Gary, Indiana - 07:22 hrs

Tudo parecia muito silencioso.

Michael inspirou o ar frio e nostálgico do inverno, sinal de que o natal estava perto. Passou pelos móveis simples e bem ornamentados, perfeitamente organizados pela sua doce mãe, e se aproximou de uma janela. Tentou tocá-la para abrir as cortinas, mas suas mãos transpassaram a parede, o que o assustou.

— N-nós não podemos tocar?

— Nope nope! Mas nós podemos sair sem precisar de porta. Você quer ver algo lá fora, não quer?

O garoto segurou na mão do adulto e o levou até a parte de fora da casa, apenas atravessando a parede. Michael fechou os olhos automaticamente assim que sentiu que daria com o nariz no sólido, mas surpreendeu-se ao dar de cara com uma linda manhã clara e aconchegante. As crianças corriam para brincar na neve, e, mesmo que fosse tão cedo, elas se levantavam para se divertir construindo um bonequinho de neve. Muitas já vinham com cachecóis, narizes de cenouras e gorrinhos nas mãos, outras com suas pedrinhas para fazer um rostinho feliz. Michael sorria ao ver essa cena, ao mesmo tempo que havia desviado o olhar para sua própria casa. Sabia que, ali, eles não fariam aquilo.

— O que foi?

Indagou o menino que se autodenominava Espírito do Passado. Michael suspirou.

— Essa é a única casa sem enfeites de natal… Percebeu?

O garoto arqueou a sobrancelha e passou a observar.

— Puxa, verdade. Vocês eram pobres a esse ponto?

Indagou. Michael deu-lhe aquele olhar e ele percebeu rapidamente que havia falado besteira. Levou as mãos à boca, arrependido.

— Ops…

— Tá tudo bem…

O homem sorriu.

— Você disse que eu precisava ver algo, não é? O que seria?

— Ah, sim! Vem…

O garoto deu-lhe a mão e o puxou mais uma vez, o levando para dentro da casa. Quando entraram, uma euforia generalizada parecia estar acontecendo. Joe gritava com os meninos, como sempre, os mandando organizar tudo para partirem. Iriam naquela noite para Vegas, a cidade do pecado. O natal era uma das épocas mais lucrativas e, mesmo se tratando de um feriado puramente religioso e familiar, Las Vegas comprava qualquer comemoração para festejar, à sua maneira, em suas ruas noturnas e badaladas. Os The Jackson 5 foram chamados para se apresentar em uma das diversas noites agitadas que a cidade teria, e, claro, seriam bem pagos.

— Levem os casacos, meninos. Se protejam, se protejam…

Dizia a matriarca. Joe, muito ocupado, ignorava suas palavras enquanto metia todos os seus objetos na mala, de qualquer modo, e encarava excessivamente o relógio de pulso.

— Eu sei, mulher, eu sei…

Ele murmurava. Agora, a contagem dos instrumentos e dos meninos.

— Vão pro carro, agora! Agora!! Jackie, vai atrás do Michael! Cadê esse moleque, pelo amor de Deus?!!

— Já vou!

Jackie correu, em busca do seu irmão. O garoto que acompanhava o Michael deu-lhe uma piscadela e segurou sua mão mais uma vez, em seguida o guiou pelas paredes, para que chegassem antes do irmão mais velho até o encontro do pequeno Mike.

Ele estava próximo da cerquinha que dividia o terreno de sua casa com a do vizinho. Algumas crianças estavam por perto, elas não eram necessariamente amigas do Michael, não eram, porque não conseguiam conversar muito com ele. Sua vida agitada não permitia consolidar amizades, mas eram inocentes, como crianças eram, e tentavam.

— Por que você não vem fazer um boneco de neve? Eu te empresto minhas pedrinhas!

Disse uma menina. Michael sorriu, estava quase indo mesmo, mas ouviu o seu pai gritar e lembrou que seu medo era maior que o desejo.

— N-não posso…

Ao longe, Michael observava aquela cena. Ele se lembrava de tudo.

— O que viemos fazer aqui…?

Murmurou, agora com um pouco mais de convicção. O garoto arqueou a sobrancelha.

— Acho que já te respondi isso, não é?

— Eu não vejo a necessidade de ver essa cena de novo…

Disse, dessa vez desviou o olhar para o menor.

— Mas você precisa. Olha… vai, olha de novo.

Michael já sabia o que veria quando levantasse os seus olhos negros mais uma vez, estava fresco na sua memória, porém cedeu aos pedidos e assim o fez.

O seu eu do passado estava trocando presentes. A garotinha, sua vizinha, deu-lhe algumas pedrinhas coloridas do jarro de sua mãe, e, em troca, Michael lhe deu um lindo brochezinho do seu traje de apresentação.

Por fim, ganhou um beijinho na bochecha.

Michael suspirou, conteve a tristeza em seu coração.

— Acho que foi o meu primeiro amigo secreto…

Ele brincou, tentando alegrar um pouco o seu coração entristecido.

— Se tem um limão, faça uma limonada, não é?

Indagou o garoto, dessa vez o encarando.

— Você era muito generoso. Aquelas pedrinhas não valem nada comparadas ao seu broche. Você tinha quantos anos? Uns… 10, 11? À essa altura, você já era famoso, não era?

Ele aquiesceu.

— Sim… mais ou menos. Estávamos a pouco de comprar a nossa primeira mansão, mas, pelo visto, ainda estamos em Gary, então… acho que eu estava na transição de uma realidade para a outra.

— Sim… sua generosidade vem desde cedo…

Michael arqueou a sobrancelha.

— O que isso tem?

— Porque foi isso que causou sua ruína…

Ele o encarou dessa vez, seu olhar neutro deu espaço para um ar confuso e assustado, talvez um tanto enfurecido. Michael não conseguiu, de forma alguma, digerir aquelas palavras, de repente sentiu-se inundado de perguntas.

— C-como assim...?

Logo, o que ele temia aconteceu: Joe o encontrou.

— MICHAEL!!!

— Aaah!

A menininha correu para dentro de casa, assustada. O pequeno Mike, que não teve a mesma sorte, encolheu-se num canto do cercadinho.

— D-desculpa, pa…

Levou um tapa no lado esquerdo da cabeça. Sentiu o ouvido zumbir por alguns instantes e segurou um choro infantil. Sabia que seria pior se chorasse.

Michael, ao assistir aquela cena, levou as mãos ao rosto e virou-se de costas, numa tentativa de esconder-se daquela situação. Ele começou a chorar em silêncio, relembrar aquelas coisas o fazia sangrar por dentro.

— Me tire daqui… Por favor, me tire daqui, eu quero ir embora…

— Mas nós não…

— Me tire agora, por favor, agora!

O garoto suspirou, novamente tornou a segurar a mão do adulto. Michael, ainda fechando os olhos com toda a força que tinha, sentiu a atmosfera mudar para um local mais fechado e pouco iluminado. Estavam de volta na sala da lareira. Estavam de volta em Neverland.

Ao lentamente abrir os olhos, deparou-se com o seu reflexo em um dos espelhos da sala. De seus olhos, lágrimas negras manchavam suas bochechas e desciam pelo seu queixo. Lágrimas que se misturavam à sua maquiagem. Ele levou as mãos ao rosto mais uma vez, numa tentativa de esconder-se daquela visão.

— Por que fez isso comigo…?

O garoto lentamente se afastou.

— Você precisava relembrar…

— Relembrar o quê? Que eu não tenho o melhor pai do mundo? Que os meus natais se resumiam a visitar boates e madrugar no trabalho? Eu quero que o meu passado fique no passado…

— O passado é mais do que recordação, Michael, serve para entendermos o presente.

O cantor limpou as lágrimas, embora algumas manchas de sua maquiagem ainda tenham permanecido, e virou-se novamente para o menino.

— E o que você espera que eu tenha entendido? Tudo o que eu entendi é que eu vivo... para que outras crianças não passem, nunca, pelo que eu passei.

O garoto suspirou e o encarou nos olhos, em silêncio.

— Você é muito altruísta. Toma cuidado com isso…

Em seguida, em passos lentos, se retirou da sala. Uma vez que o fez, a lareira apagou, o que fez com que o cantor tomasse um pequeno susto. Suspirou e também saiu dali.

— Ei… ei, espere! Espírito do Passado? Cadê você?

Murmurou, enquanto caminhava.

Ele havia sumido.

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02:00 hrs

Michael estava de volta ao seu quarto.

Não sabia como o remédio não fez efeito, como havia se despertado tão cedo. Tentou dormir, dessa vez, sem auxílio do medicamento, e parecia estar conseguindo tirar pequenos cochilos, quando ouviu um barulho na sua sala de jogos. Alguém estava jogando Moonwalker, era perceptível o instrumental de Smooth Criminal ao fundo.

Suspirou e se levantou. Mais uma vez, teria que ver do que se tratava.

Dessa vez, colocou um casaco branco. Aninhou-se e prosseguiu, em passos lentos, até a sala. Depois do que viu algumas horas atrás, já não tinha mais medo. Na verdade, acreditava estar vivendo algum tipo de sonho lúcido, esperava que fosse isso. Seguiu e seguiu até adentrar à sala.

Deparou-se com um homem idêntico à sua pessoa. Estava jogando.

Engoliu seco.

— Olá…?

O homem virou-se e ele teve a certeza. Era a si mesmo… mais uma vez.

Porém, estava muito mais parecido consigo. Usava seus sapatos de dança, meias brancas cintilantes, calças pretas e uma camisa social púrpura. Usava um Fedora preto e os cabelos presos, exatamente como Michael geralmente fazia, e exatamente como estava naquele momento.

— Ei, Michael…

Ele suspirou.

— Quem é você?

— Sou o Espírito do Presente, ué. O molequinho veio aqui, não veio?

Michael assentiu, em silêncio.

— Pois bem, achei que você fosse mais inteligente. É só fazer a continha. Dois mais dois…

— Eu entendi, eu entendi… Não precisa ser grosseiro.

— Preciso.

Aquele rapaz se levantou e jogou o controle na cadeira macia onde estava. Não tirou os olhos dos dele, e Michael conseguiu sentir a potência de seu próprio olhar.

— Você deu um trabalhinho, não deu? Você é um cabeça dura… mas comigo você não vai ser assim. Acredite… se for aprovado por mim, não vai precisar receber a visita do último espírito. E ele é bem pior…

Sussurrou a última frase, o que fez o cantor sentir um arrepio desconfortável.

— Quem mandou vocês aqui…?

— Ah, faça-me o favor… E o que isso importa? Pode ter sido qualquer um, Michael. As pessoas que te amam, o acaso, sua família, seus amigos, você mesmo...

Michael arqueou a sobrancelha. Aquele homem prosseguiu.

— É um socorro, um pedido de ajuda… pra você. Então é melhor ser bonzinho, porque, senão, vai estar jogando um presente fora. Entendeu? Presente? É uma piada ruim, mas foi mais forte que eu.

Ele segurou sua mão, sem sequer pedir-lhe permissão como fez o espírito anterior. Michael não estava gostando nada do jeitinho metidão daquela entidade.

— Vamos, vamos logo, que eu quero voltar antes das quatro.

Mais uma vez, o ambiente se dissipou. O cantor, dessa vez, observou a metamorfose de sua sala e contemplou as paredes cintilando e dando espaço para o salão principal de Neverland.

Estava de dia, os enfeites estavam postos, seus amigos haviam chegado.

Era 24 de dezembro.