que ficavam numa barra praticamente isolada. Ousei pensar que os russos eram anti-sociais e maldosos por o fazerem. Mas a recíproca seria verdadeira: eu sabia que eles também não seriam aceitos se estivéssemos em minha terra natal, ou em qualquer país aliado. Eu mesmo o fazia, com meu ex-professor.

Pensei no que Fool me dissera. Anya era uma trapezista. Talvez fosse ela a parceira que eu procurava.

Saí do teatro. Precisava espairecer, e não conseguiria fazer isso lá. Queria estar sozinho comigo mesmo e com meus pensamentos. Sentei-me num dos degraus de entrada. Não poderia ser ela. O guiará até a constelação de Virgem... Porque não podia ser tudo mais simples? Fechei meus olhos. Você precisará ganhar a confiança de Leão. Mas eu nem queria nada com isso! Eu queria ser eu, viver minha vida e pronto! Mas que coisa! Será que não podiam ter escolhido outra pessoa para fazer o que supostamente tenho de fazer?

Senti algo a me cutucar... ou seria a neve caindo? Provavelmente o segundo caso, ou Fool. Parou.

- Dormir na neve não é a melhor das escolhas. Você pode congelar.- Abri os olhos para fitar as mais belas esmeraldas que eu já tinha visto, emolduradas por cabelos louro platina. - Eu acho que devia entrar... Mas você é quem sabe.- Falou, afastando-se, após ouvir um barulho.

- Aí está você! Não suma mais assim!- Anna apareceu, e levantou-me, limpando a neve que se depositara sobre os ombros do sobretudo.- Você é louco? Ficar assim aqui ?! Muita gente morre congelada nessa época, sabia mocinho?- Repreendeu-me, e percebendo que a garota também estava para fora, fez o mesmo com ela, ou pelo menos achei que fosse isso.- Francamente, vocês jovens de hoje! Sveta, para dentro você também!

Sveta. Então esse era seu nome. Ela andava com a mesma postura e classe com que dançava. Seu rosto estava rosado devido ao frio. Vestia um comprido casaco branco por cima de suas roupas de dança, e seus cabelos estavam presos num coque por uma delicada fita lilás, com algumas madeixas já soltas pelo vento. Logo nos encontramos com o gigante ruivo, que com ela foi embora.

-Ai! Isso dói!!- A senhora me deu um puxão de orelha.- Por quê?????!!!

- Por nada... Tome cuidado com o que você faz... E nunca mais saia sozinho daqui, entendeu? Nem na porta!- Ela completou, incomodada. Era uma mulher imprevisível. E assustadora, de um modo cômico.- Vamos então, é hora de irmos todos para casa!- Falou, alegre, ao ver os outros com suas coisas.