“Entre palavras não ditas, tantas palavras de amor / Essa paixão é antiga e o tempo nunca passou”

A Noite — Tiê

No domingo à tarde Clarita estava mais entediada do que o costume, odiava não ter o que fazer. Pensou em ligar para Letícia afim de fazer alguma coisa, mas logo desistiu a amiga deveria estar com o namorado. O mesmo serviria para Mili, Pata, Vivi, todas elas estavam fazendo programa de casal. Ela era a única que não tinha alguém. O que era ao mesmo tempo trágico e engraçado. Trágico porque em momentos tediosos como aquele um companheiro seria bem-vindo, engraçado porque não queria estar com algum garoto naquele momento.

Decidiu que iria sair, não aguentava mais ficar fazendo nada. Foi até o quarto e se trocou: um short jeans claro, uma blusinha branca lisa e uma sandália sem salto. Olhou-se no espelho enquanto tentava se decidir sobre o que faria com o cabelo, definitivamente ele não estava em seu melhor dia. Penteou-o por uns instantes e prendeu-o em um rabo de cavalo, passou a franja por trás das orelhas e se olhou novamente passando uma camada fina de um batom rosa claro nos lábios. Finalmente gostou do que viu, agora podia ir.

Mas ir aonde?

Essa foi a pergunta que Clarita se fez assim que se viu fora de casa. Ela tinha se decido por não ficar no sofá, era fato. Tinha se produzido para sair, mas simplesmente não sabia que caminho seguir.

— Parabéns Clarita, parabéns! — disse para si mesma.

Olhou para os lados e de repente teve uma ideia, sabia exatamente para aonde iria. Seguiu a passos lentos pela rua sorrindo vez ou outra para alguém que lhe cumprimentava. Podia sentir os raios de sol tocarem sua pele suavemente e se sentia bem com aquela sensação. Alguns passos mais tarde ela se viu diante da pequena praça onde passara sua infância. As árvores pareciam mais verdes que a última vez que fora até lá, duas semanas antes, e as flores pareciam ainda mais coloridas. Sentou-se em um dos muitos bancos de madeira que agora tinham sido pintados da cor branca assim como os postes de iluminação.

Podia ver pássaros voarem no céu, mergulhando no infinito azul e brincando por entre as nuvens. A sua frente havia crianças de todas as idades e tamanhos brincando, algumas acompanhadas pelos pais, outras sozinhas ou com amigos. Era impossível não associar aquela visão a sua infância. Ela se lembrava com detalhes das vezes que brincava de correr com as crianças do orfanato, das vezes que ia colher flores com Mili, Vivi, Pata e Bia para enfeitar o quarto das meninas, das vezes que se escondia de Beto por entre as árvores do lugar.

Eram ótimas lembranças. Tinha que admitir. Sentia falta daquele tempo. Um tempo onde ela não tinha tantas preocupações, tantas responsabilidades, um tempo onde ela simplesmente vivia sem pensar no amanhã. Se pudesse desejar algo, desejaria poder voltar a brincar como antes, a sorrir como antes. Sua vida agora era tão monótona que nem se lembrava mais quando foi a última vez que riu até doer a barriga como as crianças da praça faziam.

Soltou um longo suspiro. As vezes parecia uma idosa. “Claro que não”, Clarita pensou. Os idosos costumam ser muito mais positivos em relação a sua infância e suas lembranças do que ela era. Devia voltar para casa. Ela não estava totalmente preparada para ficar naquele lugar por muito mais tempo.

Levantou-se dando uma última olhada na praça e se pôs a caminhar calmamente em direção à rua, mas antes que pudesse colocar seus pés no meio fio uma voz parou-a bruscamente:

— Acho que alguém está recusando minha companhia.

Clarita se virou rapidamente e deu de cara com os olhos de Beto. Ele parecia envergonhado e isso chamou a atenção da garota. Correu os olhos a procura da namorada dele, não queria ser surpreendida por ela como havia acontecido no Café no dia anterior.

— Ela não veio — ele disse simplesmente.

— Ela? — Clarita tentou disfarçar, mas sabia que não iria funcionar. Beto a conhecia bem o suficiente para saber que ela buscava por Érica em algum lugar.

— Érica — ele respondeu. — Digamos que eu fugi dela.

Clarita repetiu mentalmente a informação, gostando de ouvi-la mais de uma vez.

— Acho que você já está de saída — ele apontou para a rua. — Uma pena.

— É, eu estava pensando mesmo nisso — Clarita ponderou. — Mas e você?

— Eu? — Beto apontou para si mesmo. — Eu acabei de chegar, oras.

— Eu percebi — ela riu. — Quer saber? Vou te fazer companhia!

— Sério?

— Claro!

— Bom, então vamos sentar?

Clarita sabia que Beto tinha plena consciência de que havia feito uma pergunta totalmente estupida, mas não se importava. Só queria que ele ficasse ali com ela, nem que fosse por alguns poucos minutos. Queria saber como ele estava, o que havia feito durantes os anos em que esteve fora.

Ela o levou até um dos bancos mais afastados da praça e se sentou vendo-o fazer o mesmo. Ela queria lhe fazer tantas perguntas, mas não sabia por onde começar.

— Então? — ele não sabia o que perguntar. — Bem, como vão as coisas?

— Bem — ela disse. — E com você?

— Bem também. O que houve com o pessoal do orfanato? Ainda fala com eles?

— Ah eles estão ótimos! — ela disse sorrindo. — Mili e Mosca finalmente se acertaram, Pata e Duda depois de muitas idas e vindas também sossegaram, Vivi está namorando o Samuca...

— Nossa! — ele a interrompeu. — Todo mundo resolveu namorar é?

— É Beto — ela disse simplesmente. — Eles passaram muito tempo juntos, isso ia acabar acontecendo.

— E você?

— O que?

— Você tem namorado também?

— Não, eu tenho preocupações demais com a faculdade e com o Café para ter tempo para isso.

— Entendo... — ele deixou a frase no ar.

— Mas e você? — Clarita disse. — Você e a Érica parecem bem felizes. Namoram a muito tempo?

— Bem, a gente está namorando há uns cinco meses já, mas sei lá as vezes eu acho que não é isso que eu quero.

— Ué, como assim?

— Ah, a Érica é muito ciumenta, muito controladora, isso me irrita e a gente briga muito na maioria das vezes.

— E por que você não fala para ela?

— Não sei. Acho que se eu falar a gente vai brigar mais.

Clarita pensou em questionar a atitude do amigo, mas desistiu. Sentia que Beto estava desconfortável com o assunto.

— Sabe no caminho para cá eu estava pensando nesse tempo que eu passei fora, — Clarita olhou para Beto incentivando-o a falar — nas coisas que eu perdi.

— Você perdeu muita coisa mesmo.

— Uma delas foi o seu aniversário de 15 anos — ele disse divertido. — Eu deveria ter sido o seu príncipe!

— Ah, mas eu nem tive festa — ela disse rindo suavemente, o fato era que Clarita sempre quis ter uma festa.

— Por que não?

— Não tínhamos dinheiro para isso — ela disse completamente sem graça. Aquilo não era verdade, pelo menos não totalmente.

— Sinto muito.

— Não sinta, foi melhor assim. Afinal do que adiantaria uma festa sem um príncipe...

Beto a olhou de repente e Clarita se deu conta de que havia falado demais.

— Bem, acho que não adiantaria nada...

O silêncio se colocou entre os dois de repente. Era estranho aquilo. Se alguém de fora os ouvisse poderia com toda a certeza dizer que eram malucos, que era impossível aquela conversa levar a um silêncio profundo como aquele. Mas o que ninguém jamais pensaria era que um sabia ler as entrelinhas da fala do outro, que sentiam toda a intensidade das palavras reprimidas por frases completamente sem graça e sentido, que conversavam mais no silêncio de seus olhos que no som de suas bocas.

Era mais do que óbvio que Clarita sentia-se triste por não ter um de seus maiores sonhos de criança realizado, que ela se sentia abandonada por Beto, que se sentia estupida por ser egoísta e só pensar no sofrimento que ela teve que enfrentar sozinha. Mas ela não podia evitar, e mesmo se pudesse não queria. O seu desejo naquele instante era mostrar a Beto que, ao contrário dele, ela não teve muitos momentos de felicidade com os quais podia contar.

— x —

Como a vida pode ser tão injusta? Era o que Beto se perguntava olhando dentro dos olhos de Clarita. Enquanto ele havia tido, não só festas, mas também uma ótima família, Clarita não tivera nem um e muito menos o outro. Não era preciso que ela lhe dissesse isso, ele sabia. Sabia só de encarar os doces e inocentes olhos azul-claros de Clarita, que agora estavam escondidos por suas pálpebras trêmulas. Sabia só de ouvir seu tom vacilante ao se referir de seu passado sem ele. Sabia só pela forma como ela respirava que não havia sido fácil para ela.

Ele queria consertar as coisas, fazer com elas dessem certo para ela. Queria vê-la sorrir de verdade, sorrir com os olhos, com a boca, com o corpo, com a mente. Gostaria de poder fazê-la feliz, mas não podia. Não do modo como realmente desejava.

— Acho que vou para casa — Beto ouviu Clarita dizer sem olhá-lo.

— Por quê? Tão cedo? — ele estava começando a se desesperar, não gostava de vê-la se despedir. — Nós mal conversamos!

— Beto, eu realmente quero ir para casa — o tom que ela usou foi, na opinião de Beto, o mais doce e instável que alguém poderia usar. — Quem sabe outro dia nós conversamos.

— Você é quem sabe — ele se deu por vencido. — Mas posso pelo menos te acompanhar até em casa?

— Não precisa, é perto.

— Eu faço questão.

— Tudo bem então.

Levantaram-se do banco quase que no mesmo instante. Beto esperou Clarita sair na frente sem precisar se certificar de que ele a seguiria. Afinal ele o faria mesmo que não precisasse. Algum tempo depois estavam caminhando lado a lado, em silêncio. Aquilo não era nem um pouco agradável, ele gostava de ouvi-la falar, o tom macio de sua voz era como um calmante de efeito instantâneo. Tudo parecia se encaixar quando ela falava.

Assim que chegaram em frente à casa de Clarita, Beto se pôs a observar a construção. Era uma casa bem simples, tinha um portão de grades de ferro, janelas de madeira, tal qual a porta principal e havia sido pintada de um amarelo claro. Ele não conseguia imaginá-la vivendo naquele lugar. Parecia que os dois não combinavam.

— Quer entrar? — a voz de Clarita fez Beto tirar os olhos da casa.

— Hoje não — ele disse, por mais que sua vontade fosse aceitar o convite.

— Tudo bem... — Clarita disse. — Nos vemos outro dia então?

— Claro — Beto respondeu sorrindo.

— Então até logo — ela deu um sorriso enquanto ele se aproximava e beijava a face da garota.

— Até logo.

Beto deu meia volta e fez o caminho em direção a sua casa. Demorou bem mais do que imaginou para chegar até lá, o que fez com que Carol praticamente pulasse em seu pescoço quando o viu passar pela porta. Ele sabia que a irmã estava preocupada, mas achava que não era para tanto.

— Onde você estava beto? — ela disse.

— Fui dar uma volta — ele respondeu simplesmente.

— Uma volta onde?

— Naquela praça que tem lá perto da nossa antiga casa.

— Ah sim, menos mal.

— Encontrei a Clarita lá — ele disse num suspiro.

— E isso foi ruim? — ela perguntou chamando-o para sentar.

— Não totalmente. A gente conversou, mas as coisas não são como antes.

— O que você quer dizer com isso?

— Sabe antes era tudo mais simples entre a gente. Agora parece que tudo simplesmente ficou muito difícil.

— Beto você gosta dela?

— Claro que gosto Carol! Ela é minha melhor amiga.

— Não foi isso que eu perguntei.

— Eu perguntei se você gosta dela de verdade, como mulher.

— Não sei — ele disse, soltando o ar devagar. — Mas é diferente estar perto dela.

— Beto, Beto, tome cuidado...

— Eu tomo maninha, eu sempre tomo.

— Mas mudando de assunto amanhã eu vou começar a trabalhar no orfanato — ela disse com os olhos brilhando.

— Isso é ótimo! Tomara que dê tudo certo.

— Vai dar sim, pode esperar.

— E por falar em orfanato, Clarita me disse que o pessoal que morava lá está namorando.

— Como assim Beto?

— Mosca e Mili, Duda e Pata, Samuca e Vivi, todos eles estão namorando.

— Nossa que maravilha. Eu sempre soube que isso ia acontecer.

— Pois é. Estava na cara mesmo.

— Parece que você não ficou muito feliz com isso.

— Não é isso, é só que sabe quando nós éramos crianças ficávamos falando sobre as meninas, qual era a mais bonita, qual a gente iria namorar. E bem, todos eles acabaram realmente juntos com elas, só eu que não tive a mesma sorte.

— Você gosta da Clarita, Beto.

— Eu não disse isso.

— Não precisa, eu conheço você, eu vejo os seus olhos brilharem quando você fala dela, vejo um sorriso brotar aí no cantinho da sua boca. Você gosta dela.

— Mas de que isso adianta? — ele disse cabisbaixo. — A gente não pode ficar junto mesmo.

— E por que não?

— Fala sério Carol, acha mesmo que a Érica iria aceitar que eu terminasse o nosso namoro assim do nada? E eu nem sei se a Clarita sente o mesmo por mim.

— E que tal você descobrir?

— Como?

— Não sei ainda, mas eu vou te ajudar. E enquanto isso você vai encontrando um modo de dizer a Érica que ela não é a mulher por quem você é apaixonado.