P.O.V Aylee

Acordei faltando algum tempo para o sol nascer, ainda sentindo o sereno da noite anterior. Nossa fogueira, agora uma pilha de cinzas, emanava um fraco calor, em uma tentativa desesperada de continuar se aquecendo. O nosso acampamento improvisado estava silencioso, os únicos barulhos ouvidos eram de grilos solitários e o vento noturno.

Embora eu não tivesse planejado acordar cedo, utilizei isso a meu favor. Tomei rapidamente meus hormônios, e peguei minha lança, saindo silenciosamente da minha barraca. As outras cinco barracas estavam escuras, como esperado, e vi Viren deitado no chão perto da fogueira. Ele insistiu em dormir lá, não querendo “ser um incômodo”, segundo ele. Mesmo com Nick oferecendo dividir barraca, Vi podia ser muito insistente quando queria, e acabou dormindo no exterior.

Vi dormia com a cauda ao redor do corpo e com a cabeça nos braços, como se dormisse em uma mesa. Caminhei na ponta dos pés adentrando o “deserto”. Andei por alguns minutos até achar um arbusto alto, e fiquei de cócoras ali, calmamente esperando. Minha mãe adotiva me ensinou a caçar e meu avô me ensinou a pescar, e se havia um coisa que eu havia aprendido nos anos que passei com eles, era que paciência era essencial.

O primeiro raio de sol já nascia quando uma lebre amarela saltitou na minha frente, pulando completamente inerte ao perigo. Esperei o animal ficar parado, e com um golpe único, acertei a lança em seu coração. A lebre morreu antes mesmo de poder reagir. O sol já havia se elevado em três quartos quando consegui matar a terceira lebre.

Coloquei minha lança nas costas e segurei as carcaças na mão esquerda. Peguei uma pequena panela que estava nos nossos suprimentos e enchi ela de água até a metade. Uma das coisas que eu mais gostava de fazer antes de entrar no Acampamento era cozinhar, coisa que aprendi desde pequena com meu pai, então na minha mochila eu trouxe uma variação de temperos para usar nas rações e possíveis caças que teríamos.

Coletei alguns galhos e reacendi o fogo, logo após colocando a panela em cima, com uma espécie de grelha que eu carregava a segurando. Enquanto esperava a água borbulhar, peguei a faca de caça na minha cintura e comecei a cortar os coelhos, retirando a pele e alguns ossos. Estava terminando de esfolar a terceira lebre quando ouvi a água começar a borbulhar.

Coloquei os pedaços na água, junto com orégano e pimenta caiena. Em poucos minutos, a carne começou a se misturar na água e soltar um caldo, que depois de um tempo, começou a emanar um odor muito bom. Vi acordou, provavelmente pelo cheiro do ensopado sendo feito, e disse um “bom dia” sonolento.

Parecendo um filme, os outros foram acordando um a um, cada um dando o seu “bom” dia próprio, com exceção de Mevans, que se limitou a soltar um grunhido incompreensível. Todos se sentaram ao redor da fogueira, enquanto eu misturava o ensopado, colocando alguns temperos aqui e acolá.

Algumas conversas foram ditas aqui e acolá, mas no geral eu ignorei grande parte delas, ficando de olho no ensopado. Quando estava finalmente no ponto em que a carne dissolveu no caldo, peguei tigelas que trouxe na minha mochila. “Foi mal, Vi”, eu disse, “Mas eu só trouxe seis tigelas”

“Relaxa, eu dou a divido a minha com ele”, disse Eve, o que causou Viren a corar fortemente, dando um enorme contraste com o dourado das escamas de suas bochechas. Eve não pareceu perceber, mas eu e Nick trocamos um olhar demonstrando nossa percepção do acontecimento. Servi a todos, e na falta de talheres, tomamos o ensopado pela própria tigela. Mesmo com Viren relutando em usar a tigela, todos elogiaram a comida, até mesmo Mevans, ainda que falasse de uma forma bem sucinta.

Com todos alimentados, nosso humor pareceu melhorar. Os ovos de ontem mal nos alimentaram, então no fim das contas, acabamos com o ensopado. “Entãão…”, começou Aurora. “Sem querer ser muito invasiva, mas como era a vida de vocês antes de entrar no Acampamento?”, ela perguntou, o que eu achei que fosse um jeito educado de entender como Vi veio parar no nosso grupo, devido a reação dela de ontem.

Nick relutou um pouco, mas explicou a situação com a mãe dele, e Eve falou de sua infância perdida. Aurora já sabia da história de Maggie, mas esta contou mesmo assim e eu fiquei em silêncio. Passei muito tempo tentando reprimir algumas memórias, e eu não queria relembrar delas agora.

Para minha sorte, ninguém me pressionou, e o mesmo aconteceu com Mevans. Viren finalmente começou a contar sua história: “Bom, não sei se vocês sabem, mas o Zeus é um enorme cuzão, e tem mania de se transformar em animais pra… Como que eu digo isso? Pra se forçar dentro de outras mulheres. Nisso, ele fez isso em forma de cobra com a minha mãe e… Eu nasci”

“Minha mãe claro, não sabia como criar um ‘menino cobra’, então acabou me deixando no meio da floresta. Cresci na base do ‘matar ou morrer’, e até que quando eu tinha 8 anos, Quíron me achou. Dois anos antes disso, Zeus apareceu na minha frente. Eu tinha uma consciência de um animal, mas por algum motivo, eu soube quem ele era, e já senti uma raiva imediata dele. Ataquei ele, e ele me derrubou, mas eu não desisti. Ele viu minha determinação e me deus os dons de velocidade,durabilidade e o caralho a quarta”

“Claro que Hera ficou full putassa quando descobriu, e me amaldiçoou com azar. Eu sou literalmente uma onda de azar ambulante. Quando Quíron me achou, junto com alguns outros Campistas veteranos, como o Nard e a Hanna, ele foi o único que me tratou como um menino, e não como um monstro. Me ensinou a ler, escrever, falar e sinceramente eu o considero meu pai, muito mais do que o idiota do Zeus. O resto já é autoexplicativo: fiquei no acampamento, obedecia a todas as regras, até o momento que Quíron se recusou a me deixar ir, que foi quando vocês me encontraram”

Eu já sabia da enorme capacidade empática de Aurora, mas não esperava que chegasse no ponto de fazê-la chorar. Não um choro feio, mas sim um choro de solidariedade. Ficou um enorme silêncio entre nós, e aproveitei para guardar a panela e as tigelas de volta na minha mochila. Mas o silêncio não durou muito tempo: um grupo de 8 ciclopes se aproximava do nosso acampamento, e rápido.

Preparei minha lança, e vi todos pegarem suas armas, com exceção de Vi, que sempre lutava com os próprios punhos. Aurora tremia ao segurar o arco, provavelmente por causa da facada que levou, e Mevans mal conseguia segurar o próprio machado por conta do estresse pós-traumático.

Não havia tempo para pegar as barracas, então começamos a correr em direção aos quadriciclos, mas um dos ciclopes atirou uma flecha flamejante nos arbustos e os quadriciclos pegaram fogo, ficando impossíveis de serem usados. “Corram!”, disseram Eve e Vi ao mesmo tempo, e me demorei a me virar, ficando a última da “fila”. Vi corria na minha frente, com sua cauda deslizando de uma lado a outro rapidamente.

Provavelmente por causa de sua onda de azar, ele tropeçou em um enorme pedra escondida na areia. Ao cair para frente, Viren pediu para todos pararem e disse que havia uma fenda entre a pedra e o chão. Ele colocou as mãos lá e levantou a pedra, mostrando um buraco escuro com uma escada metálica. Movidos pela adrenalina, Eve, Aurora, Mevans e Maggie adentraram o buraco, descendo rapidamente as escadas. Nick hesitou um pouco, mas acabou entrando no buraco também.

“Entra, eu vou distrair eles!” disse Vi, apontando para o buraco. “Não”, eu disse, persistente. “Vou ficar com você”, completei. “Eu me preocupo muito com vocês, e esses ciclopes devem ter achado a gente por culpa minha, pela minha maldição. Não era para eu estar aqui, mas agora quero corrigir o meu erro, então POR FAVOR, entra no buraco”, ele respondeu, com uma sinceridade surpreendente.

Hesitei um pouco antes de entrar, mas acabei o fazendo. Eu estava descendo o meu décimo degrau quando vi Vi me dar um último olhar e fechar “tampa” do buraco com força. Tudo ficou escuro e silencioso, mas continuamos descendo. A escada parecia ser infinita, descendo por metros e metros. Quando finalmente chegamos no fundo, uma onda de frio chegou em nós. Não era um “frio” de temperatura baixa, mas sim um “frio” de melancolia.

Era muito difícil enxergar na escuridão, mas Maggie conseguiu improvisar uma lanterna com algumas ferramentas e utensílios que trouxe. Era uma luz fraca, mas melhor que a escuridão total. Mesmo com a visibilidade quase nula, notei que o chão era liso, e aparentava ser de mármore. As paredes tinham a mesma tonalidade, e estavam cobertas de uma massa que parecia musgo. O túnel era enorme, e não aparentava ser um túnel de metrô, e sim um túnel meticulosamente planejado.

Andamos por alguns minutos, até o momento que chegamos em uma encruzilhada, em que cada lado dava mais encruzilhadas. Logo percebi onde estávamos, mesmo achando que fosse um sonho. Ou um pesadelo. Eu havia lido apenas histórias desse lugar, mas não imaginei que ele fosse real até agora. Respirei fundo, me preparei para aceitar o fato de que eu estava dentro de um conto de fantasia e finalmente falei:

“Senhoras e senhores, bem vindos ao Labirinto de Dédalo”