Era por volta de meia-noite, todos eles estavam dormindo. Surpreendentemente. Não se pode regular os horários de adolescentes tão facilmente, especialmente quando todos tem hábitos tão diferentes, e quando um novo chega. Até que se adequem às regras... Demora um bom tanto.

Dirigi-me ao meu quarto, onde, sentando-me em minha cama, li uma vez mais a carta que me fora designada. Ao passo que ela me trazia felicidade, também fazia crescer em meu interior uma nova preocupação. Ele fora exilado! O que estivera pensando ao mandar-me algo! Iriam descobrir que estava vivo e mexendo mais uma vez seus pauzinhos na história desse país...

Era um louco. Mas um louco que eu amava.

Anna,

Observo a torre Eiffel de minha janela enquanto lhe escrevo. Já faz algum tempo. Peço desculpas por não ter mandado quaisquer notícias antes, era impossível fazê-lo. Ela é tão bela quanto imaginávamos. Queria que você e Sveta aqui estivessem para compartilharmos de tal visão. Lembra-se de quando dizíamos que um dia, quando tudo isso acabasse, iríamos conhecer o mundo? Viajar, sem destino definido... Isso era bem o seu estilo, espontâneo... Muito diferente do meu, metódico e calculado nos mínimos detalhes. Mas éramos jovens, e jovens cometem erros.

E um dos meus maiores foi esquecer de que nada nesse mundo segue as regras estipuladas por nós, reles mortais. Talvez, caso eu não houvesse sido tão insistente em alcançar meus objetivos, tudo fosse diferente. Talvez não estivesse exilado, ou, pelo menos, você estivesse ao meu lado. Sou uma pessoa frágil, sabe disso, e também da vergonha e da dificuldade que tenho para lidar com isso.

Pode parecer ridículo, mas sua opinião era minha bússola. Eu sabia, sempre soube, que, de todas as pessoas, você me conduziria pelo caminho certo. Por muito tempo, antes de tomar minhas decisões, consultava-lhe . Se tivéssemos o mesmo ponto de vista, eu estava certo. Se divergíssemos, no entanto, a possibilidade de estar equivocado era grande. Mas eu era teimoso. Ainda sou.

Bom... Não revivamos o passado, em demasiado doloroso. Deve estar se perguntando por que mandei aquele jovem sob seus cuidados. Aaron é um garoto curioso. E indisciplinado. E arrogante. E orgulhoso. E está confuso. Precisa ser lapidado, e não conheço ninguém melhor para fazê-lo do que alguém que possa ter amado uma criatura tão complicada como a mim. Ele tem um grande potencial, e está ciente desse fato.

Sim, dou-lhe trabalho Anna. Não negue, sei que pronunciou exatamente essa oração em sua mente. Não sei e não tenho capacidade alguma para lidar com crianças, sabe disso. Salvo Sveta, não houve criança ou adolescente sequer que não me tirasse do sério. Pense nele como se fosse seu... nosso... Você entendeu.

Pergunto-me como vai Sveta... Deve ter se tornado uma bela jovem agora. Dezessete anos, não? A quando a vi pela última vez, deveria ter em torno de cinco anos... O tempo voa. Continua a jogar xadrez, e a dançar, suponho. Ela me lembra a você. Por isso, peço que a entregue esse pequeno pacote, nele há um bilhete, e o rei. Ajude-a a entender a mensagem, por favor.

Há muito a se escrever, e pouco papel e tinta para tal. Não me prolongarei. Sei que está lendo pela segunda ou terceira vez, e que precisa dormir. Mas está procurando alguma resposta entre minhas palavras. Então, te perdôo, e peço perdão novamente, do meu jeito torto.

Boa Noite,

Yuri.

Bobo. Depois de todos esses anos, ele ainda conseguia prever parte das minhas ações. Como eu queria que tudo houvesse se desenvolvido de outra forma. Mas as coisas são como são. Escolhas nos definem, e fizemos as nossas. Eu as minhas, ele as dele.

- Então... Vai ser assim. Você não vai deixar mesmo que eu me explique.

- Não é hora. Não foi isso que me foi dito? Vá embora, antes que as coisas se compliquem ainda mais.

- Como queira. Só me responda uma coisa...

- Fora da minha casa. Agora.

Foi uma das poucas vezes em que ela me contestara. Não era para menos. Abandoná-la daquele modo fora imperdoável, e apenas eu não o enxergara na época. Minha imaturidade me conduzira, mais uma vez ao erro. Mais de uma vez fora eu considerado o maduro de nosso grupo de jovens. Estavam errados. Tive de aprendê-lo. Sozinho.

Já era noite. Por horas haviamos caminhado naquela selva lamacenta. Os nativos, acosrumados, locomoviam-se sem muito esforço, ao passo que nós, acostumados com o frio de nossa terra e com o chão pavimentado, sofríamos com o calor e com os insetos - e como havia insetos!- daquela terra estranha. Vários de meus companheiros caíram por desidratação ou por picadas de animais peçonhentos. Em certo momento, meu superior avistou um soldado, com um uniforme diverso do que usávamos. Pediu-me o binóculo, e ao averiguar os detalhes, percebeu que era um americano, provavelmente desgarrado do grupo.

- Kiryanov. Você, surpreendentemente, é o único que está num estado menos deplorável, e talvez seja capaz de fazer algo de útil aqui. Vá atrás do seu inimigo e apague-o. Sei que atira bem, lembro-me que o fazia lá em Moscou. Não precisa sujar as mãos. Ande, moça, ou não vai voltar nem para tocar sua balalaika, ou o raio que o parta que você fazia no meio daquelas gazelas saltitantes. Aqui não é teatro não, o que está esperando? Ele está ferido, só para facilitar sua vida de merda.

- Sim senhor.- Respondi seco. Como eu detestava aquele homem! E precisamente por isso tinha sido colocado em seu pelotão. Quando as coisas tem de conspirar contra você, elas o fazem da pior forma.

Embrenhei-me dentre as árvores. Para alguém ferido, ele se movia muito rápido, e a localidade não me auxiliava em nada com a única habilidade útil em combate que eu possuía perfeitamente treinada. Então decidi que a melhor estratégia seria aproximar-me o máximo possível. Seria indolor, ele morreria na hora. Sem sofrimento. Não como os trogloditas do meu grupo faziam. Em minha mediocridade, pensei que ele tinha sorte de ser meu alvo.

Ele parou. Ótimo. Aproximei-me mais, cuidadosamente para que ele não se movesse. Em vão. O som de um animal qualquer que fosse fez com que ele se virasse e olhasse em minha direção.

- Ande logo. Faça o que tem de fazer. Estou te vendo.

Ele tinha os olhos de um tom quase púrpura, que eu nunca tinha visto. Tentava estancar o sangue que jorrava de um ferimento em seu lado, sem muito sucesso. Estava desarmado. À minha mercê. Era só puxar o gatilho. Cheguei ainda mais perto, encostando o frio metal de minha pistola em sua testa. Menos sofrimento possível.

- Senhor John!- Ouvi uma garotinha falar em um tom baixo. Os orbes negros em seu rosto refletiam o terror que eu mesmo sentia ao ver a barbaridade que eu faria em torno de instantes. Ela deveria ter uns nove para dez anos, no máximo. Carregava algumas tiras de tecido e uma espécie de cantil em seu pescoço. Supus que fossem para ajudar aquele homem. Ele deveria ter minha idade. Usava aliança. Família.

Fechei os olhos e apertei o gatilho. O estrondo fez com que algumas aves voassem, assustadas. A menina gritou.

- É uma pena, a árvore parecia simpática. Você sabe para onde tem que ir? Não é agradável ficar andando sem rumo desse jeito. Se você não morrer sangrando, alguém poderia te matar.- Falei, oferecendo meu braço para que ele, incrédulo, se apoiasse para levantar. Depois, virei-me para a jovenzinha.- Ei, você! Pode sair daí do meio. Essas tiras são para ajudar seu amigo?- Arrisquei o idioma nativo, esperando que tivesse dito tudo certo. Ela prontamente veio. Tão pequena, entretanto, seus olhos pareciam já ter visto muito mais da vida do que meus próprios.

Crianças. Como me incomodavam. Sempre gritando, reclamando, rabiscando, rasgando. Brincando. Ela deveria estar brincando, e não cuidando de um ferido de guerra. Não sabia corretamente como passar o unguento que estava no cantil, ou colocar as tiras, mas ainda assim tentava. Suas mãozinhas tremiam.

- Posso te ajudar?- Coloquei minhas mãos sobre as dela, retirando o algodão já colocado e repassando o unguento. A falta de assepsia me preocupava. Mas deveria ter algum povoado ou uma base inimiga para onde ele pudesse ser levado para um tratamento mais eficaz posteriormente. Depois, ela me ajudou a transpassar as tiras. - Agora estão esticadas. Parece bom, não?- Ela sorriu relutantemente. Eu não reagiria de forma diferente.- É melhor que fique aqui um tempo. O curativo está malfeito, Pode se soltar.

- Por... quê? Eu não sei se teria exitado se em seu lugar.

- E eu não esperaria que tivesse. Não sou um soldado. Deveria ser, mas não sou. E não sou um monstro. Não preciso destruir a vida de mais ninguém. E uma criança não merece ver uma cena horrível como aquela. E... Seria covardia. Você não podia se defender.

- Não existe lugar para cavalheirismo aqui, não-soldado. Como você pretende explicar sua demora para o superior?

- Bom... As pessoas se perdem.

Ele riu. A menina dormia, com sua cabeça encostada em uma de suas pernas.- Você é maluco, sabia? Se descobrissem que eu fiz algo assim em meu país, eu seria no mínimo considerado espião, e torturado.- Ele falou em baixo tom, para não a acordar. Como ela conseguia dormir numa situação como aquela?

- Não penso que na minha situação aconteça algo muito diferente. Mas realmente, não tenho muito a perder.

- Tem família? Percebi que não usa aliança, mas ela já esteve aí, não?

- Tinha.

- O que aconteceu?

- Meu egocentrismo aconteceu. Acha que consegue se levantar apoiando-se em mim?

- Talvez. Precisaremos acordá-la então.

- Não será necessário.- Abaixei-me para que ele a escorregasse em minhas costas. Era leve como uma pena. Tão magra. Não devia se alimentar direito há dias.

De fato, o local onde eles se escondiam não estava longe. Não retirei a farda, o que me rendeu uma perna aleijada por um tiro de M16* e uma carabinada na cabeça. O soldado havia avisado aos outros, mas ainda assim, fui interrogado exaustivamente quando despertei.

- O que você faz da vida, moço?- A mesma garotinha da floresta entrou na tenda onde eu me encontrava, trazendo uma espécie de sopa. Não parecia muito apetitosa, mas as boas maneiras que me foram ensinadas com tanto fervor por minha mãe diziam que não se deve desagradar ou ofender seu anfitrião em hipótese alguma. Então eu a experimentei. Ela ficava me olhando com seus olhos negros, provavelmente esperando, além da resposta à sua pergunta anterior, algum tipo de complimento pela comida.- Está boa?

- Oh, sim, sim, muito boa.- Ela sorriu.- Do que é feita?

- Casulo de bicho da seda. O que vocês comem no seu país? É bem diferente né? Um amigo meu disse que vocês cozinhavam crianças como eu, mas eu não acreditei. Seria nojento, e você é bonzinho. Você tem filhos? É casado né? Tem um anel no seu pescoço com uma coisa escrita dentro.

Yuck. Casulo de bicho da seda. E o quê? Comer criancinhas? Ora, então era isso que falavam de nós? Que ultraje. Ah, agora me lembrei de outro motivo pelo qual eu detestava crianças. Muitas perguntas.

- Você fala demais.

- Desculpa.- Abaixou a cabeça, mexendo na ponta da trança que segurava seus cabelos também negros. Anna trançava seus cabelos daquele mesmo jeito.

- Primeiro as apresentações. Meu nome é Yuri Aleksandrovich Kiryanov. Sou ator e músico. Comemos várias coisas diferentes em meu país. E crianças não estão no cardápio, não se preocupe. O resto, você é muito jovem para entender. Sua vez agora.

- Sou Lü Mai Long, tenho nove anos. Gosto de música! O que você toca? Sou a mais velha dos meus irmãos, você pode me contar tudo, é só explicar direitinho, eu sou inteligente! Que bom que vocês não comem crianças! Eu vou falar pra todo mundo! Eu sabia que eles eram bobos e estavam errados!

- Balalaika, Piano e Cello.

- Bala-o-quê?

- Ba-la-lai-ka.- Falei mais devagar, e a fiz repetir para que entendesse.

- Nunca ouvi falar. Piano! Meu pai tocava piano... Mas ele morreu. Eu toco alguma coisinha.- Ela riu.- E celio... É aquele violino grande que você apoia na perna?

Violino grande que se apoia na perna. Não esquecer essa definição tão apurada.

- Não é um violino. Mas apoio na perna sim... Aliás, na que está machucada agora.

- Você não me falou da outra coisa.

Ela era insistente. Então acabei contando uma versão curta da história toda, que ela entendeu. É, era inteligente mesmo, e me encurralava sempre.

- Então, você brigou com a moça que gostava porque você ia ser pai e não queria, e ela foi embora de casa. Daí você veio pra cá. E você acha que ela nunca mais quer ver a sua cara nem pintado de urso?

- É, mais ou menos isso.

- Você é bobo, moço. Se ela gosta de você ela vai te desculpar.

Oh, a ingenuidade infantil. Como era linda.

- Não vai não... A gente brigou de verdade.

- Eu também acho que vai.- Ótimo, marmanjo ouvindo a conversa dos outros atrás da porta.- Mai, sua mãe mandou chamar para o jantar.

- Sim, senhor John, estou indo! Tchau, foi legal conversar com você.- Ela despediu-se beijando minha testa. Anna fazia a mesma coisa, quando eu estava sentado.

Estávamos só eu e ele agora.

- Sinto muito pela sua perna. Quando consegui falar, já tinham disparado. E pelo interrogatório.

- Não tem o que falar, era de praxe. Conheço as leis do exército. Meu pai é militar, e queria que eu o fosse. Fui treinado para ser, como havia dito. Mas não tinha a menor vontade de entrar em ação. Ficava na área de estratégia. Então, decidiram que eu deveria me tornar homem depois dos... Incidentes em casa.

- Sua esposa. A situação deve ter sido deveras caótica para você não querer voltar. Sou casado, e temos um filho... Agora ele deve estar com um ano já.

- Não levo o menor jeito com crianças. Ela sabia disso. Elas atrapalham minha concentração, fazem perguntas inoportunas, gritam, esperneiam... Ela/ele deveria nascer por agora.

- É uma época boa, é uma pena que não possa estar com eles. Sabe... Eu era muito irresponsável. Vendo tudo isso aqui, e essas crianças, como a Mai, com suas infâncias interrompidas, tendo de nos ajudar aqui... É assustador, não acha?

- Para falar a verdade. Não sei se conseguiria ter acabado com a sua raça principalmente porque ela estava olhando. Hoje, conversando com ela... Não me senti tão incomodado. É, é deveras assustador. Ela deveria estar brincando, dançando, ouvindo música... Se eu fosse o pai dela, nunca a deixaria no meio de um confronto como esse.

Se eu fosse o pai dela. Mas eu não o era. E havia destruído minha única chance de ser algo assim, ou pelo menos era o que eu pensava, até sair daquele inferno tropical e voltar para minha casa. Casa?

Quando cheguei em Moscou, quem me recebeu foi minha irmã, Sonya, com meu sobrinho mais velho, Oleg. Ele contava nove anos, e lembrava muito o pai, meu melhor amigo, Dmitry, a não ser pelos cabelos pretos, herança de nossa família. Eu estava determinado a consertar tudo, na medida do possí vez de irmos diretamente para casa, como eu esperava, houve um contratempo. Ela me explicou que teríamos de buscar minha sobrinha pequena nas aulas de ballet. Muitas coisas haviam mudado enquanto eu estivera fora. Fomos ao Bolshoi. Meu estômago revirou-se. Era certo que iria encará-la novamente, e tão cedo. Ela poderia estar em São Petersburgo ainda. Mas não.

Ela não usava mais os cabelos escuros. Estavam de um louro claro, que combinava com seu tom de pele. Particularmente, preferia-os pretos. Mas minha opinião pouco importava. Ela estava vestindo um casaco em uma pequenina, que supus ser quem procurávamos. Suas roupinhas eram de um lilás claro, tinha os cabelos de um louro muito claro, presos numa trança embutida, e olhos verdes como esmeralda. Era literalmente um anjo. Ao ver minha irmã, veio correndo o mais rápido que podia, quase tropeçando na neve. Mas faltava algo naquela paisagem. Algo que era mais do que nunca importante para mim.

- Oleg.- Dirigi minha palavra ao garoto que sentava ao meu lado.

- O quê?- Ele respondeu olhando para mim curiosamente. Seus olhos tinham o formato exato dos de Sonya.

- Aquela moça... Ela não tem um filho ou uma fliha, ou algo assim?- Algo assim. Ótimo jeito de se referir a uma criança, estúpido.

- Ah... É... Não... O bebê nasceu morto... Foi bem triste. Por quê?

- Por nada.- Sentia um vazio absurdo dentro de mim. E imaginava o que ela teria sentido. Nunca iria me perdoar. Não agora.

Ela estava vindo para cá. Não. Volte. É cedo demais. Não posso. Não vou conseguir.

- Olá Yuri, já faz um tempo.- Ela falou, com sua voz suave, e de certo modo, melancólica.- Vejo que voltou com uma aparência melhor do que eu esperava, fico feliz por isso.

- Sim.- Sim? Essa é a única resposta que você consegue dar? Idiota, idiota, idiota. - Você... Mudou.

É óbvio que eu havia mudado. Mas sei que por dentro não era isso que ele queria dizer. Só não tinha as palavras certas. Enxergava em seus olhos. Arrependimento. Não, não poderia ser. Suas escolhas eram metodicamente planejadas. Ele não se arrependia. Ou aprendeu, como eu, que as coisas não saem nunca como planejamos. Até mesmo para ele. Pelo menos, de volta talvez ele aprendesse algumas coisas mais. Naquela tarde, quando saíram em direção à mansão Kiryanov, vi claramente Sveta em seu colo. Vi-o acariciar seus cabelos gentilmente. Na época, ponderei se ele merecia de verdade aquela nova chance. Sim, indubitavelmente sim. E não competia a mim dela privá-lo. Havia deixado tal possibilidade para trás há anos.

Era uma tarde de inverno. Sonya me ligara às pressas: fora contatada da escola das crianças dizendo que Sveta havia se ferido ao cair do balanço na neve, e entrado em crise hemofílica. Ela não poderia sair da reunião em que se encontrava, nem poderia Dmitry. Como madrinha, era meu dever me manifestar. Peguei mais do que prontamente minha parka e o carro, e saí do teatro, em direção ao local. Segundos contavam muito nessas situações.

- Com licença, estou procurando por Svetlana Kiryanova, vocês ligaram dizendo que algo havia acontecido com ela.

- Sim, ela se feriu enquanto brincava. Desculpe-me, quem é a senhora?- Ah, ótimo, os protocolos. Malditos fossem os protocolos. Quanto mais tempo demorássemos para ajudá-la, menores as chances dela sobreviver. Gente ignorante. Uma raiva absurda tomava conta de mim.

- Eu tenho certeza que a senhorita deveria saber que somos tios dela. Desculpe-me pela demora, estava estacionando o carro. E tenho alguns problemas de locomoção.- Uma bengala. Deveria ser de carvalho, com algunds diamanets cravejados. Lembrei-me, havia sido de seu avô. Ele não voltara bem como eu esperava. Arrastava totalmente a perna esquerda. Sentado, não pude perceber.- Por favor, pode nos levar a ela o mais rápido possível? É uma situação delicada.

A mulher abaixou a cabeça em concordância. Nos guiou pelos corredores do edifício, andando rapidamente. Ele tinha dificuldades para nos acompanhar, eu podia perceber.

- Apoio?- Estendi meu braço, como ele fazia comigo, quando estivéramos juntos.

- Obrigado, posso me virar sozinho.- Orgulho. Algumas coisas nunca mudariam.

Ao chegarmos na enfermaria, a encontramos deitada numa das camas enfileiradas muito próximas umas das outras. Seu irmão estava lá, ao seu lado, como sempre. Oleg era extremamente superprotetor. Aproximei-me um pouco. Ela estava febril, e pouco consciente. O sangramento em seu joelho e nas palmas de suas mãos não haviam nem sequer começado a cicatrizar. Antes que eu pudesse dizer algo, Yuri já estava confortando o jovenzinho aflito.

- Volte para a aula, menino inteligente, sua irmã vai ficar bem.- Ele disse, batendo de leve na cabeça do menino, que correu para fora do local.- E não corra! Ou vai cair também!- Gritou, inclinando seu corpo para trás.

- Yuri! Não grite! Você quer atrapalhar o andar inteiro? Mas que coisa!- Falei, puxando-o para a posição reta pelo casaco. As enfermeiras riram da cena.

- Tio Yuri, tia Anna...- Sveta falou baixo, e nos dirigimos rapidamente para perto dela.- São vocês?

- Sim, estamos aqui, vamos te levar pra outro lugar agora tá?- Ele falou antes que eu pudesse ter aberto a boca. Cuidadosamente, a peguei nos braços, e nos dirigimos para fora. Ele andava cada vez mais devagar. Iria me atrapalhar. Droga.

- Yuri. Fique aí. Eu a levarei para o hospital. Você só vai nos atrasar.- A frieza com que a sentença saiu foi demais até para mim. A realidade é que vê-lo ofegante daquele modo era muito.

- Vá logo então.- Ele respondeu, o incômodo visível em seus olhos.

- Tio Yuri...- Ela sussurou, com os olhos entreabertos.

- Ele já vem.- Dois meses.Tão pouco tempo juntos e ela já tinha se ligado desse modo a ele. Era invejável.- Shh...

Deitei-a no banco de trás de meu carro, e dirigi o mais rápido que podia. Voaria, se possível fosse. Poucos minutos depois de ter estacionado o carro, ele se apresentou também. Nevava.

- Tome.- Ele retirou seu casaco. Iria congelar.- Não me olhe desse jeito. Tem que enrolá-la e protegê-la bem do frio, ou a febre irá piorar. Logo entraremos na calefação. Quer que a carregue?

- Não. Eu posso perfeitamente cuidar dela. Mas já que está aqui, vamos logo com isso.- Ele se afastou. Doía em mim ser dura daquele modo, mas ele não aguentava consigo mesmo. Imagine carregá-la também, pelo amor de Deus.

Ao entrarmos, fomos prontamente atendidos. Tinha um ex colega de escola, e pai de um dos melhores amigos de Sveta que trabalhava no local, e tratou de conversar com um de seus colegas, que nos ajudou. Pediu que esperássemos na sala dedicada à seção da pediatria, onde nos sentamos um ao lado do outro.

Era a primeira vez em anos que ficávamos a sós desde... tudo. Ele tinha se deixado cair na desconfortável cadeira, num golpe de visível exaustão e dor. Não era capaz de dobrar a perna aleijada propriamente. Era um membro morto. Mas meus pensamentos não se concentravam no estado dele, e sim, no de Lana. Demoravam muito para nos dar notícias de algo. Minutos pareciam uma eternidade. Ele também estava substancialmente nervoso. Sua perna funcional não parava de balançar. E estávamos quietos. Silêncio irrtante. Nenhum de nós conseguia dirigir uma só palavra ao outro. Sequer olhar-nos. Lembro-me de ter levantado pra pegar um copo d'água. Ele continuava ali, imóvel, fitando o chão com seus olhos cor de cascalho. Trouxe-lhe um também, ao que ele aceitou dirigindo a mim um sorriso desconcertado.

- Não tem mais aulas hoje?- Ele me perguntou. Trabalho, sempre um assunto seguro. Nada pessoal. Bem ao estilo do meu digníssimo ex-marido.

- As cancelei. Achei que fosse demorar mesmo. E o senhor, não tem nada mais útil a fazer a ficar esperando notícias de uma criança irritante? Compor algo, por exemplo?- Prooquei, intencionalmente. Precisava ver até aonde o surto altruísta dele chegaria.

- Na verdade, tenho uma série de compromissos muito importantes. Depois da escola, Sveta e eu tocaríamos piano, e depois eu a ensinaria para que servem as peças de xadrez. Depois, contaria-lhe uma história, jantaríamos com seus pais, e dormiríamos. Enquanto ela tomasse banho, eu ajudaria Oleg com as lições de casa, para não ficar sem fazer nada. Quando ela dormisse, talvez eu começasse a compor algo. Por enquanto, não tenho tido inspiração. Como a senhora pode ver, nenhum desses compromissos poderá ser cumprido, salvo se minha companheirinha sair ilesa dessa.

Minha companheirinha. Era isso que meus ouvidos haviam registrado. Meu Deus. Senti todo o sangue me fugir do rosto naquele momento. Nunca pensei que iria ouvir algo desse naipe, principalmente em se tratando dele. "Ela vai ficar bem... Tem que ficar." Encostei quase que inconscientemente minha cabeça em seu ombro. Como sentia falta disso. Ele retribuiu, roçando sua bochecha em meus cabelos. Que coisa. Por mais que tentasse me afastar, não conseguia. Penso que ele sentia o mesmo. É tão melhor quando estamos próximos.

Aquele momento, que pareceu durar horas, foi quebrado quando o médico que se encarregou da pequenina veio nos falar. Nos recompusemos imediatamente. Levantei de sopetão, o que ele teria feito, não fosse a perna ruim.

- Podem ficar tranquilos, a filha de vocês está bem.

- Graças a Deus.- Suspiramos em alívio.- Contudo, não temos a alegria de dizer que é nossa filha, apenas nossa sobrinha.- Ele corrigiu prontamente.

Infelizmente...

- Entendo. Ela está dormindo, mas se quiserem vê-la posso levá-los.

- Por favor.- Ele respondeu.- Vamos?- Ofereceu-me o braço para apoio. Aceitei, não deixando qualquer peso que fosse sobre ele.

Ela dormia como um anjo. Havia sido administrado nela a proteína que lhe faltava, o fator VIII, bem como um sedativo. Os ferimentos foram enfaixados para evitar que piorassem, e o sedativo servia para evitar que ela se mexesse, ou se assustasse. Achei desnecessário. Sentamo-nos cada um de um lado da cama branca. Quando ela acordasse, não se sentiria sozinha.

- Você pode deixar que eu me explique?- De novo com aquela história.

- Yuri, não agora, não aqui, não agora.

- Quando então? Quando estivermos velhos e carcomidos... Quando não pudermos mais tentar nada?- Tentar, o que ele queria tentar? Agora seria inútil.

- Tentar, o que você quer tentar? Está meio tarde para isso, não acha? Nem que eu quisesse, eu poderia, aliás. Meu corpo não aguentaria. E a primeira vez já foi traumática o suficiente. Sabia... Que não tinha ninguém além da minha mãe para segurar minha mão, ou me dizer palavras de apoio?- Desviei-me de seu olhar.

- Eu... Eu sinto muito. Se eu pudesse eu lhe mostraria como não passou um dia sem que eu me arrependesse. Mas não sei se conseguiria.- Lágrimas. Ele não gostava de chorar perto de mim. Perto de ninguém, na realidade. Ele segurou minha mão.

- Cuide... Cuide da Sveta como se fosse sua própria filha. Quer dizer... continue a cuidar. Você já me provou que consegue mudar. Já é um grande passo.- Libertei-me de seu aperto de mão.- Quanto a nós... Talvez seja melhor que continuemos apenas como amigos. Será menos desgaste.

- Talvez você esteja certa.- Não... era a resposta que eu esperava. Mas foi a que pedi, tratando-o daquele jeito frio e rude toda a tarde. Quando ele só queria ajudar e se aproximar.

- Mamãe, papai?- Ela entreabriu os olhinhos. Como eu queria que pudesse ser verdade.

Ela saiu mais rápido que esperávamos, e logo voltou a dançar e a aprender os truques de xadrez. Mais de uma vez ela me encurralou, perguntando porque eu não me casava com seu tio amado, que a deixava brincar com o piano. Atendendo a seus pedidos, passei a ajudá-lo a recobrar os movimentos da perna morta, ao que ele respondeu surpreendentemente bem. Em um ano, já andava por algumas horas sem a bengala, e podia tocar de novo seu instrumento preferido, para que eu pudesse acompanhar dançando. O Carnaval dos Animais. O Cisne. Havia uma coreografia linda, e feita exatamente para esse movimento.

Nossa alegria durou mais dois anos, quando descobriram do incidente durante a guerra. Ele foi declarado traidor, e condenado ao exílio. Inicialmnte, pena a ser cumprida na Sibéria. Seria inútil, ele conhecia a prisão como a palma de sua mão, tinha estudado toda a planta quando criança. A decisão foi então por mandá-lo embora do país. Jogá-lo em algum lugar qualquer, para que ele se virasse.

- Tio... O que é exílio?- Sveta estava na época das perguntas. Engoli em seco, mas ele respondeu naturalmente.

- É quando temos que viajar para bem longe, por bastante tempo... Mas eu vou voltar, e a primeira coisa que vou fazer, vai ser vir te ver... A você e à tia Anna, é uma promessa. Tudo bem?

- Tá.

Dei-lhe o casaco que hoje Aaron usa. Era uma maneira de lembrar-se de mim. Os estrangeiros não são ruins Anna. Existem pessoas boas e ruins em todos os lugares. Tem muita gente boa presa por aqui. Você vai ajudá-los, não vai?

Ah Yuri... Você não se cansa de me dar trabalho. Volte logo.

Boa Noite.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.