Naquela manhã, despertando após uma noite de pesadelos inquietantes, Jaque Mandrake notou que havia se transformado em um homem. Estava deitada sobre o dorso musculoso e que parecia ligeiramente suado em decorrência do calor. Sentia-se estranha e passou a mão em seu corpo. Sentiu uma protuberância onde não deveria haver. Inquieta sentiu os bíceps nos braços e pelos já crescidos nas axilas. Sentiu pelos em sua cara que eram miseravelmente finos. “Que porra é essa?” – refletiu. Não era nenhum pesadelo.

Jaque levantou-se, sentindo que algo de incompreensível necessitava explicações. Nunca ousara questionar o fato de que acordara em uma cidade desconhecida, de onde nunca sequer ouvira falar e não conhecia ninguém. Jaque era religiosa e jurara ouvir vozes naquele dia. Mas algo era diferente naquele novo acontecimento. Estava com medo. Sentia-se roubada, violada. Resolveu testar a voz:

“Puta que pariu!” Sua voz continuava normal, pelo menos. Sem muito saber que rumo tomar, Jaque ligou para Juninho. “Vem cá, preciso falar contigo. Algo muito... diferente... aconteceu comigo.”

Juninho se prontificou a ir. Jaque havia pensado muito sobre seu namorado na noite anterior. Sem duvidas tinha muitos sentimentos por ele. Sentia sensações que nunca havia experienciado com ninguém mais. No entanto, sentia-se limitada. Na verdade, talvez tivesse um medo – muito embora nunca fosse o admitir – de entregar-se integralmente em um relacionamento sério. Iria tomar uma atitude. Mas em virtude nos novos acontecimentos, simplesmente desistira. Era tudo demais para ela lidar. Jaque sentiu uma raiva advinda da ciência de seu próprio destino “Por que esse tipo de coisa só acontece comigo?”. Sentia-se angustiada e queria bater em algo. Andava inquieta e seu novo corpo lhe causava aversão. Estava prestes a arremessar um jarro de flores que viera com a mobília da casa quando o interfone tocou. Era Juninho.

Temerosa, Jaque abriu a porta e mostrou o que havia ocorrido. Temia a reação de seu companheiro, no entanto, ele foi calmo e complacente:

“O que aconteceu?” perguntou.

“Não sei... Acordei assim” A garota disse envergonhada.

“Bem, melhor chamar um deus. Espera um pouquinho” e virando-se para trás ouviu-o dizer em voz alta “Deus, vem aqui! Aconteceu um probleminha...”

Jaque olhou com uma expressão de incerteza. Precisaria de explicações.

“Deixa eu te explicar...” Juninho começou. “A cidade aqui é regida por entidades que detém o poder supremo. Eles podem estar em todos os lugares, destruir prédios, conjurar veículos, dar privilégios, reviver cidadãos. Fora isso, eles são imortais e viajam na velocidade da luz. Quando alguma treta surge, você pode chamar eles com uma oração. Eles vão aparecer e te ouvir. Tu geralmente tem que ter provas. As vezes uns bagulhos loucos acontecem, como esse que aconteceu contigo, mas é coisa fácil pra eles. Não se preocupa. Na cadeia dos poderes, eles são acima do prefeito e de nós todos aqui.”

Jaque encontrava-se perplexa com tudo aquilo. Não conseguia imaginar como algo tão grande nunca havia surgido em nenhuma conversa. Lembrou-se aflita dos crimes que havia cometido até agora.

“Ah, mas eles não julgam teus bagulho não. Eles sabem o que nós tem que fazer pra sobreviver, hehe” Falou em um riso cínico. A garota tranquilizou-se um pouco.

“Então vou ter meu corpo de volta?”

“Sim, é rapidão, eles tavam ocupado, mas já tão quase vindo.”

“Ok” Jaque pensou rápido “Agora, pra provar que você gosta de mim, vai ter que me dar um beijo enquanto eu estiver assim ainda” ela falou sem muito confiar que conseguiria em um tom jocoso.

“Ué, o que importa é que eu sei quem você é por dentro” ao falar isso, Jaque sentiu um calor em seu corpo. Ele era realmente uma boa pessoa. Aproximou-se do seu rosto um tanto queimado pelo sol e, lentamente pressionando seu corpo contra o dela, Juninho desferiu-lhe um beijo apaixonado. Ela, estando mais alta que ele, sentiu estranheza na fisicalidade do ato, mas sentimentalmente percebia que era o beijo daquele a quem temia entregar-se completamente.

De repente, uma pessoa se materializou ao lado dos amantes – ou pelo menos parecia ser uma pessoa. Tinha uma estatura média, portava um elegante terno completamente preto. Suas únicas partes visíveis por trás da elegante roupa eram as mãos rosadas e o pescoço. Acima dele, aquilo que parecia ser uma máscara com a figura de uma raposa tinha os olhos apontados para os dois.

“Você quer mudar o corpo, certo?” perguntou com uma voz grossa, mas que parecia advir de um humano.

“Sim... Meio que acordei assim hoje” falou envergonhadamente.

“Ok”

Jaque piscou os olhos e de repente estava em um prédio que podia jurar nunca ter visto na vida. Juninho não estava mais com ela, mas o Raposa estava. Maravilhada com tudo aquilo, Jaque simplesmente percebeu que voltara a seu corpo de origem. Piscou mais uma vez e já estava novamente junto ao seu namorado. Tudo era muito fascinante. Jaque não podia simplesmente crer que algo assim era possível.

“Prontinho, precisando é só chamar” ao falar isso, Sumiu graciosamente, sem sequer levantar um grão de areia de onde pisava.

Ambos ficaram sem falar por um tempo.

“Você tá linda” Juninho falou com franqueza.

“Preciso falar com você” Jaque falou vagamente franzindo o cenho.

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A garota pedira que a conversa se passasse na casa de Juninho, que cordialmente concordou. Enquanto se dirigiam para a sua moradia, foram abordados por assaltantes que os liberaram em seguida por reconhecer o “dono da quebrada” (como chamavam o garoto). Pouco depois, o céu fechou-se e em poucos segundos, uma chuva impiedosa passou a desmoronar por sobre o teto do veiculo. Sentia a estranheza do ambiente percorrendo-os como uma densa névoa. Era como pressentimento que algo ruim estava por vir. Não conversavam e o único som audível era o rádio que tocava uma música qualquer que dizia algo como: “Ela era lá da Barra, ele de Ipanema, Foram ver o campeonato lá em Saquarema”.

Chegando à casa. Jaque adentrou sentindo-se internamente aflita, mas com uma expressão calma.

“Então... vida” começou antes que o garoto pudesse falar qualquer coisa. “Eu te trouxe aqui por que foi onde passamos nossa primeira noite... E isso realmente significou muito pra mim, amo... er... parça” falou enquanto tentava relembrar o discurso que havia maquinado no carro, e, enquanto o fazia, viu a expressão outrora feliz do garoto dando lugar a um rosto agora obscurecido pelo rumo que as palavras estavam tomando. “Eu gosto de você... mas a gente vai ter que acabar.”

“Por...” Juninho pigarreou. Queria parecer forte e então estampou um riso falso em sua face. “Oxe, mas por quê?”

“Porque eu... Eu vou entrar pra máfia, e pra isso, nós vamos ser rivais.” Jaque falou diretamente, sem se prolongar.

“Bom... Bom, eu entendo.” Um silêncio desconfortável seguiu suas palavras, unicamente quebrado pelo próprio garoto. “Boa sorte aí na sua nova carreira.” Respirou fundo.

Jaque estava aparentemente preocupada. Temia mais uma vez a reação do garoto. Já vira de perto os limites da maldade humana, mesmo daqueles que um dia disseram que a amavam. Esperou um momento. Percebeu que o garoto não se exasperara, simplesmente mudara sua expressão. Mas não parecia com raiva, mas sim genuinamente triste. Tentando animá-lo, acrescentou rindo:

“É isso. A gente se mata por aí.”

“É” ele riu de volta. “Eu não vou ter dó.”

Ela pegou seu carro – que convenientemente o suficiente se encontrava na garagem de seu ex – e saiu. A rádio do carro tocava uma música meio triste, meio feliz que soava algo como: “Enquanto ele dormia, mal ele sabia, Que lá no pé da areia outro chama de sereia, Essa menina solta, Essa menina solta”

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O tempo em que passara após o término foi sombrio. Fizera tudo e nem sequer tinha contato dos integrantes da máfia. Enfiara-se numa leve tristeza que resultou em comer vários hambúrgueres, depois vários sushis, umas balinhas de sabor aleatório e que resultou em mais tristeza no final. O fato é que Jaqueline Mandrake portava desde muito cedo um sério caso de hemorroidas, e isso lhe rendia visitas constantes ao hospital.

Graças às guloseimas teve que presentar mais uma, contudo esta não fora tão desafortunada. Acabou esbarrando em uma garota alta de cabelos negros que lhe era familiar de algum lugar. Gostara do jeito atrevido da garota que berrava que estava no hospital porque “era uma psicopata sem escrúpulos e acabou se ferindo”.

“Qual seu nome?” perguntou Jaque, entretida com o caos que a garota levantava.

“Eu sou Paula Matarazzo” respondeu.

“Paola?” Jaque perguntou confusa.

“Paula, mulher, PAULA COM PAU!” berrou a plenos pulmões.

Jaque se interessou pela vida da garota e descobriu que ela realmente levava uma vida excitante. Matara, assaltara e acabara levantando uma boa quantidade de dinheiro. Paula era muito extrovertida e acabara contando várias coisas intrigantes para Jaque. Uma delas que ela fazia parte da máfia Yakuza.

A mafiosa parecia também ter gostado de Jaque e, ao ouvir uma versão simplificada de sua história (Jaque era muito direta) resolveu que faria a introdução da garota à máfia naquele instante.

Jaque estava atribulada. Não sabia se confiava plenamente na Yakuza ou em Paula. Entretanto, sem saída como estava, resolveu que iria confiar.

O caminho fora calmo (embora Paula tenha esquecido o endereço da organização). Jaque foi entretida pela história do caso que tinha com um dos integrantes de lá e que estava quase namorando. Entrou em detalhes sexuais sem o menor pudor, como se a conhecesse a muito tempo. A apreensão de Jaque havia quase se exaurido por completo quando finalmente chegaram e foram recebidas com um numero exorbitante de fuzis.

“Saiam do carro lentamente” Um dos homens, o mais baixo falou em um sussurro mórbido.

“Calma moço, eu sou daqui” Paula falou aflita. “Você pode chamar o Cody.”

“Eu sou o Cody” disse o rapaz visivelmente confuso.

“Cody, não lembra de mim? A Paula Matarazzo”

“Ah sim, desculpa, é procedimento padrão...”

“Tudo bem, bom eu vim aqui e trouxe minha grande amiga e conhecida” disse em um tom solene. Jaque encontrava-se muito nervosa. “A Naty...? Jaque! A Jaqueline Mandrake pra participar aqui do nosso esquema! Ela é uma assassina sem escrúpulos que ama fazer uma carnificina com os inimigos dela!”

“Ah sim, acho que já fui avisado disso...” Cody falou ainda incerto.

No fim, Jaque conseguiu. Ao entrar, descobriu que teria a função de lavar dinheiro sujo para outras organizações criminosas da cidade. Apesar do risco, estava ansiosa para começar. Todavia, não podia negar que se sentia atraída pelo rapaz que as atendeu. Cody, branco de cabelos negros e vestido elegantemente olhava com olhos de malícia em direção a Jaque. O problema ali seria Paula. Sem muito refletir, desferiu:

“Mulher, quando a gente tava a sós, o Cody me chamou pra jantar”

“MEU CODY? Não acredito!”

“É verdade! Se for mentira, que os deuses me levem daqui!

“Ele nem me disse nada” Paula estava confusa.

“Ele disse que tu chupou um outro cara na frente dele e ele ficou magoado.”

“Vish, pior que é verdade... Pode ficar”

Jaque foi dormir feliz naquela noite. Fora um dia positivo, após vários dias inquietantes. Sabia que amanhã seria bem melhor.

No meio da noite, no entanto, ouviu um zumbido em seu ouvido. Abriu os olhos. Era manhã. Encontrava-se vestida em um roupão branco, tal como acontecera um tempo atrás. Olhou em volta e viu que estava em uma estação de trem. Desesperou-se.

“Isso não pode estar acontecendo de novo” falou consigo mesmo.

Olhou em volta, com olhos atentos e nervosos. De repente fitou uma placa que dizia: “Bem Vindo à Infinity City, população: 80”.

E assim Jaque descobriu que os deuses lhe ouviam.

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Jaque já sabia o procedimento que deveria seguir para se dar bem em uma nova cidade, mas dessa vez escolheu que partiria para o crime. Conheceu Chris, uma garotinha, meio nerd, que possuía muitas conexões e que sabia de tudo que ocorria por lá. Sua aproximação foi instantânea, mas Jaque nunca mencionou nada do que havia acontecido.

Chris lhe explicou sobre o emprego formal de taxista (que qualquer um podia fazer, contanto que não tivesse multas na carteira de motorista), que lhe conferia o direito a um carro tempórário. Explicou sobre o esquema de roubo de caixinhas e lhe disse os caixinhas que eram mais propensos a serem assaltados. E por fim explicou sobre a chance de roubar um carro e levar ao desmanche, que lhe renderia uma boa quantidade de dinheiro.

Jaque aprovara a ideia e resolveu que iria assaltar veículos naquele dia. Por algum acaso do destino e após uma longa procura por carros que não haviam sido trancados, tropeçou em uma oportunidade imperdível. Um rapazinho possuía um Vision, carro de luxo caríssimo, e procurava alguém para vendê-lo, insatisfeito com seu desempenho de velocidade. Jaque, muito astuta, pediu para executar um testdrive. Desconfiado, o rapazinho deixou. Jaque seguiu rumo ao desmanche enquanto ligava para Chris em uma comemoração exaltada.

Vendeu o carro e com isso ganhou uma quantidade de dinheiro sujo que agora precisaria ser lavado por alguma organização. Jaque relembrou-se da Yakuza e enfureceu-se. Agora estava a pé, esperando Chris aparecer pela carona e todo o dinheiro que tinha era sujo e não podia ser usado em transações legais.

“Deuses, como vocês são injustos” falou em um murmuro inesperançoso.

Piscou o olho.

No mesmo instante, seu carro de luxo, presente do seu ex, materializou-se em sua frente. Nervosa, checou as portas e adentrou, sentindo-se excitada. Curiosa com o acontecido pensou em pedir dinheiro, saúde eterna e sucesso, mas decidiu que não iria arriscar. Encontrou Chris, que sabia onde ficava a lavagem, e seguiram irresolutas.

A lavagem era em um ferro velho desanimador. O serviço era meio lento. Ouvia uma senhora se aproximar escandalosamente anunciando que iria gravar um pornô ali mesmo. Sua voz grave, provavelmente pelo hábito de fumar, era audível em muitas direções. Entendeu que seu nome era Beth e fez uma breve amizade. O fato é que a senhora realmente ia gravar um pornô ali e estava com pressa.

O dinheiro sujo enfim veio e Jaque seguiu seu caminho.

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Nos dias seguintes conheceu duas criminosas: Ashley e Nicky Mitrava. Fazer amizade com elas ao invés de arrumar confusão fora fácil. Ambas faziam entregas para a máfia, tal como Jaque já estava acostumada e isso as deixou próximas.

Seguiram uma tarde inteira juntas em entregas e trocas de conversa. Jaque realmente achava que poderia ser amiga delas.

Eis que, próximo ao anoitecer, o carro de Jaque fica preso. Nicky e Ashley, que também sentiam afeto pela nova conhecida, desceram de sua moto de luxo visando ajudar a garota.

O instinto humano nos prega peças. Faz-nos cometer atrocidades que nos deixarão perplexos em um futuro próximo. E para alguém impulsivo como Jaque, significaria a diferença entre a paz e o completo caos.